Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!
Domingo, 8 de Outubro de 2006
Cidadania versus Mercadoria

Toda a actividade humana é mercadoria. As funções básicas do Estado - Educação, Justiça, Saúde… - são mercancia; a realidade é já tão estranha e hostil que nos sentimos estranhos a nós e hostis para nós mesmos. A história da modernidade é a história da formação, pela primeira vez, de um sistema-mundo. Nos últimos quinhentos anos, as antigas sociedades humanas, que permaneceram num relativo isolamento durante milénios, foram progressivamente unificadas num novo sistema muito mais amplo. Essa unificação foi feita através da “incorporação” de áreas e povos sob o controlo e influência do antigo subsistema europeu.


Os agentes e promotores dessa transformação construíram as suas próprias formas de compreender e conferir sentido ao que faziam. Primeiro foi a difusão do cristianismo; não obstante, esse discurso correspondia já a uma consciência de um tempo histórico que estava, ele próprio, a ser posto em causa (Reforma). Rapidamente despontou uma consciência nova. O iluminismo forneceu os dois conceitos fundamentais que justificaram o papel universal da burguesia europeia: razão e liberdade. Conceitos congénitos. Até então, a revelação e a tradição é que forneciam normas válidas para a organização da vida social. O pensamento só poderia ocupar um lugar central se também dele fosse possível deduzir princípios e normas universais que ultrapassassem os limites da mera opinião. Enorme desafio esse que foi posto! Os iluministas afirmaram que era possível superá-lo: o pensamento podia produzir esses conceitos universais, e à sua totalidade eles denominaram-no de – razão. A razão pressupunha a liberdade, pois o sujeito só pode atingir a verdade se o seu esforço de conhecimento não reconhecer nenhuma autoridade externa que lhe imponha limites. E a liberdade pressupunha a razão, pois ser livre é poder agir de acordo com o conhecimento da verdade.


Ao contrário dos defensores das tradições, necessariamente vinculadas a sociedades específicas, as vanguardas da modernidade europeia cedo proclamaram a validade universal das suas proposições. As mitologias, as religiões, a arte, a tradição, o direito, o Estado, a política e a economia, tudo foi julgado à luz do ideal homogeneizador do progresso. Pela primeira vez, a história passou a ser encarada como um processo. Inseridas nele, todas as demais formas de estar-no-mundo foram declaradas arcaicas. A crítica à consciência histórica da burguesia europeia, feita por Marx, começou por colocar essa consciência na história. Mau grado, os detractores e o desassossego que provocou, Marx mostrou que o motor da expansão europeia não estava na razão ou na liberdade, considerados como conceitos abstractos. Estava no desenvolvimento pleno, pela primeira vez, das potencialidades e das contradições da forma-mercadoria. Ela esteve presente, é verdade, na grande maioria das sociedades, mas sempre de maneira marginal e limitada. A moderna sociedade europeia libertou-a.


Do ponto de vista Histórico e Sociológico, isso ocorreu a partir da inclusão, no circuito económico, de três elementos que sempre tinham ficado fora dele: a força de trabalho humana, a terra e os meios de produção. Transformar coisas em mercadorias era/é banal, mas não era/é banal transformar em mercadorias os atributos fundamentais das pessoas e da natureza. Só então o “aparato” económico reorganizou à sua imagem e semelhança, pela primeira vez na história humana, toda a vida social. Todos os agentes sociais relevantes, incluindo os detentores do poder político, se inseriram nele. Toda a produção passou a ser produção de mercadorias, e a produção de mercadorias passou também a ser feita por meio de mercadorias. Ao fechar-se, como a “pescadinha de rabo na boca”, o circuito económico tornou-se imune a forças externas que lhe eram hostis.


Nos meados do século XIX, o mesmo Marx escreveu que a sociedade assim organizada, desenvolveria, pelo menos, três características novas:


a) seria compelida a aumentar incessantemente a massa de mercadorias, quer fosse pelo aumento da capacidade de as produzir, quer fosse pela transformação de mais bens, materiais ou simbólicos, em mercadoria; ou seja, no limite, tudo seria transformado em mercadoria;


b) seria compelida a ampliar o espaço geográfico inserido nesse circuito, de modo que mais riquezas e mais populações dele participassem; isto é, no limite, esse espaço seria todo o planeta;


c) seria compelida a criar permanentemente novos bens e novas necessidades; como as “necessidades do estômago” são limitadas (julgo eu!), esses novos bens e essas novas necessidades, criados para dar sustentação a uma acumulação ilimitada de riqueza abstracta, seriam, cada vez mais, bens e necessidades voltados para a fantasia, que também é ilimitada.


Essa nova sociedade desdobrar-se-ia em três direcções fundamentais:


1. promoveria uma revolução técnica incessante (voltada essencialmente para expandir o espaço e contrair o tempo da acumulação),


2. realizaria uma profunda revolução cultural (para fazer surgir um novo homem portador daquelas novas necessidades em expansão)


3. e formaria o sistema-mundo (para incluir o máximo de populações no processo mercantil).


