Monsaraz Museu Aberto, no ano em que se comemora o 20º aniversário sobre a sua primeira realização (em 1986), os meus conterrâneos quiseram voltar de certa forma ao ponto de partida. Por isso escolheram o tema da Cultura Popular e da Tradição Oral, a partir do verso do poeta José Gomes Ferreira "Nunca ouvi um alentejano cantar sozinho" que dá o mote à edição de 2006. E o facto de ser verdade, que um alentejano nunca canta sozinho, deu-lhes a vontade de convidar outros que pelo mundo fora fazem parte desse grande grupo que constrói, preserva e recria aquilo a que chamamos a Cultura Popular e dentro dela a Oralidade. E porque nunca cantamos sozinhos, pretenderam, certamente, com esta edição dizer mais do que tudo que só a cultura une e pode eliminar barreiras, que a cultura popular é em primeiro lugar um factor de coesão social que promove práticas solidárias. Passem por lá... um desses dias!
Vitorino e Janita Salomé abrem o festival Monsaraz Museu Aberto
Os alentejanos Vitorino e Janita Salomé vão interpretar as melodias mais marcantes das suas carreiras musicais na abertura do festival Monsaraz Museu Aberto, dia 22 de Julho, pelas 22:00 horas, no Castelo da vila medieval. Um concerto onde vai predominar a música de raiz popular portuguesa, com especial destaque para as influencias do Cante Alentejano e Mediterrânico. Pleno de cumplicidade estética e musical, neste espectáculo será feita uma homenagem a Zeca Afonso, grande mestre da musica contemporânea portuguesa, amigo e companheiro de canções destes dois cantores alentejanos.
O Monsaraz Museu Aberto, que vai decorrer entre os dias 22 e 30 de Julho, é um festival de artes e artes do espectáculo, organizado pela Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz com periodicidade bienal, nesta edição dedicado à "Cultura Popular e Tradição Oral". O programa do festival integra espectáculos de reconhecida qualidade, um ciclo de cinema documental, exposições e uma conferência sobre cultura popular que reunirá antropólogos nacionais e estrangeiros.
O maestro, compositor e interprete brasileiro Francis Hime, encerra a sua curta digressão portuguesa de quatro espectáculos na segunda noite do Monsaraz Museu Aberto, dia 23 de Julho, pelas 22:00 horas, com a primeira parte a cargo de Nuno do Ó. Francis Hime é um símbolo da excelência da Música Popular Brasileira (MPB), a síntese da união da música popular com a clássica que, pela sua singularidade, atingiu no Brasil, uma enorme popularidade. Maestro, com formação em piano clássico, Francis Hime viveu alguns anos na Suíça, onde aperfeiçoou a sua técnica. Na década de 60, afirma-se definitivamente no cenário musical ao compor, em parceria com artistas do porte de Vinícius de Moraes, Chico Buarque e Paulo César Pinheiro, algumas das mais belas canções brasileiras da segunda metade do século XX.
Na segunda-feira, a partir das 22:00 horas, Monsaraz recebe a música cigana de Budapeste com Romano Drom. O poder da sua música tradicional está nas vozes e nos jogos vocais, mas também na utilização da língua romena como língua mãe, reflectindo tanto a tradição como a modernidade da música cigana "oláh". O grupo Romano Drom, que significa "estrada cigana" em romeno, editou o primeiro álbum "Déta Dévla" na Hungria, em 1999, encontrando-se actualmente a preparar um novo disco para sair no Outono deste ano. A música dos Romano Drom é caracterizada pela sua energia masculina e sinceridade, e é provavelmente o único grupo que teve sucesso na integração de uma instrumentalização poderosa, a qual nos dá um tipo de som nunca antes alcançado neste tipo de melodias com guitarras, percussões, acordeão e violino juntos.
