Ensinou-nos Karl Marx que nunca devemos tomar a realidade pelo que ela aparenta e devemos sempre indagar os porquês de tudo o que nos rodeia. Foi esta atitude de permanente interrogação que permitiu que este pensador tenha feito a mais completa e rigorosa análise da sociedade da sua época e é esta atitude que está na base do pensamento marxista desde então. Só assim a complexidade do real se torna inteligível e, portanto, modificável. O objectivo é tornar as coisas claras. O marxismo representa, desta forma, um verdadeiro corte epistemológico com o pensamento tradicional dominante, o que lhe permite, aliás, desenvolver um potencial de luta social e de intervenção política ímpares.
É a este registo de rigor e transparência que se comprometem todos aqueles indivíduos ou organizações que se reclamam do marxismo. Pelo menos devia ser. Ora o afastamento de Carlos Sousa da presidência da Câmara Municipal de Setúbal pelo PCP é tudo menos um processo claro. As explicações aduzidas são mesmo (e perdoe-se o plebeísmo) uma grande treta. Do comunicado da Comissão Concelhia de Setúbal do PCP, reunida a 22 de Agosto, pode ler-se que esta decisão de avançar com a substituição do vereador Aranha Figueiredo e do presidente Carlos Sousa, se devia à necessidade assumida de renovar energias, rejuvenescer e reforçar a equipa, para melhor enfrentar os desafios que temos pela frente, no seguimento do projecto autárquico apresentado pela CDU em Setúbal. (Avante!, 24/8/06). Isto quer dizer precisamente o quê? Que o autarca a quem o PCP deu toda a confiança há dez meses atrás entrou num processo acelerado de degenerescência, a ponto de haver necessidade de um rejuvenescimento urgente? Não me parece que seja esse o caso. Tratar-se-ia antes de incompetência no desempenho das suas funções? Teria perdido a confiança da população? Mas a ser assim, não se percebe a continuação do referido comunicado, onde se refere Saudamos os camaradas que mudam de tarefa [utilizo o itálico para sublinhar o eufemismo] saindo do actual Executivo, destacados autarcas com longos anos de actividade, que têm dignificado o PCP e a CDU, assim como o Poder Local Democrático, avaliados pela população e reconhecidos por gente dos mais variados quadrantes sociais, económicos e políticos.
Afinal, o que se passa? Apetece dizer, como faz o cartonista Luís Afonso no Bartoon (Público, 25/8/06) com a sua insuperável ironia e a propósito da declaração do PCP por vezes, os melhores quadros podem não ser os quadros melhores para resolver problemas concretos, que A nível da semântica, não há quem dê melhor contributo à democracia portuguesa!... Para uma organização política que se reclama de marxista isto não só é obviamente insuficiente como muito grave. Aliás, verifica-se uma preocupante falta de sentido das realidades e de incapacidade para a análise das situações concretas, quando Vítor Barata, coordenador da concelhia de Setúbal do PCP em entrevista ao Público (24/8/06), desvaloriza a dimensão eminentemente pessoal da votação nas eleições autárquicas, sublinhando que os eleitores votam primeiro num programa e depois nas pessoas que compõem a lista. Numas eleições autárquicas? Que flagrante cegueira!
Pelo contrário, o que a realidade mostra insistentemente é a tendência para que, a este nível, os aparelhos partidários sejam subordinados ao carisma e aos propósitos dos candidatos locais, muito mais próximos das populações e dos seus anseios. Como exemplo, basta ver o que se passou nas últimas eleições, onde candidatos houve que não só venceram contra os seus partidos de origem, como venceram quando se encontravam em situações pessoais de legalidade mais do que duvidosa. Só assim se podem explicar as discrepâncias de resultados que se verificam entre as eleições autárquicas e as eleições legislativas. Ou, para o efeito, quaisquer outras. Isto parece-me evidente!
Na falta de transparência deste processo, também Carlos Sousa não fica melhor. Surpreendido pela decisão do seu partido e manifestando mesmo o seu desacordo conforme revela em entrevista ao jornal Público (24/8/06) , como pessoa disciplinada que diz ser e fiel aos princípios do centralismo democrático do PCP, aceitou de imediato o seu afastamento da Câmara de Setúbal. A lógica da militância comunista sobrepôs-se, desta forma, à lucidez do pensamento marxista. Esta atitude é especialmente difícil de entender por parte de quem tem defendido, no âmbito da democracia participada que tenho praticado ao longo dos anos, que o cidadão deve intervir, cada vez mais, na vida pública. e que assinou, em 2002, um documento da ala renovadora do PCP em defesa, precisamente, do reforço do debate interno no partido. Marx ensinou-nos que, para transformar o mundo, havia que quebrar tabus, denunciar hipocrisias e rejeitar falsidades. Quem lhe segue o exemplo?
Hugo Fernandez