Tudo isso, salvo melhor opinião, se confirmou. De certa forma, esse processo já pertence ao passado, embora ainda seja recente. Mas o percurso teórico de Marx não foi interrompido aí. O seu verdadeiro lance de génio foi ter percebido que o capital procuraria ampliar as suas possibilidades de acumulação numa forma (que chamou D – D’) na qual ele (capital) nunca deixaria de existir como riqueza abstracta. Pasme-se! É, exactamente, o que continua a acontecer hoje, com a obstinação incessante da acumulação financeira global que na sua ânsia de domínio de tudo e todos, faz tábua rasa dos direitos mais elementares das pessoas, reduzindo tudo a uma mera contabilidade de deve e haver. Sabemos que Marx conjecturou que quando essa forma se tornasse predominante, a civilização do capital entraria em crise. Pois, ao repudiar as “coisas”, isto é, o trabalho e a actividade produtiva e ao afastar-se da realidade quotidiana, a acumulação de capital não poderia continuar a ser (mais) o eixo em torno do qual a vida social se organiza. A forma-mercadoria teria então de ser superada ou, pelo menos, remetida novamente para um lugar secundário, sendo substituída por algum outro princípio de organização da vida social. Será que estamos mesmo em crise?!


Não obstante, esta pontaria certeira no cerne da “economia política”: Marx nunca deixou de ser um filósofo, mesmo quando fez a crítica da economia política. Todavia, eis o que nos quis dizer: mantida sob o comando do capital e aprisionada nos sucessivos rearranjos da forma-mercadoria, a capacidade criadora da humanidade – capacidade que decorre da sua liberdade essencial, ontológica – poderia tornar-se muito mais destrutiva numa época em que o capitalismo atingisse um estádio senil, ou quando a capacidade técnica da própria humanidade fosse muito mais desenvolvida. Dependendo, no entanto, de quais fossem as forças sociais que predominassem então – essa capacidade técnica expandida poderia ser colocada ao serviço da liberdade (aqui surgia a utopia: com a abolição do trabalho físico, cansativo, mecânico e alienado) ou da destruição (aqui a realidade: com a escalada do desemprego e da guerra).


Essa parece ser a disjunção mais relevante proposta por Marx e a sua vaticinação mais certeira. Não haja acanhamento: o capitalismo venceu e segue triunfante. Estamos, finalmente, num sistema-mundo em que tudo é mercadoria, em que se produz loucamente para se consumir mais loucamente, e se consome loucamente para se produzir mais loucamente. Produz-se por dinheiro, especula-se por dinheiro, mata-se por dinheiro, corrompe-se por dinheiro, organiza-se toda a vida social por dinheiro, só se pensa em dinheiro. Cultua-se o dinheiro, o verdadeiro Tótem da nossa época – uma divindade indiferente aos homens, inimigo da arte, da cultura, da solidariedade, da ética, da vida do espírito, do afecto. Uma divindade que se tornou imensamente mediocrizante e destrutivo. E que é insaciável: a acumulação de riqueza abstracta é, por definição, um processo sem limites.


O capitalismo venceu. Será que é invencível? Talvez, agora, possa perder! Será pedir muito, se dissermos que esse tem que ser o nosso desafio… Ou resignamo-nos «juntando-nos a ele» com a “cabeça entre as orelhas”. Pois, antes que o novo tenha condições de surgir, e procurando nas palavras de Hegel o “refúgio”, “é preciso que o antigo atinja a sua forma mais absoluta, que é também a mais simples e a mais essencial, abandonando as mediações de que necessitou para se desenvolver”. O momento do auge de um sistema, quando as suas potencialidades desabrocham plenamente, é o momento que antecede o seu esgotamento e a sua superação. As crises do mundo contemporâneo mostram que a acumulação de capital e a sua forma-mercadoria não podem continuar a ser o princípio organizador da vida social. É o desafio que está posto para nós actualmente. Há um património social e de cidadania que não podemos deixar que o desbaratem…!


Depois desta reflexão, quero agradecer ao César Benjamin que é autor de A Opção Brasileira (Contraponto, 1998, nona edição) e Bom Combate (Contraponto, 2004).



publicado por albardeiro às 15:30
link do post | comentar | ver comentários (1) | favorito

pesquisar
 
Fevereiro 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3

4
5
6
7
8
9
10

12
13
14
15
16
17

18
19
21
22
23
24

25
26
27
28
29


posts recentes

Seminário em Alenquer - A...

O MOMENTO DA VERDADE (em ...

ROLO COMPRESSOR

Reflexão sobre o artigo d...

AS PERGUNTAS

Valorizar os servidores d...

MÍNIMOS

Como será a educação daqu...

EXCESSIVO

DEMOCRACIA

arquivos

Fevereiro 2024

Janeiro 2024

Outubro 2023

Julho 2023

Junho 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Outubro 2020

Julho 2020

Junho 2020

Abril 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Janeiro 2019

Novembro 2018

Setembro 2018

Julho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Janeiro 2016

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Abril 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Setembro 2008

Julho 2008

Junho 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

Agosto 2004

Julho 2004

Junho 2004

Maio 2004

Abril 2004

Março 2004

blogs SAPO
subscrever feeds
Em destaque no SAPO Blogs
pub