O outro Albardeiro que é o Hugo Fernandez, traz-nos outro texto
um texto que escalpeliza uma coisa banal. Aliás, por paradoxo,de tanto banal é demasiado séria e incontornáveis as suas fronteiras, a saber: a convivência da democracia política com níveis extremos de pobreza e de desigualdades sociais! Cá para mim a ilação
salta à frente dos olhos: a pobreza e a desigualdade, além de serem deficits sociais, são também deficits democráticos e afectam perversamente o exercício da cidadania nas suas várias dimensões: civil, política e social. Como já alguém disse com toda a propriedade a democracia está sequestrada!
A LER COM
!
Foi recentemente divulgado pelas Nações Unidas o Relatório sobre o Desenvolvimento Humano 2005. Este documento foi lançado uma semana antes da histórica Cimeira Mundial de Setembro, que reuniu em Nova Iorque o maior número de dirigentes de sempre e que simultaneamente serviu para comemorar o 60º aniversário da ONU o forum internacional mais importante da humanidade. Destinado à reforma da organização, tendo em vista os desafios do século XXI, esta cimeira fez a avaliação das medidas tomadas para atingir os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, estabelecidos há cinco anos atrás e que visavam principalmente a luta contra a pobreza mundial.
Ora, no referido Relatório, constata-se que não só a pobreza não está a diminuir, como o fosso de desenvolvimento entre países ricos e pobres se tem vindo a agravar. Com efeito, quarenta por cento da população mundial ainda subsiste na pobreza e, em relação ao índice de desenvolvimento humano, 18 países representando cerca de 460 milhões de pessoas viram a sua situação piorar em relação à posição que ocupavam em 1990. Cerca de 80 por cento do PIB a nível mundial pertence aos mil milhões de pessoas que vivem nos países desenvolvidos, sendo os restantes 20 por cento distribuídos pelos outros cinco mil milhões de indivíduos que compõem a Humanidade. Um indicador basta para demonstrar o grau de desigualdade existente; uma criança que hoje nasça na Zâmbia, tem menos probabilidades de viver mais de 30 anos do que uma criança nascida em Inglaterra
em 1840! Isto no seio de uma economia global cada vez mais próspera e quando se sabe que a produção mundial de alimentos triplicou desde os anos 70, havendo hoje recursos suficientes para alimentar todos os habitantes do nosso planeta, se estes fossem distribuídos equitativamente. Verifica-se, pelo contrário, que as situações de emergência alimentar aumentaram de uma média de 15 por ano, na década de 80, para mais de 30 por ano, desde 2000.
Como é possível que, nos dias de hoje, subsistam tamanhas disparidades? Num mundo em que uma minoria vive na superabundância e no desperdício, constata-se que há cada vez mais fome. Mais do que isso. Verifica-se que aqueles países que têm condições para solucionar o problema, são precisamente os mesmos que pretendem a manutenção e agravamento do actual status quo. Porquê? Em benefício de quem? É sintomático que, nas vésperas desta importante reunião, a administração americana tenha proposto centenas de emendas aos documentos de trabalho já elaborados e que tinham vindo a ser intensamente negociados pela comunidade internacional nos últimos seis meses. O governo norte-americano, através do seu controverso embaixador, John Bolton nomeado para o cargo, recorde-se, directamente pelo presidente e sem a aprovação do Congresso propôs que todo o documento já elaborado fosse rasgado para se começar tudo de novo. Recusou-se mesmo a avançar com qualquer negociação se as pretensões americanas não fossem atendidas. Não é de estranhar que assim aconteça. Este mesmo senhor afirmou, ainda antes da sua nomeação, com uma inacreditável falta de sentido ético e de tacto político e diplomático e, principalmente, de cultura democrática que a ONU só fazia falta se servisse os interesses americanos.
Embrulhadas na retórica, grata a Washington, da democracia e da liberdade, estas alterações tem um sentido bem definido. Implementar uma globalização selvagem, através da concorrência desenfreada e da desregulação dos mercados, com vista ao reforço da hegemonia americana e à prosperidade da sua economia. Uma das principais alterações propostas pelos E.U.A ao documento da ONU é precisamente a retirada de qualquer referência aos denominados Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, que se prendem com a intensificação de políticas internacionais no sentido da redução da pobreza extrema para metade, nos próximos 10 anos, o combate à sida e o acesso global à educação, propósitos que, de resto, foram aprovados pela generalidade dos líderes mundiais há cinco anos atrás. Alguns dos aspectos que suscitaram da parte do inefável Bolton uma completa rejeição, contam-se o compromisso (já assumido pela União Europeia) de aumentar em 0,7% do produto interno bruto até 2015, as contribuições dos países ricos destinadas à ajuda ao desenvolvimento e ao combate à pobreza. É difícil compaginar a recorrente critica americana ao excesso de burocracia, ineficácia e lentidão das decisões da organização e que sempre serviu, aliás, como arma de arremesso para contestar a relevância do seu papel e a recusa em aceitar qualquer menção a compromissos quantificados, a metas e objectivos concretos e palpáveis da acção da ONU.