A noite de terça-feira, dia 25 de Julho, será preenchida pelas polifonias femininas da Sérvia com o cantar autêntico de Dinarke. Este quarteto feminino surgiu há três anos e baseia o seu trabalho na preservação e animação dos traços musicais tradicionais da parte Dinárica da Península Balcânica, concentrando-se principalmente na tradição musical sérvia. As Dinarke têm como tarefa principal interpretar uma canção exactamente da mesma forma que a original, pois é assim que a voz autêntica tem sido preservada durante séculos, a voz que permanece para os descendentes. Do ponto de vista etno-musical, esta música vai desde os tons raros e por descobrir das altas áreas montanhosas (partes da Sérvia, Bósnia Herzegovina, Croácia e Montenegro) até ao bem conhecido cantar "on bass", tipo de cantar que existe como uma herança cultural do oeste e é mais comum nos dias de hoje, envolvendo alguns elementos de culturas próximas.
O festival Monsaraz Museu Aberto recebe na quarta-feira a banda britânica Off The Wall - A Tribute to Pink Floyd. Este concerto, assumido como uma réplica dos espectáculos dos Pink Floyd, uma das bandas mais geniais de todos os tempos, impressiona pela qualidade visual pois a ideia passa por recriar o ambiente progressista e psicadélico proporcionado pela habitual grandiosidade das suas actuações. Fumos, explosões de luz e pirotécnicas e projecções de imagens são alguns dos ingredientes do espectáculo que tem maravilhado plateias um pouco por todo o Mundo. Ao tradicional jogo de luzes que sublinha as diferentes ambiências e cambiantes do espectáculo, somam-se uma série de efeitos especiais capazes de "encher o olho" do espectador. O concerto de Monsaraz, aguardado com muita expectativa, vai passar em revista a carreira dos Pink Floyd desde os tempos de Syd Barret até ao último trabalho de originais do grupo ("Divison Bell", de 1994), e é o único assegurado para Portugal até ao final do ano integrado na digressão mundial "Wish You Were Here ... Tour 2006". Os fãs dos Pink Floyd vão ouvir os grandes clássicos como "Fearless", "Shine On you Crazy Diamond", "Run Like Hell", "What Do You Want From Me", "Arnold Layne" (da pré-história da banda), mas também "Time", "Money", "Wish You Were Here", "Another Brick in the Wall", "Great Gig in the Sky" e "Confortably Numb", entre muitos outros.
Também muito aguardado no Monsaraz Museu Aberto é o concerto de Mariza. A fadista sobe ao palco do Castelo na noite de quinta-feira, dia 27 de Julho, para interpretar temas do seu último álbum "Transparente", produzido por Jaques Morelenbaum e editado mundialmente em 2005, bem como aqueles que têm constituído assinalável êxito dos seus dois discos anteriores, "Fado em mim" e "Fado curvo". O espectáculo de Monsaraz integra a tournée mundial "Transparente" 2005/2006", que Mariza vem apresentando nos mais prestigiados recintos musicais de todo o mundo como o Carnegie Hall de Nova Iorque, o Royal Festival Hall em Londres, o Olympia de Paris, a Sydney Opera House, a Berlin Philarmonie ou o Hollywood Bowl em Los Angeles, tendo sido a única portuguesa a participar no Live 8, organizado por Bob Geldof.
O fado vai também preencher o festival Monsaraz Museu Aberto na sexta-feira. "A Moda das Tranças Pretas" é um espectáculo com Vicente da Câmara, José da Câmara, António Pinto Basto, Maria João Quadros, Teresa Siqueira, Carmo Rebelo de Andrade, Carlos Pegado, Manuel da Câmara e Rodrigo Pereira, idealizado para assinalar os 50 anos sobre a data em que D. Vicente da Câmara compôs aquele que seria o tema (A Moda das Tranças Pretas) mais emblemático da sua carreira e um dos fados mais apreciado pelo público português. Neste espectáculo, D. Vicente da Câmara tem dois filhos a cantar - Manuel e José da Câmara - e também já dois netos - o Vicente e o João, este na guitarra portuguesa - para além de muitos amigos seus.
