ABRIL DE ABRIL
Era um Abril de amigo Abril de trigo
Abril de trevo e trégua e vinho e h(ú)mus
Abril de novos ritmos novos rumos.
Era um Abril comigo Abril contigo
ainda só ardor e sem ardil.
Abril sem adjectivo Abril de Abril.
Era um Abril na praça Abril de massas
era um Abril na rua Abril a rodos
Abril de sol que nasce para todos.
Abril de vinho e sonho em nossas taças
era um Abril de clava Abril em acto
em mil novecentos e setenta e quatro.
Era um Abril viril Abril tão bravo
Abril de boca a abrir-se Abril palavra
esse Abril em que Abril se libertava.
Era um Abril de clava Abril de cravo
Abril de mão na mão e sem fantasmas e
sse Abril em que Abril floriu nas armas.
(MANUEL ALEGRE in 30 Anos de Poesia)
Interrompemos o nosso percurso da TERCEIRA VIA, um percurso mais terreno, e navegaremos metaforicamente, no texto que se segue, da autoria do HUGO FERNANDEZ (um albardeiro menos assíduo) por águas demasiado salgadas, por que a ausência das outras... são também parte da seca que nos flagela. Oceanos, mares salgados, navegadores, homens do leme... se na sociedade portuguesa a metáfora das águas está associada à formação de uma identidade mestra, é no seu leito que se dá a derrocada. Que peso enorme tiveram/têm as palavras proféticas do velho do Restelo. Paradoxalmente, outros NÓS QUE NOS ATAM! A História mostrou-nos que o brilho das águas das navegações se adensaram na medida em que as utopias daquele presente cederam espaço ao esfacelamento da identidade nacional a partir de fins do século XVI. O advento do sebastianismo foi um dos últimos bastiões de uma glória que aos poucos se iria indefinir e desconcertar, mas que manteve a promessa do retorno da última nau a esperança do renascimento da glória de um império encantado, intocado pelo tempo (ver: FERREIRA, Margarida Alves. In: MEIKY, José Carlos e ARAGÃO, Maria Lúcia (org): América:Ficção e utopias, São Paulo, EDUSP/ Expressão Cultural, 1994, pp. 27-43). A mitologia das águas expressou, hegemonicamente, o turvamento bachelardiano do mar português expresso pela dicotomia claro e escuro, passado e presente e a busca do belo ancestral naufragado em águas profundas e distópicas. Há sempre este traço identitário nacional, há sempre qualquer coisa sob o signo da predestinação remanescente... porquê? Porquê...? Chega de blasfémia...! O Hugo falará com mais propriedade sobre esta coisa que presentemente deu à costa...
ATLÂNTICO
Para além de nome de oceano, Atlântico passou agora também a ser nome de revista. Esta novidade editorial portuguesa, cuja responsável é Helena Matos, apresenta-se neste primeiro número de Abril de 2005 com posições firmes e propósitos determinados. Assume-se como projecto inconfundível, de forte identidade e carácter. E, de facto, basta atentarmos no elenco dos seus colaboradores, para não haver dúvidas quanto à sua identidade. De Vasco Rato a Manuel de Lucena, de Joaquim Aguiar a Luciano Amaral ou de Rui Ramos a Fátima Bonifácio, encontramos aqui uma parte significativa da intelligentsia portuguesa conservadora. É, portanto, uma revista que se situa claramente à direita.
Se sobre isso houvesse alguma dúvida, bastava cotejar a prévia Declaração Editorial em jeito de acróstico, onde se diz que o  significa Aliança Atlântica, acrescentando-se que A aliança entre europeus e norte-americanos foi e é o garante da nossa liberdade e segurança. e de que o O diz respeito a Ocidente uma vez que a civilização ocidental é aquela que maior prosperidade, direitos e liberdades conseguiu assegurar a um maior número de cidadãos. Porque o Ocidente é o nosso mundo. Dificilmente conseguiríamos um bilhete de identidade mais claro. Não só o seu alinhamento com a filosofia política da actual administração Bush nos parece evidente, como implicitamente são repisadas as teclas do choque das civilizações e a cruzada contra o Mal dos neoconservadores americanos.
Custa-nos mais a entender porque também se diz que a Atlântico é única. De facto, no panorama nacional, não faz mais que potenciar opções ideológicas disseminadas pela generalidade dos órgãos de comunicação social, desde a televisão à imprensa. Talvez a sua única virtude seja a da sistematização desse particular entendimento do mundo e da assunção, como linha editorial própria, desse seu carácter marcadamente doutrinário. O que, apesar de tudo, não é pouco e é perfeitamente legítimo. Segue, aliás, exemplos internacionais no mesmo sentido. Lembremo-nos do papel desempenhado pela seminal revista norte-americana The Public Interest, fundada em 1965 por Irving Kristol, que tem sido, ao longo dos anos, uma autêntica Bíblia do pensamento neoconservador e que conta, como um dos seus mais proeminentes colaboradores, com o inefável Francis Fukuyama. Não será certamente por coincidência que, na rubrica Gostos da revista Atlântico, seja o último livro deste autêntico corifeu intelectual do neoconservadorismo, publicado no ano passado com o título State Building: Governance and World Order in the 21st Century, um dos livros recenseados.
