Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!
Domingo, 2 de Março de 2008
ARCEBISPICES
Nos inícios de Fevereiro, em declarações à BBC, o arcebispo da Cantuária, figura cimeira da Igreja Anglicana, defendeu a inevitabilidade da introdução da sharia no Reino Unido, compatibilizando a aplicação da lei islâmica com o ordenamento jurídico britânico, para os muçulmanos que assim o desejassem. Estas declarações levantaram um coro de protestos,
desde a reacção descabelada do tablóide The Sun, considerando-as “uma vitória do terrorismo”, atá ao mais comedido The Times que não deixou de ver nelas um “grave erro” e do Ministro da Cultura britânico, Andy Burnham que, falando também à BBC, apelidou a sugestão do arcebispo de “uma receita para o caos”, ameaçando a estrutura da própria sociedade britânica e do seu sistema político democrático. Já em 2001, na sequência dos atentados de 11 de Setembro, este mesmo clérigo afirmou que a Al-Qaeda teve “verdadeiros objectivos morais”.

Estará Rowan Williams doido? Não nos parece. Também não nos parece que isto seja, como alega Vasco Pulido Valente o “desenvolvimento inevitável e lógico da doutrina do multiculturalismo” (Público, 9/2/08) que, supostamente ao fazer equivaler, em qualquer parte e em qualquer altura, as várias culturas e religiões, não encontra justificação “para que uma defina e domine a ordem jurídica do Estado.” Não concordando com os seus pressupostos, estamos, porém, mais de acordo com as conclusões que o polémico historiador e articulista português tira na mesma crónica. Para Vasco Pulido Valente, “o arcebispo de Cantuária não se distingue no essencial dos mil censores da nossa consciência e dos nossos costumes. A liberdade, para ele, não conta.” Para nós é precisamente aqui que bate o ponto.

É que, mais do que emitir uma opinião – polémica, é certo – Rowan Williams manifesta um desejo. Afinal o desejo de todas as religiões; que o poder teocrático impere. A separação do Estado e da Igreja, conquista essencial das revoluções liberais e pedra angular da construção dos Estados modernos é algo que as hierarquias religiosas nunca aceitaram de bom grado. Sujeitam-se, mas não aceitam. Até porque estas revoluções se fizeram precisamente para banir uma ordem social antiga, em que todos os domínios da vida tinham que se submeter aos ditames da religião e da hierarquia eclesiástica. As conquistas civilizacionais da “liberdade, igualdade e fraternidade” e a proclamação universal dos direitos do Homem e do cidadão, com todas as vicissitudes da sua implantação visaram, antes de mais, derrotar esse obscurantismo e opressão religiosas.

Á luz desta ideia, já não parece tão estranha a complacência do primeiro dignitário da Igreja Anglicana para com as atitudes do extremismo islâmico, que tem como “boas práticas” a brutal discriminação das mulheres, o uso obrigatório do véu ou o apedrejamento da mulher adúltera. Ainda para mais quando se verifica um declínio acentuado da Igreja Anglicana (77 milhões de fiéis), com a diminuição de mais de um terço das suas congregações, desde 1989. Que bom seria, pensará Williams, que a influência da sua igreja pudesse ser comparável ao enorme poder do Islão – em muitos casos, nas suas versões mais fundamentalistas – nos países muçulmanos.

As religiões entendem-se. Mesmo quando se combatem, entendem-se. No seu código genético têm a mesma visão totalitária do mundo, a mesma intolerância, a mesma manipulação das consciências, a mesma ânsia pelo poder e influência social. Com poucas excepções, em grande parte correspondentes aos períodos de nascimento e de afirmação inicial, todas elas sempre representaram o que há de mais dogmático, retrógrado e castrador, ao longo da História. Os escassos exemplos em que esta lógica de pensamento e actuação não se verificou, estão muito longe de constituir a regra.

Tudo isto, curiosamente, numa altura em que num país de maioria muçulmana, a Turquia, as populações se batem por manter o secularismo do Estado e impedir a deriva religiosa, cada vez mais ameaçadora, que conseguiu pôr fim à proibição do uso do véu nas universidades. Aparentemente banal, esta proibição era um símbolo da resistência aos ditames do Islão. Nas ruas de Ancara, uma enorme manifestação, demonstrava o repúdio pela aprovação da nova lei e o apoio à laicidade do país. Um dos seus organizadores, Gokhan Gunaydin afirmava que “O que se passou no Parlamento é a eliminação do regime republicano e a sua substituição pela beatice” (Público, 10/2/08). Uma idosa foi muito aplaudida quando destapou o cabelo e gritou “longa vida à república, que a sharia vá para o diabo”.

Talvez assim se entenda por que razão Vasco Pulido Valente apelide o arcebispo da Cantuária de “aberração do século”.



Hugo Fernandez


publicado por albardeiro às 22:00
link do post | comentar | favorito

pesquisar
 
Novembro 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2

3
4
5
6
7
8
9

10
11
12
13
14
15
16

17
18
19
20
21
22
23

24
25
26
27
28
29
30


posts recentes

Relações Luso-Nipónicas –...

INTERROGAÇÕES

A transformação digital n...

Carta Aberta ao universo ...

FACES DA DESIGUALDADE

A COMPARAÇÃO

A FUSÃO

AJUSTE DE CONTAS

Seminário em Alenquer - A...

O MOMENTO DA VERDADE (em ...

arquivos

Novembro 2024

Outubro 2024

Setembro 2024

Agosto 2024

Junho 2024

Maio 2024

Março 2024

Fevereiro 2024

Janeiro 2024

Outubro 2023

Julho 2023

Junho 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Outubro 2020

Julho 2020

Junho 2020

Abril 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Janeiro 2019

Novembro 2018

Setembro 2018

Julho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Janeiro 2016

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Abril 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Setembro 2008

Julho 2008

Junho 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

Agosto 2004

Julho 2004

Junho 2004

Maio 2004

Abril 2004

Março 2004

blogs SAPO
subscrever feeds
Em destaque no SAPO Blogs
pub