Não, este comentário não é sobre o concurso Os Grandes Portugueses, promovido pela RTP. Não vale a pena perder muito tempo com esse assunto. Porque de uma ideia imbecil só podia resultar o disparate. Por isso, fazemos nossas as palavras do filósofo e escritor francês Paul Valéry, quando disse que Não há nada pior do que as pretensas lições da História, quando esta é mal conhecida e mal interpretada. Daí a impossibilidade de submeter as figuras históricas a falsos plebiscitos e concursos de popularidade idiotas (a não ser que se pretenda analisar a memória histórica daqueles que agora foram investidos na função de julgadores do passado). É evidente que o papel destas personalidades pode ser alvo de discussão e análise. Mas sempre na condição de as integrarmos no seu espaço e tempo próprios (o eu e a circunstância de que falava Ortega y Gasset). Só assim a sua acção é inteligível. Só assim a História faz sentido.
Preocupa-me muito mais, porém, a sensação do anything goes, da absurda mistura das situações, da diluição dos limites, do esvaziamento da complexidade, da ligeireza na abordagem das realidades de qualquer realidade! Tudo fica reduzido ao estatuto de mero fait-divers, pronto a figurar nas revistas de escândalos ou a ser exibido num qualquer reality show, para entreter a populaça. Daqui necessariamente resultam todas as distorções possíveis e imaginárias da História, tendo como corolário lógico o mais descarado revisionismo e o branqueamento dos seus protagonistas. Entramos em pleno reino do faz-de-conta. Isto é que é verdadeiramente preocupante e constitui um inexorável sinal dos tempos.
De resto, não são só as televisões que detêm o exclusivo desta tendência. Veja-se, como exemplo verdadeiramente paradigmático, o caso da revista TV Guia que, em edição do passado dia 25 de Março, se permite publicar um inacreditável retrato sobre as três personalidades mais votadas no concurso atrás referido, respectivamente António de Oliveira Salazar, Álvaro Cunhal e D. Afonso Henriques. Para além de banalidades como a data de nascimento e morte, o local de sepultura, o estado civil ou mesmo o cognome, este alegado retrato inclui uma secção de fases célebres das personagens em causa, de escolha já mais duvidosa. É assim que de Eu, rex atribuído ao primeiro rei de Portugal, se passa para Sou filho adoptivo do proletariado de Álvaro Cunhal, lugar-comum que pouco nos elucida sobre o pensamento e obra vasta (política, literária e artística) do dirigente histórico do PCP mas que, pelo contrário, constitui uma espécie de frase-fétiche sobre a sua origem burguesa, procurando explorar o que essa circunstância permite adivinhar de desejos reprimidos, de frustrações, angústias e de traições de classe, mitos e especulações de que gosta de se alimentar a petite histoire.
Por fim temos um Salazar assertivo com o Sei muito bem o que quero e para onde vou, imagem firme e, nesse sentido, percepcionada como positiva da ordem no meio do caos, encarnação do pater familias complacente mas determinado, severo mas justo. Esquecem-se convenientemente outras afirmações célebres da personagem como Para Angola, rapidamente e em força de tão má memória (e que conduziria o país a uma sangrenta guerra colonial de treze anos), ou expressões emblemáticas como Uns safanões a tempo, eufemismo com que descreveu a repressão brutal e as práticas de tortura da polícia política, ou ainda o Viver habitualmente, verdadeiro slogan do regime e que representou, como se sabe, um estado de marasmo provinciano e de analfabetismo atávico durante quase meio século, colocando o nosso país nos últimos lugares de todos os indicadores de bem-estar e desenvolvimento das sociedades.
A irrelevância da rubrica maior adversário (porque pessoaliza escolhas que têm necessariamente que se colocar noutra dimensão) e o delírio pueril e adivinhatório das rubricas hobbies ou sonhos, transportam-nos para uma fase em que os critérios são já altamente duvidosos e discutíveis. Mas o que é verdadeiramente escandaloso é, no caso de Salazar, a escolha feita na rubrica do acto mais condenável; tão-só a circunstância de Provocar um agravamento grande dos impostos que ninguém gostou! Será possível que não se divise nada mais grave na governação de Oliveira Salazar do que um agravamento grande de impostos? A ser assim, Sócrates que se cuide. Onde estão o autoritarismo da governação, a perseguição política dos adversários, a prisão, tortura e eliminação de muitos dos opositores ao regime, a pobreza e o analfabetismo enaltecidos, o atraso cultural, a manipulação das consciências e a intolerância inquisitorial? Branqueiam-se as realidades, reescreve-se a História. Por isso, até o insuspeito historiador Rui Ramos salienta que a propósito de Salazar, não se discutiu uma personagem histórica, mas uma figura de retórica um cabide imaginário onde o facciosismo de uns e a ignorância de outros penduraram arbitrariamente males e virtudes. (Público, 28/3/07).
O absurdo da situação leva Luís Afonso a escrever no seu Bartoon este delicioso diálogo: Salazar sentir-se-ia hoje bastante desconfortável, diz o barman; quando o cliente pergunta porquê, aquele acrescenta: Esteve metido numa votação e agora anda a promover um debate. (Público, 28/3/07). Só assim se explica, aliás, que no mesmo inquérito, o maior feito atribuído a D. Afonso Henriques tenha sido A invenção de um país. Pois.
Hugo Fernandez