Os grupos corais não vão faltar no Monsaraz Museu Aberto, este ano justamente dedicado à "Cultura Popular e Tradição Oral". No sábado, a partir das 18:30 horas, no Adro da Igreja, vão actuar o Grupo Coral e Etnográfico "Os Camponeses de Pias", o Grupo Coral e Etnográfico "Vozes de Casével", o Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa, o Grupo Coral e Etnográfico Amigos do Clube Recreativo do Feijó e o Grupo Coral da Freguesia de Monsaraz.
O último dia do festival vai fechar com um espectáculo equestre inédito, baseado na obra escrita do Conde de Monsaraz e que retracta o Alentejo numa simbiose perfeita com o cavalo Lusitano. Esta representação reúne os melhores cavaleiros da Equitação Tradicional Portuguesa, fadistas, declamadores, bailarinos, cantares tradicionais alentejanos, cavalos e touros, tudo isto enquadrado pelas muralhas da Praça do Castelo de Monsaraz e por um pano de fundo fantástico de som e luz. No final do festival haverá o primeiro espectáculo de fogo de artifício desde o Grande Lago de Alqueva, que visto do alto de Monsaraz deverá ser inesquecível.
Várias vezes tenho discordado da opinião de Pedro Norton. Penso até que são mais as ocasiões em que divirjo dos seus raciocínios do que aquelas em que neles me revejo. Mais uma vez isso aconteceu, com um artigo publicado na revista Visão de 29 de Junho. Citando o sombrio retrato que o professor Fernando Machado fez no Expresso da semana anterior sobre o brutal aumento das desigualdades sociais no nosso país Portugal está a tornar-se numa sociedade de contornos dualistas onde quer a opulência quer a pobreza se vão acentuando. (...) Temos a distribuição de rendimento mais desigual e a segunda taxa de risco de pobreza mais elevada da Europa. , Pedro Norton contrapõe-lhe o editorial do The Economist dessa mesma semana que faz, segundo o autor, uma corajosa e politicamente incorrecta defesa da desigualdade, dando como exemplo a afirmação daí retirada de que a desigualdade não é inerentemente errada. Perante estas duas afirmações aparentemente tão antitéticas, Pedro Norton divisa uma real convergência de opiniões. E justifica este acordo com mais uma citação deste último jornal: a desigualdade não é errada desde que se verifiquem três condições: primeiro, a sociedade como um todo está a ficar mais rica; segundo, existe uma rede de segurança para os mais pobres; e terceiro, qualquer pessoa, independentemente da sua classe, raça, credo ou sexo, tem a oportunidade de subir no sistema.
O que falha, então, em Portugal? Pedro Norton esclarece: A sociedade, é sabido, não está a ficar mais rica como um todo. (...) a rede de segurança para os mais pobres continua, em grande medida, a ser uma miragem que não evita a multiplicação de casos de miséria extrema. E, porventura o problema mais difícil de erradicar, em Portugal nem todos têm uma real oportunidade para subir no sistema.. Conclui com uma afirmação lapidar: Em Portugal está longe de ser indiferente ser-se filho de um doutor de Lisboa ou de um camponês de Moimenta. Que extraordinária clarividência! Que perspicácia de análise! Passe embora o lugar-comum do doutor de Lisboa e do camponês de Moimenta, Pedro Norton descobre a pólvora: Seria bom portanto que atacássemos de vez o problema da desigualdade no ponto onde ele precisa verdadeiramente de ser atacado: a desigualdade de oportunidades. E, depois de opiniões tão ajuizadas, o disparate: Por pura demagogia, por ignorância ou por miopia dos mais variados grupos de interesses, ainda não nos livrámos do mito marxista da bondade do igualitarismo. Resultado: no papel somos todos iguais. Na realidade somos todos muito pouco. É a cereja em cima do bolo.