O que causa verdadeira perplexidade nos propósitos da revista é o significado atribuído ao I da palavra Atlântico: Inconformismo, rematando-se, logo de seguida, Contra a cultura dominante e o politicamente correcto. O seu principal objectivo? Fazer uma revista que rompa com o unanimismo reinante. Mas, afinal, de que estamos a falar? Porque se há unanimismo no mundo de hoje, esse resulta precisamente da disseminação generalizada do pensamento neoconservador americano, da lógica predadora da globalização neo-liberal e da dominação planetária dos E.U.A. Assim se pensa nos corredores do poder da quase totalidade dos países. Por essa mesma bitola afinam governos, organizações e partidos políticos em todo o mundo. É dessa forma que os opinion makers dos mais influentes meios de comunicação social, formatam a opinião pública mundial.
Parece-nos que a linha de pensamento que a revista Atlântico segue é, pelo contrário, o da doxa instalada. O do conformismo perante a ordem das coisas. O da aceitação dócil do domínio imperial americano da deriva securitária, da injustiça e da desigualdade com todas as consequências que daí advém para a vida no nosso planeta. Qual é, então, a novidade? Que inconformismo é este? O do poder e da cultura dominantes? O do pensamento único made in Washington? Sabemos da particular capacidade que o sistema capitalista tem de incorporar no seu seio as forças da sua própria subversão e, dessa forma, neutralizá-las. Mas querer passar uma postura politicamente conservadora em qualquer caso dominante por uma atitude contestatária e subversiva, parece-nos algo de verdadeiramente incrível. Mais do que uma mistificação é uma fraude.
Atribui-se ao presidente norte-americano Abraham Lincoln o conhecido aforismo segundo o qual se pode enganar toda a gente algum tempo; pode-se mesmo enganar algumas pessoas todo o tempo; mas não se pode enganar toda a gente todo o tempo. É que, de facto, as coisas são o que são.
(CONTINUAÇÃO...)
O baque (gosto deste vernáculo) do muro de Berlim e o aluimento do ex-império soviético e do seu pseudo socialismo real, propiciaram um terreno fértil para que surgisse a enunciação de F. Fukuyama sobre O fim da História, da luta de classes e da contradição entre o mercado e o Estado. Na ânsia de prever e predizer o futuro, os arautos da derrota irreversível da esquerda não se cansaram de se basear em ideias genéricas para explicar casos específicos enquanto ignoraram (ignoram) as especificidades contextuais. Todavia, longe de ter esgotado o seu papel na História, o socialismo democrático ressurge como única alternativa humanista face à irracionalidade, aos desmandos e à alienação do sistema desregulamentador neoliberal.
Assim, diferentemente do confronto entre capital e trabalho nos séculos XIX e XX que polarizou os conflitos sociais e políticos, o socialismo democrático no nosso século forçosamente terá que ser construído pelas alianças e redes entre movimentos e organizações sociais, ao nível local, nacional e internacional. As suas lutas (um aviso claro a todas as corporações, desde logo, as sindicais) tem que transcender as questões salariais para enfrentar os problemas da exclusão social, do desemprego, da destruição de pequenas empresas da precarização das relações de trabalho, da biodiversidade e da devastação ambiental, do que resta das estruturas agrárias e urbana e, sobretudo, da defesa intransigente dos Direitos Humanos em todas as suas dimensões. A democratização da democracia tem que ter em linha de conta, para tanto, a preocupação sobre os problemas quotidianos, o que só pode ocorrer com a devolução do poder às organizações comunitárias responsáveis. O comunitarismo surge como alicerce eficaz para suster a desintegração social advinda do predomínio do mercado e da sua ideologia individualista. O seu fim é a restauração das virtudes cívicas e a sustentação dos fundamentos morais da sociedade.
Face aos relativismos que campeiam, provavelmente o eu ancorado na comunidade pressuporá a defesa da visão familiar, a revalorização das etnias, religiões e nacionalismos (desde que sem Estados dominados por ologarquias). É esta a essência do cidadão reflexivo no pressuposto giddeniano, produto paradoxal do que se chama globalização. Contudo, mais uma vez (se não podes com eles...) é na globalização que Giddens vê, as pequenas e médias empresas como as organizações capazes de congregar os reflexivos cidadãos da economia digital, portadores dos germes do dinamismo capazes de lidar com os riscos da pós-modernidade. Ou seja, dentro da lógica libero-capitalista, mais incerteza é sinónimo de mais oportunidades, de lucro e inovação. E para inovar é preciso investir em conhecimento, principalmente nos chamados sectores dinâmicos (actividades de risco financeiro, informática, telecomunicações, biotecnologia e conhecimento).
