Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!
Sexta-feira, 11 de Maio de 2007
CONTA-ME HISTÓRIAS
Na conferência Politik Als Beruf, apresentada em 1919 a convite da Associação Livre dos Estudantes de Munique, Max Weber dissertou sobre a política e a vocação para o seu exercício. Nesse Inverno revolucionário, o sociólogo alemão fez considerações que não só mantêm plena actualidade, como permitem enquadrar o fenómeno do funcionalismo político, isto é, dos políticos profissionais. Dissertando sobre os distintos tipos de políticos, Weber distingue essencialmente duas situações. Por um lado, temos aqueles que se dedicam à actividade política de forma ocasional. Neste grupo podem-se incluir todos aqueles que, com mais ou menos frequência e responsabilidades, intervêm politicamente, não fazendo, no entanto, desta intervenção o seu principal modo de vida. Temos, por outro lado os políticos profissionais que, pelo contrário, fazem da actividade política o seu meio de subsistência mais importante. Na medida em que a política pode proporcionar receitas regulares e seguras (e uma vez que as sinecuras, gratificações ou subornos não são mais do que variantes irregulares e formalmente ilegais deste tipo de receitas), a actividade política aparece para estes últimos como uma verdadeira profissão. De forma muito clara e objectiva, Weber considera os primeiros como vivendo para a política, enquanto que os segundos vivem da política.
Ao contrário do que possa parecer, não se trata de um preciosismo terminológico. Trata-se de uma diferença fundamental. Desde logo do ponto de vista da ética, já que, como sublinhava Weber, “é a esta que corresponde determinar como deverá ser um homem para ter direito a pôr a mão no leme da História.” Com efeito, a maneira como se encara a acção política adquire para os primeiros o despojamento de uma atitude militante, empenhada, idealista (no sentido da persecução de um ideal), enquanto que, para os segundos, a acção política é meramente instrumental, interesseira, mercenária. A transformação da política numa actividade empresarial engendrou perversidades como a do spoils system americano, que permitia mudar centenas de milhares de funcionários, de acordo com os resultados das eleições presidenciais. Embora os modernos aparelhos de Estado tenham necessidade crescente de contar com a participação de funcionários profissionais, tecnicamente habilitados para as funções que desempenham, esta regra subsiste ainda para aqueles que podemos considerar como “funcionários políticos”, dependentes de lógicas que ultrapassam largamente a competência técnica – o tão conhecido jobs for the boys. O sistema do caucus partidário e o enorme aparelho burocrático (por vezes, com milhares de empregados) destinado a captar os votos das massas é o seu corolário lógico. A crescente complexidade das sociedades modernas, a necessidade de especialização da acção política aos mais diversos níveis e a própria emergência da democracia de massas e do sufrágio universal parecem, assim, explicar esta evolução.
Mas será que o sistema instalado não acaba por pôr em causa a própria essência da democracia? É que mais importante do que saber o que a política pode significar para os seus protagonistas, é ajuizar o que esse protagonismo pode significar para a sociedade. Nas sociedades democráticas, a governação da coisa pública é feita por intermédio dos mecanismos da representação política. Isso significa que quem governa terá que ser a emanação da escolha e da vontade livremente expressa dos governados. Só assim o exercício do poder político é reconhecido e a autoridade do Estado legitimada. Mas para que a democracia seja verdadeiramente democrática, esta regra tem um reverso de importância fundamental; o de que, por definição, os cargos políticos são efémeros e que, em consequência desse princípio, o pessoal político que os ocupa pode sempre ser deles destituído. Desta forma, por vontade expressa dos governados, os governantes poderão deixar de o ser e assumir, com naturalidade, a mesma condição societária daqueles que os demitiram. É esta circunstância que faz, verdadeiramente, a democracia ser democrática. Porque responsabiliza os escolhidos pelos seus actos públicos e porque lhes determina o inevitável caminho da civilidade, uma vez destituídos das suas funções governativas. Introduzindo um saudável princípio de cidadania, o sistema democrático de representação política, pelo menos em termos de referencial teórico, pressupõe uma igualização de estatuto político quer dos governantes, quer dos governados. Cumpridos os seus mandatos, aos primeiros não lhes resta outra caminho que o do regresso à sociedade civil e ao convívio com os seus concidadãos. Só assim se credibiliza a acção pública e legitima a governação.