Vamos por partes. O paradigma igualitário foi fruto das revoluções liberais que, há duzentos anos, derrubaram as monarquias absolutistas e aboliram o sistema aristocrático-corporativo de organização social, consubstanciando-se nos primeiros textos constitucionais com o postulado da igualdade de todos perante a lei. À discriminação do privilégio, contrapunha-se a igualdade dos cidadãos. É claro que esta ordem das coisas interessava sobremaneira a uma burguesia que precisava de assegurar a liberdade contratual necessária aos seus negócios e uma igualdade de condição que permitisse o seu domínio social e o controlo do poder político. O que o liberalismo burguês propunha era precisamente que no papel somos todos iguais. Tudo isto, como é bom de ver, muito antes da existência de qualquer ideia marxista.
Aliás, se há algo que desde o início caracterizou a postura político-ideológica do marxismo foi precisamente a crítica ao carácter formal de uma igualdade que, ainda que plasmada na letra da lei, dificilmente podia atalhar às mais gritantes e efectivas desigualdades sociais existentes. A virulência desta crítica chegou mesmo, em diversas ocasiões, a obscurecer o real progresso civilizacional ainda que com todas as limitações conhecidas que representou a emergência deste paradigma igualitário na normatividade jurídico-política da sociedade liberal. Ao longo da história dos dois últimos séculos, toda a actuação dos vários movimentos e correntes de inspiração marxista visou, pelo contrário, tentar dotar de substancialidade aquilo que parecia não passar de um tópico abstracto de discursos oficiais ou o eco de um longínquo horizonte utópico. A luta pela igualdade de oportunidades e por uma sociedade mais justa, motivou a extensão dos direitos cívicos, sociais e económicos que permitiram melhorar o nível de vida de largas camadas da população.
Perante o evidente agravamento das desigualdades nas modernas sociedades capitalistas e às lutas sociais desencadeadas, o pensamento liberal dominante procurou, face às críticas marxistas, encontrar soluções que simultaneamente mitigassem a existência da pobreza mais extrema e mantivessem intacta a ordem social existente. Entre muitos outros autores, são exemplos desta preocupação John Rawls com o seu paradigmático Uma Teoria da Justiça, Ronald Dworkin, Ralf Darhendorf ou Norberto Bobbio. Todos eles preconizaram, tal como consta no editorial do The Economist, que a manutenção das desigualdades sociais que a natural desigualdade de capacidades e motivações entre os indivíduos parece justificar devia permitir assegurar sempre a protecção dos mais pobres e fazer com que o aumento da riqueza de alguns acabe por reverter em benefício de todos. Assegurar, por outro lado, que as oportunidades estejam abertas a todos e não tenham outros entraves para além do mérito e da competência. Mantendo-se, portanto, o princípio da desigualdade, procurou-se compensá-lo com paliativos de ordem ético-moral que evitassem disparidades de riqueza demasiado escandalosas.
Acontece, no entanto, que não só as políticas neo-liberais não tiveram minimamente em conta estas (ou, para o efeito, quaisquer outras) preocupações humanistas, como se verifica um agravamento generalizado da pobreza e um aumento exponencial das desigualdades sociais. Ora aqui reside, precisamente, aquilo que os marxistas sempre consideraram a grande mistificação ideológica da ordem capitalista. Apregoando-se formalmente a igualdade de oportunidades, não se dão efectivas condições para cumprir esse desiderato. Antes pelo contrário. Aliás, qualquer marxista sabe que dificilmente podia ser outro o resultado pois, no actual sistema, apesar da igualdade legal, o acesso diferenciado à propriedade e aos meios de produção, bem a lógica implacável da maximização dos lucros, obriga à reprodução da desigualdade material na repartição da riqueza.
Em todo o caso, só uma total distorção do pensamento político e da história recente, pode assacar aos marxistas a falta de denúncia deste problema. Querer transformar o algoz em vítima parece-nos uma intenção absolutamente reprovável. Por isso, ou Pedro Norton está enganado ou quer enganar-nos.
Hugo Fernandez