Uma Campanha Alegre ou a crise da política!
Começa a faltar muito pouco para o dia 22 de Janeiro, por mais cenários que imaginemos, não somos capazes de deixar de constatar que esta (eleição) está a ser uma eleição que cristaliza um padrão. Poderíamos dizer que estamos atolados num tipo bem particular de eleição sem política. Quem com atenção se dispuser a acompanhar as campanhas dos candidatos ao principal cargo político do País, certamente, não terá dificuldades para constatar que elas estão fortemente concentradas naquela dimensão que deveríamos chamar paradoxalmente de executiva. Para os candidatos, o mais alto magistério do Estado tornou-se sinónimo de governar, isto é: actividade adequada para quem se mostre possuidor de uma virtude empreendedora, de uma capacidade de realização recheada de habilidade administrativa, tirocínio gerencial/geracional e determinação. Até mesmo os candidatos mais combativos e coerentes com a sua doutrina não fogem à regra: querem que os eleitores os vejam como capazes de lançarem um outro olhar sobre o fazer, ou de fazer as mesmas coisas de um outro modo.
Devemos uma explicação ao leitor para que não haja confusões: não estou a desprezar a dimensão administrativa inerente aos cargos políticos de natureza eminentemente executiva. Tais cargos existem para organizar e implementar decisões que atendam às reivindicações, carências e aspirações dos cidadãos. É ponto assente que não há como governar sem fazer, sem realizar, sem executar, aliás, não concebemos as coisas de outra forma! O que estamos a sugerir é que ser Presidente da República não é isso e é mais do que isso. Sobretudo para quem se põe no campo da democracia, presidir é antes de tudo dirigir, agregar e transformar interesses, contribuir para a construção de novos nexos comunitários, nomeadamente, quando salta à vista que este modelo de desenvolvimento está esgotado um país de abrolhos e de espinhos como o catalogou D. Pedro IV quando entrou em Portugal para repor os direitos ao trono da sua filha D. Maria.
Quem quer que seja, valendo-se de um curriculum, um projecto e uma ambição, decide pedir votos, o mínimo que poderíamos esperar é que ele qualificasse esse seu pedido com uma proposição substantiva dedicada a orientar os que nele desejarem votar, deixando clara a perspectiva que adoptará em relação à sociedade futura, às instituições em vigor, à ideia do viver junto. O mínimo que poderemos esperar é que revele a sua asserção ética, o seu estatuto valorativo, o seu delineamento de futuro, a sua ideologia. Ou, para falar de modo mais directo, o seu projecto político.
Infelizmente, nos postulantes com mais hipóteses de serem eleitos, é isso que não conseguimos encontrar na presente disputa eleitoral. É muito pouco dizerem o que já foram. Para além de generalidades acerca do desenvolvimento, emprego e combate à questão/crise social, perguntamos se já puderam/pudemos, verdadeiramente, ouvir algum candidato dizer que importância tem a sua candidatura para a democracia? O que é que ele pode oferecer aos cidadãos em termos de concepção de como viver em sociedade? Ou como concatena as suas proclamadas habilidades com as possibilidades oferecidas pela política de construir um espaço autenticamente público? Só temos assistido a evasivas, ninguém se refere a nenhum desses pontos.
Este silêncio tem certamente uma explicação. Não se trata apenas de constatar a maior ou menor mancomunação dos candidatos, mas de perceber que nos convertemos todos em vítimas de um processo maior, que nos envolve: a crise da política e nós que pensávamos que eram só os laranjinhas, constatamos que os do roseiral não aprenderam nada! Resta saber se por incapacidade ou se não lhes interessou
Queremos dizer com isso que a luta eleitoral que se trava hoje na nossa sociedade parece destituída de objectivos claros precisamente porque a política está a perder o seu húmus, ou seja, está a deixar de ser um instrumento de mediação, elo de ligação entre o individual e o colectivo, entre interesses particulares e "bem comum". A política já não se consegue viabilizar como factor de construção de um espaço onde os conflitos se possam manifestar sem produzir destruições recíprocas. Em decorrência, acabamos por ficar diante de candidatos que se apresentam como distintos mas não se conseguem diferenciar de facto. Batem-se numa disputa vazia de sentido, reduzida a pelejas em torno de pequenas questões, estratégias de marketing ou realizações governamentais. Como disse o filósofo mais uma vez estamos no campo da não-inscrição. Os debates televisivos tem sido confrangedores!
É muito pouco. O resultado é que as eleições ficam ainda mais amputadas pela tendência plebiscitária congénita ao nosso modelo de semi-presidencialismo. Para sorte da "situação", não há escolha entre opções substantivas, diferenciadas pela apresentação daquilo que lhes dá sentido e consistência como coisas distintas. Por mais voltas que se queira dar, mais uma vez, não há propriamente oposição ao cinzento centrão. De um lado, habilidades e manhosices tocando o falso, do outro, alguma sinceridade mas que não passa de uma campanha alegre. Chegamos a este ponto por uma combinação de factores, alguns dos quais colados à nossa experiência nacional, outros derivados da maneira como passamos a viver à escala planetária.
É claro que a crise da política não é exclusividade nacional. Exibe-se por toda a parte, tal como filha dilecta de uma época de transição predestinada a desestruturar tudo. Também como já o afirmámos noutro texto, aqui publicitado (14/11/2005) e precisamente por isso, não é razoável imaginar que se trata de uma crise passageira, que incomoda mas não nos tira a harmonia. Desta crise nascerá portanto alguma coisa.
Para o bem ou para o mal, a batalha, daqui para a frente, ficará concentrada em saber que padrão de política prevalecerá no futuro. É necessário e é urgente, intervir para que se produzam novos impulsos de análise e novos delineamentos institucionais com os quais possamos interpretar o que está a acontecer, no fundo, direccionar a acção social e manter vivos os valores básicos da vida civilizada.
... com a ajuda das leituras da ponte Atlântica, entre outros, de Milton Lahuerta, Marco Aurélio Nogueira, Fernando de La Cuadra, Alessia Ansaloni, Leandro Konder, Guido Liguori, etc.