A base de tudo, entretanto, é a educação/formação. Diz Giddens (A terceira via e os seus críticos, Rio de Janeiro, Record, 2001, p. 78): A principal força no desenvolvimento do capital humano obviamente deve ser a educação. É o principal investimento público que pode estimular a eficiência económica e a coesão cívica. Não uma educação estática, baseada na formação para a vida adulta. Mas educação para adquirir competências a serem desenvolvidas ao longo da vida. Para cumprir essa e outras funções sociais, o Estado é importante. Mas ele deve actuar mais como fomentador do que como fornecedor dos serviços. É aí que as agências do chamado Terceiro Sector (associações voluntárias) ganham um papel específico. Antes consideradas como refugo para a colocação de dinheiro de justificação e proveniência obscura e equipamentos obsoletos, as chamadas organizações não-governamentais (ONGs) sem fins lucrativos já não se assumem como agências filantrópicas frias e distantes, mas como incubadoras de novas oportunidades de inovação das relações sociais. Os motivos: a) combinam eficácia nos negócios com estímulo social; b) são uma alternativa para as desvantagens do mercado, associadas à maximização do lucro, e do governo, geralmente burocrata e inoperante; c) convivem bem com o binómio liberal flexibilidade-eficiência e com o seu oposto socialista equidade-previsibilidade. O welfare positivo, portanto, admite o risco da desregulação do mercado de trabalho porque esta é a única forma de gerar riqueza.
E agora toda a minha inquietação está aqui, ou seja, a Terceira Via, nesse sentido, posiciona-se como um arsenal teórico-psicológico que tem como directriz a ideia de capital humano, substitutivo da noção de direitos sociais absolutos, que pressupõe o fornecimento directo do sustento económico que antes era assegurado pelo Estado. Com a noção de capital humano, temos um projecto político-pedagógico atemporal que tem como objectivo a constituição de um novo sujeito, agente da portabilidade de capacidade, pronto para um novo contrato social baseado na autonomia e no desenvolvimento pessoal. No entanto, Giddens faz uma ressalva interessante: os mais ricos são os mais associativos. Os mais pobres não estão integrados, e estão menos atreitos a qualquer envolvimento cívico. É isso que justifica a necessidade dos empreendimentos económico-sociais, os quais liderados por jovens líderes empresariais, podem, conjuntamente com os órgãos governamentais, introduzir nas comunidades carentes o chamado planeamento participativo. Fundamental para isso é a actividade empresarial-social, principalmente através da educação, pela qual se pode promover o que ele chama de redistribuição das possibilidades.
Deste modo, o welfare positivo, com base neste novo sujeito social e na nova relação Estado/sociedade civil, "transporta" as seguintes promessas: substituição da carência pela autonomia, da doença pela saúde activa, da ignorância pela educação permanente, da indignidade pelo bem-estar e da ociosidade pela iniciativa. Para corresponder ao anseio generalizado por uma cidadania plena, de direitos e responsabilidades, o socialismo deste século XXI terá que ser inquestionavelmente democrático, aberto à participação de todos e visceralmente comprometido com a liberdade individual e a justiça social.
CONTINUA...
(CONTINUAÇÃO...)
Sociedade civil e Estado: que relação?
Voltando à questão da via Guiddeana e correndo o risco de simplificar diria como Marcos de Oliveira, que do ponto de vista giddeniano, a recuperação da legitimidade do poder estatal depende da sua capacidade de descentralização, transparência e abertura (talvez com isto esteja a responder a algumas dúvidas levantadas nos comentários anteriores!). Sim, é verdade...! Se possível, aprender com a prática empresarial (mas duvido do empresarialismo paternalista português), instituindo os seguintes mecanismos: controlo de metas, auditorias, estruturas flexíveis e mais participação (democracia directa). O Estado, porém, para ser melhor que as empresas, deve procurar a neutralidade: não ter inimigos, nem gerar a conflitualidade. Ou seja, deve ser ágil e cosmopolita na sua forma e essência, articulando tanto o global e o local, tanto quanto os interesses divergentes que caracterizam internamente uma sociedade. Como? Pela promoção da sociedade civil, através de uma teoria política que aumente a solidariedade social e diminua as diferenças económicas. A parceria entre governo e sociedade civil é a base, portanto, desta renovação da social-democracia de carácter comunitarista (serão os países nórdicos assim?). Os agentes dessa renovação estão no chamado terceiro sector, as associações voluntárias, que se caracterizam pela flexibilidade das suas acções e pela capacidade de autogoverno fontes, portanto, de um novo sentimento de pertença e de bases dos valores pós-materialistas (creio que a Suécia e ultimamente a Finlândia são bons modelos).