Ora, verifica-se que dos países ricos que concordaram aplicar a taxa de 0,7% dos seus respectivos PIB em ajuda externa, apenas 5 cumpriram esse desiderato: Suécia, Noruega, Dinamarca, Holanda e Luxemburgo. Os E.U.A dão apenas 15 cêntimos e não 70 cêntimos por cada 100 dólares de PIB, o valor mais baixo entre todos os países ricos. A ajuda americana não representa mais do que 2 mil milhões de dólares. Se a compararmos com os 500 mil milhões de dólares que os E.U.A vão gastar com as suas forças armadas em 2005 (valor correspondente a metade do orçamento militar global de todos os países do mundo), vemos claramente que se trata de um esforço irrisório. Como denuncia o documento da ONU, os E.U.A têm uma estratégia militar superdesenvolvida e uma estratégia para a segurança humana subdesenvolvida.
Esta atitude verifica-se num contexto em que o diagnóstico das situações é claro e urge tomar decisões. No seu recente livro The End of Poverty, o reputado economista americano Jeffrey Sachs é claro quando diz que a pobreza, pelo menos aquela pobreza que mata, pode ser erradicada do mundo em 20 anos. Em entrevista à revista Pública (10/7/05), este conceituado académico considerado pela Time como uma das cem pessoas mais influentes do mundo considera que as descobertas científicas e tecnológicas nos dotaram de meios absolutamente práticos, simples e provados para pôr termo a esta pobreza extrema. E acrescenta: Essa ajuda é modesta, não tem nada de heróico. O que choca é aquilo que nós poderíamos fazer mas não fazemos. Apresenta-nos, então, números impressionantes: mil milhões de pessoas vivem em pobreza extrema (1 em cada 6) e cerca de 25 mil pessoas morrem de fome por dia. Para termos uma ideia de como a pobreza é verdadeiramente uma obscenidade no mundo de hoje, Sachs revela-nos esta espantosa proporção: se os habitantes dos países ricos doassem anualmente 2,5 euros per capita, o montante angariado seria o suficiente para controlar a malária em África, doença que mata por ano 3 milhões de crianças.
Desta constatação decorre, desde logo, uma interrogação essencial; é aceitável a pobreza nos dias de hoje? De facto, o absurdo desta realidade não pode encontrar explicação numa qualquer incompetência ou negligência generalizadas, mas antes numa defesa encarniçada de um determinado modelo de organização das sociedades e das relações internacionais. Na mesma linha de actuação, a administração norte-americana também pretendeu fazer desaparecer do documento de 36 páginas, apresentado pelo actual Presidente da Assembleia Geral da ONU, o gabaronês Jean Ping, outras importantes matérias e iniciativas. É o caso das referências ao Tribunal Penal Internacional (de cuja jurisdição, aliás, os americanos conseguiram isentar os seus militares) ou o fim da proliferação de armas de destruição maciça e dos ensaios nucleares.
Pretenderam-se ainda retirar aspectos tão fundamentais como o respeito pela natureza, exigência decorrente do protocolo de Quioto e, está bem de ver, do mais elementar bom-senso. Talvez por isso, nove estados norte-americanos tenham já concordado, à revelia da política oficial de Washington, em reduzir as suas emissões de gases, para minorar o efeito de estufa e as alterações climáticas daí decorrentes, conforme noticia veiculada pelo The New York Times de 24 de Agosto. Mas, ainda assim, os estados de Connecticut, Delaware, Maine, Massachusetts, New Hampshire, New Jersey, New York, Rhode Island e Vermont, apenas concordaram controlar as emissões de dióxido de carbono ao nível das centrais termoeléctricas. É manifestamente insuficiente.
Há, aliás, uma triste ironia na coincidência temporal destes acontecimentos. Com o furacão Katrina, os americanos sentiram fortemente os efeitos do desrespeito pela Natureza. Mas sentiram bem mais do que isso. Os efeitos da devastação puseram a nu as clivagens de uma sociedade e de um sistema de vida que se revelam, afinal, insustentáveis. Como alguém disse, assistimos, nestas circunstâncias, aos efeitos da hidrografia na sociologia.