No nosso entender, a profissionalização da política perverte o princípio democrático da representação. Pelas razões já aduzidas, a perspectiva profissional da política é autárcica. Encerra em si o sentido da sua existência, funcionando segundo uma lógica própria, em circuito fechado. Possibilita a constituição de uma casta de pessoal político, mas dificilmente pode significar convergência ou sequer sintonia com as preocupações dos cidadãos. Perpetuam-se no poder verdadeiras empresas políticas de colocação de quadros nos lugares chave do aparelho de Estado, com vista à maximização da sua influência e, por intermédio desta, dos seus lucros. É este o capital político que o sistema engendra. A Política, no seu sentido mais nobre de debate de ideias e de projectos societários, transforma-se em mero jogo de interesses, distribuição de prebendas, troca de favores e garantias da sobrevivência de uma classe irresponsável (e tantas vezes corrupta). Pensamos ser esta a verdadeira crise das nossas democracias. Esta é, seguramente, a razão do progressivo afastamento dos cidadãos da política e a causa da perene – e muitas vezes injusta – desconfiança dos cidadãos em relação aos políticos.
Só que este afastamento quase ontológico dos políticos profissionais em relação à população, começa a atingir níveis que podem pôr em causa a perpetuação do próprio sistema. Se a montante, os níveis alarmantes de abstencionismo eleitoral ameaçam a já pouca legitimidade das elites governantes, a jusante sobressai um crescente mal-estar da colectividade, traduzido quer em fenómenos de extremismo populista, quer no reforço e empenhamento de novos movimentos de cidadania e formas alternativas de organização política. Os governantes já deram conta desta situação. Para colmatar a discrepância existente, começaram a investir em mecanismos que, pelo contrário, permitam assegurar – ainda que ilusoriamente – a aproximação e o “convencimento” dos cidadãos. Aí está a “moda” do storytelling. Trata-se de uma tendência que surgiu na década de 80 quando, durante a presidência de Ronald Reagan, nos discursos oficiais as stories começaram a substituir (até pela manifesta incapacidade intelectual do dito presidente) os argumentos políticos e a discussão racional das questões. Não é por acaso que esta técnica de marketing político começou nos E.U.A. De todas as sociedades modernas, a sociedade americana é talvez aquela onde as contradições referidas atingem, de há muito, um grau mais elevado.
O storytelling consiste naquilo que, em termos de narrativa literária, se denomina “efeito de realidade”. Uma particular “encenação do eu” faz com que as histórias de vida substituam a aridez e distanciamento dos programas eleitorais e com que a atitude pessoal do candidato valha mais do que a enunciação de princípios e a apresentação de projectos. A dimensão política fica assim diluída numa subjectividade de cariz eminentemente individualista. Para isso recorre-se a um passado – em grande parte fantasioso – do candidato, para que este, através do exemplo da sua própria vida, compartilhe com os seus concidadãos desejos e expectativas e para que assim possa influenciar, através desta suposta proximidade com o comum dos mortais, o seu voto. Como sublinha François Brune, “Tal é o efeito de impregnação da ideologia mediática: a única finalidade da “mensagem” consiste agora em cuidar da imagem.”, no que é uma “perversão de um discurso que, pretensamente centrado na coisa pública, se reduz a evidenciar o seu emissor” (Le Monde Diplomatique, ed. port., Abril de 2007). O fabrico desta sinceridade é cuidadosamente estudado e ensaiado. Desta forma, utiliza-se a “narrativa de si” como instrumento de inculcação político-ideológica, no sentido do “Ouça a minha história: ela é também a sua” e expressa no estribilho “Sou como vocês, votem em mim”. Foi esse o discurso de George Bush, de Nicolas Sarkozy ou do “nosso” Durão Barroso (lembram-se da estória do Zé?). A good story é, assim, aquilo que se exige a qualquer candidato a um cargo