Tenho para mim que os negócios da fé sempre tiveram muito mais a ver com os ditos negócios do que propriamente com a fé. A ligação da religião com os aspectos mais mundanos da vida não é, de resto, coisa nova. O caso mais emblemático talvez seja, no século XVI, o das boas obras e generosas doações à Igreja que estiveram na origem da rebelião protestante, quando o Papa Leão X (1513-1521) curiosamente, ele próprio filho do poderoso mercador e magnata da época, Lourenço de Médicis vendeu as chamadas indulgências, isto é, o perdão dos pecados, para financiar a construção da Basílica de S. Pedro e sustentar o luxo da sua corte. Diz-se mesmo que, aquando da sua eleição para o papado, teria confidenciado a seu primo (que ele próprio promoveu ao cardinalato e que viria a ser o Papa Clemente VII), uma vez que Deus nos conferiu o pontificado, vamos aproveitá-lo!. O que é facto é que, para celebrar a ocasião, organizou festividades que tinham tudo de terrenas: uma parada triunfal em Roma, que incluiu bobos, músicos e animais selvagens, rematado por um jantar monumental para centenas de convidados com 65 pratos na ementa. Esbanjador, amante de jóias e caçadas, era conhecida a sua extravagância e a sua vida de luxo espampanante. Como comentou o poeta Ludovico Ariosto, a sua ascensão ao pontificado representou o início da Idade do Ouro.
Mas já antes, nos deparamos com cerca de quinhentos livros de contabilidade e livros-razão, de um mercador do século XIV, Francesco Datini, de Prato, perto de Florença, onde fez questão de incluir a inscrição em nome de Deus e do lucro. Da mesma forma, mais tarde, na sua obra Thoughts and Details on Scarcity publicada em 1795, o conhecido filósofo e político irlandês Edmund Burke fazia a defesa das leis do comércio, que são as leis da natureza e consequentemente as Leis de Deus. Não é por acaso, aliás, que o conhecido sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) estabeleceu uma forte conexão do desenvolvimento do capitalismo com a ética protestante. Os exemplos podiam multiplicar-se aos milhares.
Nos nossos dias a tendência é semelhante. A elite católica que uma organização como a Opus Dei sempre quis representar, advoga abertamente que os negócios e o sucesso empresarial são não só compatíveis com a procura da santidade, como constituem excelentes caminhos em direcção a Deus. Não admira, por isso, que algumas das suas mais destacadas figuras, sejam donos de empresas e de instituições financeiras. Mas se os homens santos são negociantes, dificilmente podemos pretender santificar os negócios. Numa economia globalizada de cariz neoliberal os negócios são o que são: competição feroz, busca do lucro a todo o custo (e que lucros estas empresas apresentam!), oportunismo, defesa dos interesses por cima de quaisquer preocupações éticas e mesmo, quando tal for necessário e conveniente, desrespeito pelas normas legais em vigor. Tudo a bem, claro está, do Deo capitalismus. Demagogia? Basta ler as páginas dos jornais.
Talvez assim se possa perceber a espantosa afirmação do cardeal patriarca de Lisboa, na homilia do Natal, para quem Todas as formas de ateísmo, todas as formas existenciais de negação ou esquecimento de Deus, continuam a ser o maior drama da humanidade. O ateísmo é que é o maior problema da humanidade!? Então e A guerra, a fome, as doenças, a miséria, a ignorância, o fanatismo, a violência, as catástrofes ambientais, a indiferença pelo sofrimento dos outros?, como lembra e muito bem Rui Tavares no Público (27/12/2007). Nada disto conta? Aparentemente não e percebe-se porquê. É que o ateísmo é mau para o negócio. Ita missa est, amen! Viva a religião S. A.!
Hugo Fernandez