Mais do que nunca, a sociedade americana demonstrou a sua fragilidade e revelou um triste espectáculo o da indigência. Mais ajuntamento de indivíduos do que verdadeira comunidade, os E.U.A revelaram nesta situação a falência do modelo neo-liberal, da competição desenfreada e da lógica do individualismo extremo C. B. Macpherson numa obra clássica sobre a ideologia liberal chamava-lhe individualismo possessivo que, como se vê, se revelou profundamente disruptor. O culto do eu e do cada um por si, a saga do self made man, livre das suas ligações comunitárias e obrigações sociais, levou ao salve-se quem puder e à proliferação de situações de extrema miséria. E, numa sociedade altamente desigualitária, muitos ficaram para trás. As declarações do senador Edward Kennedy são sintomáticas: Os poderosos ventos desta tempestade arrancaram a máscara que escondeu dos nossos debates os muitos americanos que são deixados de fora e deixados para trás. (Público 9/9/05).
Foi esta mesma lógica individualista e concorrencial que, retirando ao sector público qualquer capacidade de intervir em prol do bem comum, obstaculizando medidas efectivas de assistência e protecção social, de planeamento ou de preocupação comunitária, levou a ignorar, desde há mais de um ano, os repetidos avisos do Corpo de Engenharia Militar (e porque raios é que é um corpo militar que tem esta incumbência?!) sobre o estado de conservação dos diques que protegiam a cidade de Nova Orleães, concebidos para aguentar apenas tempestades de nível 3. Daqui também se seguiu a inevitável desorçamentação nas urgentes obras de reparação e reforço. Com efeito, do total do montante previsto, o Senado apenas aprovou metade, sendo que a proposta da Administração Bush não chegava a um terço do que estava inicialmente orçamentado. As obras não chegaram, sequer, a ser realizadas.
É esta mesmíssima lógica e forma de actuação típica do american way of life que não previu transportes colectivos, nem centros de alojamento, nem assistência médica, nem abastecimentos básicos, para todos aqueles que, à falta destes meios, vieram a estar, como se viu, completamente desprotegidos face à tragédia anunciada. Assistiram-se então a cenas que nos habituamos a ver apenas em países do Terceiro Mundo: pessoas morrerem por falta de assistência médica ou mesmo de fome, total incapacidade para socorrer as vítimas e resgatar os sobreviventes, paralisia dos serviços básicos, anarquia e banditismo generalizados, autoridades em fuga e impotentes para travar o caos.
A questão é recorrente. A ausência de qualquer plano de contingência revela muito mais do que incompetência ou negligência. Revela uma lógica societária e uma ideologia que demonstraram a sua falência. Nada foi feito porque nada estava previsto fazer. Como sempre tem acontecido, quem tinha posses resguardou-se e sobreviveu, quem não tinha soçobrou na morte, desespero e indignidade. As enormes divisões sociais, acrescidas das profundas clivagens raciais que atravessam os E.U.A, puderam revelar-se em toda a sua dimensão e crueza. Como disse Amílcar Correia no editorial do Público do passado dia 11 de Setembro, Katrina pode não ser o furacão dos negros, mas é certamente o furacão dos pobres (
). E, em Nova Orleães, a maioria das vítimas é simultaneamente negra e pobre. Este furacão dos pobres expressão tragicamente feliz mostrou-nos, afinal, a natureza da hiperpotência mundial. Aquele país que foi considerado um exemplo de cidadania e desenvolvimento social um modelo de democracia, seguindo o credo democrático de Abraham Lincoln de um governo do povo, pelo povo e para o povo encerra, afinal, enormes contradições e fragilidades. Pobre país rico, chamou-lhe Fernando Madrinha, em editorial do Courrier Internacional de 9 de Setembro. E, de facto, o que se passou em Nova Orleães remete-nos para a necessidade de questionar a relação entre as sociedades que se pretendem justas e desenvolvidas e a existência da pobreza. A democracia será compatível com a pobreza? O individualismo e a concorrência desenfreada devem-se sobrepor a preocupações colectivas de equidade e justiça social? Decididamente, pensamos que não. Até porque a manutenção e incremento constante das desigualdades sociais resultam naquilo a que todos pudemos assistir.
Não pode, por isso, deixar de ser uma triste ironia que, na cimeira mundial de Setembro, os E.U.A tenham pressionado os restantes membros das Nações Unidas no sentido de se comprometerem num generoso financiamento dum denominado Fundo para a Democracia. Mas que democracia é esta que não nasce do desenvolvimento? Que democracia é esta que se mantém à custa da miséria generalizada? Ou será que estamos a falar daquela caricatura de democracia que os americanos têm vindo a patrocinar ao longo dos tempos e um pouco por todo o mundo, desde as ditaduras sul-americanas, às autocracias árabes, aos mais recentes regimes corruptos do Leste europeu e da Ásia Central ou aos Governos fantoches do Iraque e do Afeganistão, com a preocupação exclusiva de salvaguardarem os seus interesses e sustentarem a sua economia predadora? Não é com certeza essa democracia que desejamos. E se, como Simão Bolívar disse um dia, os Estados Unidos querem-nos sujeitar à miséria em nome da liberdade, dessa liberdade, seguramente, também não precisamos.