público, estratégia discursiva (os Antigos denominavam-na retórica) que, na opinião de Christian Salmon, visa “para persuadir e convencer, de agenciar estórias, narrativas vivas. De impor uma nova ordem narrativa, mais concreta e menos conceptual.” (Le Monde Diplomatique, ed. port., Novembro de 2006). A chave do discurso político passa a ser arranjar uma boa narrativa. No programa “Meet the Press”, o democrata James Carville foi suficientemente explícito: “Os republicanos dizem: “Vamos proteger-vos dos terroristas de Teerão e dos homossexuais de Hollywood.” E nós dizemos: “Somos pelo ar puro, por escolas melhores, por mais cuidados de saúde.” Ou seja, eles contam uma história, nós recitamos uma litania.” (idem). Anos mais tarde, também Bill Clinton vai afirmar que “o que a política deve visar é dar às pessoas, antes de mais, a possibilidade de melhorarem a sua estória” (ibidem). Por isso os consultores políticos chegaram a ser apelidados de politerati (literalmente, políticos literários) ou narratólogos. A falta de conteúdo político e de relevância substantiva das propostas apresentadas é disfarçada pela cumplicidade e eficácia comunicacional de uma “boa história”. A política atinge, verdadeiramente, o seu grau zero.
Temos, entre nós, um exemplo recente disto. O “orgulho” com que o primeiro-ministro português ostenta o seu “percurso académico” comunga desta lógica de entender a política. Querendo fazer passar a ideia que a sua “história de vida” é idêntica à da generalidade dos seus concidadãos, Sócrates não se distancia minimamente das profundas irregularidades de toda a situação. As trapalhadas deste dito “percurso académico” e o delirante processo administrativo que o acompanha e com que Sócrates foi conivente, revelam tudo o que há de pior no nosso sistema político. Não é certamente nada de que ninguém civicamente responsável se possa orgulhar. Por isso, declarações de José Sócrates no Parlamento como “Não vamos pelo caminho da facilidade, que não nos levará a lado nenhum. Vamos, sim, pelo caminho do rigor e da exigência”, “Este caminho de exigência é absolutamente fundamental para o Estado” ou “Queremos um país com uma força de trabalho altamente qualificada” (Visão, 19 de Abril de 2007), assumem uma dimensão verdadeiramente grotesca. É que, como justamente refere Vasco Pulido Valente, no artigo de opinião que assinou no Público de 13 de Abril de 2007, “A política (no PSD ou, depois, sob o patrocínio de Guterres) foi desde o princípio a sua única e autêntica carreira. O resto, a educação formal entrou por hábito, talvez por prudência e manifestamente pela necessidade de um estatuto “respeitável”, que a política ainda hoje não dispensa. (…) Sócrates tirou o seu verdadeiro curso no partido, na Assembleia da República, no Governo e na RTP (com Santana Lopes): e a campanha para secretário-geral do PS acabou, na prática, por ser uma espécie de doutoramento.” Para este autor, nenhum estudante deve seguir o exemplo de Sócrates, já que “Ninguém que pretende genuinamente aprender anda a saltar de escola em escola, ou escolhe uma universidade porque “é mais perto”, ou pede equivalências sob palavra, ou aceita o mesmo professor no mesmo ano para quatro cadeiras, ou se importa em especial com títulos. Sócrates simboliza tudo o que está errado no ensino que por aí existe.”
A reacção perante a denúncia de tão inusitada situação foi ainda mais lamentável. Perante as acusações de conspiração contra o Governo, apenas podemos responder como Rui Ramos: “Sim, a conspiração contra Sócrates tem um nome: chama-se democracia. Terá ele percebido isso?” (Público, 25 de Abril de 2007). Como refere com ironia o historiador, esta “conspiração” começou precisamente há 33 anos, no dia 25 de Abril de 1974, quando os Governos passaram a estar sob o escrutínio da população, começando-se a notar “uma certa irreverência no modo como os cidadãos se referiam em público aos dirigentes do Estado.”



Hugo Fernandez


publicado por albardeiro às 19:10
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