É com base nesses pressupostos que Giddens, sem fazer uma crítica das críticas, não deixa de colocar a 3ª Via como a única forma de realizar as promessas da social-democracia: justiça e solidariedade social. Isto porque, argumenta ele, ela é a única capaz de lidar, de maneira sofisticada, com as questões da desigualdade e do corporativismo. Afirma ainda que a sua principal virtude é a de não ser um programa de um único partido ou país: é um programa completo de modernização política. E moderno aqui significa admitir a eficiência do mercado na criação de riqueza e o facto do capital privado ser essencial para o investimento social isso sem questionar a origem deste capital -, o que quanto a nós é altamente preocupante. Ou seja, moderno aqui, portanto, significa admitir que o Estado pode criar desigualdades isso sem questionar as estruturas de poder do capital sobre a acção estatal que produzem estas desigualdades.
Desta forma, Giddens substitui a mão invisível de Adam Smith pelo conceito de currículo oculto, que seria a capacidade de um mercado bem regulado produzir paz social. Apesar de imposto pela força, o capitalismo torna-se um sistema estável de relações sociais pela capacidade de fazer com que os consumidores possam escolher livremente os mais variados produtos. O mercado, acredita o autor, favorece atitudes responsáveis porque estimula o cálculo e o raciocínio e não decisões burocráticas. Mas para não engendrar uma mercantilização, é preciso ajustes e controlo externo, que fornecerão os princípios éticos garantidos pela lei. Para frear os efeitos perversos da energia empresarial, que tende a criar monopólios, invoca-se o chamado investimento em capital humano, que deve ser alimentado pela acção conjunta do Estado, da família e das comunidades. O ideário da Terceira Via comporta, portanto, um viés keynesiano ainda que restrito à intervenção participada.
E o principal instrumento desta intervenção participada, como já foi reconhecido, são os grupos que compõe o Terceiro Sector, a parte mais dinâmica da sociedade civil. Juntamente com o governo e a economia, este (3º Sector) torna-se um importante centro de poder decisório, um relevante actor para a constituição de um novo contrato social, em que os direitos são encadeados com responsabilidades sociais. Através destas agências é que o Estado pode promover o investimento em capital humano e, assim, se tornar um Estado de investimento social, no qual predomina uma nova economia mista. A sua função é a de promover a maximização da igualdade de oportunidades, que vai substituir os antigos mecanismos de welfare, que, como sabemos, criou novas formas de exclusão. A ressurreição das instituições públicas depende, ainda, de uma visão pluralista da estrutura social, tendente a substituir a noção monista que se instalou (embora não o parecendo) no estatismo português, ineficiente e hierarquizado onde campeiam as oligarquias broncas. O que se quer é um Estado Democrático Forte, não um Estado grande, monopolista e sobredimensionado.
Todavia, não tenhamos ilusões, no (nosso) caso português onde a amálgama das elites económicas arcaicas e patrimonialistas que sempre dominaram na esfera estatal, politicamente consubstanciadas, ora no centro-esquerda ora no centro-direita, têm sido incapazes de conduzir o Estado rumo àquilo que deve ser um Estado no século XXI. Isto é, temos um longo percurso a fazer na construção desse (outro) Estado. Porque o Estado pela qual pugnam os paladinos dessas oligarquias, nada mais é do que um travestido Estado Social-Liberal, revestido do enganoso sentido de que é "social porque continuará a proteger os direitos sociais e a promover o desenvolvimento económico" e "liberal, porque o fará usando mais os controlos de mercado e menos os controlos administrativos, porque realizará os seus serviços sociais e científicos principalmente através de organizações públicas não-estatais competitivas, porque tornará os mercados de trabalho mais flexíveis, porque promoverá a capacitação dos seus recursos humanos e das suas empresas para a inovação e para a competição internacional" (Ver - SADER, Emir. "Direitos e cidadania na era da 'globalização'". In BÓGUS, L. e PAULINO, A. Y. (orgs.). Políticas de Emprego, Políticas de População e Direitos Sociais, São Paulo, Educ, 2003). Inequivocamente, os fundamentos dessa matriz de Estado, indicam claramente a mercantilização dos direitos sociais e não a sua defesa; indicam uma retracção do Estado de direito; indicam uma instrumentalização dos direitos pela racionalidade económica; indicam algum retrocesso na construção democrática e no exercício da cidadania.
CONTINUA...