Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!
Sexta-feira, 1 de Setembro de 2006
TRANSPARÊNCIAS

Ensinou-nos Karl Marx que nunca devemos tomar a realidade pelo que ela aparenta e devemos sempre indagar os porquês de tudo o que nos rodeia. Foi esta atitude de permanente interrogação que permitiu que este pensador tenha feito a mais completa e rigorosa análise da sociedade da sua época e é esta atitude que está na base do pensamento marxista desde então. Só assim a complexidade do real se torna inteligível e, portanto, modificável. O objectivo é tornar as coisas claras. O marxismo representa, desta forma, um verdadeiro corte epistemológico com o pensamento tradicional dominante, o que lhe permite, aliás, desenvolver um potencial de luta social e de intervenção política ímpares.


É a este registo de rigor e transparência que se comprometem todos aqueles – indivíduos ou organizações – que se reclamam do marxismo. Pelo menos devia ser. Ora o afastamento de Carlos Sousa da presidência da Câmara Municipal de Setúbal pelo PCP é tudo menos um processo claro. As explicações aduzidas são mesmo (e perdoe-se o plebeísmo) uma grande treta. Do comunicado da Comissão Concelhia de Setúbal do PCP, reunida a 22 de Agosto, pode ler-se que esta decisão de avançar com a substituição do vereador Aranha Figueiredo e do presidente Carlos Sousa, se devia à “necessidade assumida de renovar energias, rejuvenescer e reforçar a equipa, para melhor enfrentar os desafios que temos pela frente, no seguimento do projecto autárquico apresentado pela CDU em Setúbal.” (Avante!, 24/8/06). Isto quer dizer precisamente o quê? Que o autarca a quem o PCP deu toda a confiança há dez meses atrás entrou num processo acelerado de degenerescência, a ponto de haver necessidade de um rejuvenescimento urgente? Não me parece que seja esse o caso. Tratar-se-ia antes de incompetência no desempenho das suas funções? Teria perdido a confiança da população? Mas a ser assim, não se percebe a continuação do referido comunicado, onde se refere “Saudamos os camaradas que mudam de tarefa [utilizo o itálico para sublinhar o eufemismo] saindo do actual Executivo, destacados autarcas com longos anos de actividade, que têm dignificado o PCP e a CDU, assim como o Poder Local Democrático, avaliados pela população e reconhecidos por gente dos mais variados quadrantes sociais, económicos e políticos.”


Afinal, o que se passa? Apetece dizer, como faz o cartonista Luís Afonso no Bartoon (Público, 25/8/06) com a sua insuperável ironia e a propósito da declaração do PCP “por vezes, os melhores quadros podem não ser os quadros melhores para resolver problemas concretos”, que “A nível da semântica, não há quem dê melhor contributo à democracia portuguesa!...” Para uma organização política que se reclama de marxista isto não só é obviamente insuficiente como muito grave. Aliás, verifica-se uma preocupante falta de sentido das realidades e de incapacidade para a análise das situações concretas, quando Vítor Barata, coordenador da concelhia de Setúbal do PCP em entrevista ao Público (24/8/06), desvaloriza a dimensão eminentemente pessoal da votação nas eleições autárquicas, sublinhando que os eleitores votam “primeiro num programa e depois nas pessoas que compõem a lista”. Numas eleições autárquicas? Que flagrante cegueira!


Pelo contrário, o que a realidade mostra insistentemente é a tendência para que, a este nível, os aparelhos partidários sejam subordinados ao carisma e aos propósitos dos candidatos locais, muito mais próximos das populações e dos seus anseios. Como exemplo, basta ver o que se passou nas últimas eleições, onde candidatos houve que não só venceram contra os seus partidos de origem, como venceram quando se encontravam em situações pessoais de legalidade mais do que duvidosa. Só assim se podem explicar as discrepâncias de resultados que se verificam entre as eleições autárquicas e as eleições legislativas. Ou, para o efeito, quaisquer outras. Isto parece-me evidente!


Na falta de transparência deste processo, também Carlos Sousa não fica melhor. Surpreendido pela decisão do seu partido e manifestando mesmo o seu desacordo – conforme revela em entrevista ao jornal Público (24/8/06) –, como “pessoa disciplinada” que diz ser e fiel aos princípios do centralismo democrático do PCP, aceitou de imediato o seu afastamento da Câmara de Setúbal. A lógica da militância comunista sobrepôs-se, desta forma, à lucidez do pensamento marxista. Esta atitude é especialmente difícil de entender por parte de quem tem “defendido, no âmbito da democracia participada que tenho praticado ao longo dos anos, que o cidadão deve intervir, cada vez mais, na vida pública.” e que assinou, em 2002, um documento da ala renovadora do PCP em defesa, precisamente, do reforço do debate interno no partido. Marx ensinou-nos que, para transformar o mundo, havia que quebrar tabus, denunciar hipocrisias e rejeitar falsidades. Quem lhe segue o exemplo?


 Hugo Fernandez



publicado por albardeiro às 17:07
link do post | comentar | favorito

pesquisar
 
Dezembro 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5
6
7

8
9
10
11
12
13
14

15
16
17
18
19
20
21

22
23
24
25
26
27
28

29
30
31


posts recentes

RESSACA

Quando acordei, a cultura...

LIDERAR ESTUDOS GLOBAIS: ...

Relações Luso-Nipónicas –...

INTERROGAÇÕES

A transformação digital n...

Carta Aberta ao universo ...

FACES DA DESIGUALDADE

A COMPARAÇÃO

A FUSÃO

arquivos

Dezembro 2024

Novembro 2024

Outubro 2024

Setembro 2024

Agosto 2024

Junho 2024

Maio 2024

Março 2024

Fevereiro 2024

Janeiro 2024

Outubro 2023

Julho 2023

Junho 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Outubro 2020

Julho 2020

Junho 2020

Abril 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Janeiro 2019

Novembro 2018

Setembro 2018

Julho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Janeiro 2016

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Abril 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Setembro 2008

Julho 2008

Junho 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

Agosto 2004

Julho 2004

Junho 2004

Maio 2004

Abril 2004

Março 2004

blogs SAPO
subscrever feeds
Em destaque no SAPO Blogs
pub