Para além da actualidade de BOLONHA, existe entre nós (há anos) uma discussão recorrente, premente e eivada, que mesmo quando vem à tona de modo velado e contido inquieta estudantes, professores e pessoas envolvidas com a educação, a formação e os programas curriculares: devem as ESCOLAS (particularmente o ensino superior) e os seus cursos formar bons profissionais ou bons cidadãos? Trata-se, claro, de um tema que, deixado como pura polarização exclusiva, não faz muito sentido. Afinal, não está dito que o bom profissional e o bom cidadão se dissociem ou não possam caminhar juntos. Ao contrário, tudo leva a que se conclua que o profissional só pode ser efectivamente «bom» (isto é, competente, equilibrado, eticamente consistente) se for um «bom cidadão», isto é, se souber colar à sua actividade a perspectiva de pertença a uma comunidade. Porém, dado que vivemos numa época que tende a canonizar o mercado e a competição (e portanto a congelar o êxito profissional nele mesmo, cortando os seus vínculos com a cidadania), vale a pena não desprezar a contraposição. E, com base nela, perguntar se não nos devíamos esforçar mais para fazer com que a formação para a cidadania prevaleça sobre a profissionalização, especialmente quando desejamos encontrar um eixo capaz de estruturar o ensino e a escola.
O próprio modo de propor o tema, aliás, parece-nos já provocar uma contrariedade com a época e a sua cultura. Em clima de «globalização» e de radicalização do mercado, do individualismo e do esvaziamento utópico, não se vislumbra uma forma de impedir que as instituições da política e da cidadania sejam desvalorizadas. Com isso, torna-se mais difícil conseguir que as pessoas saiam da sua rotina calculista e competitiva para abraçar preocupações mais afeitas à «paixão», aos valores e ideologias, ao futuro, às opções gerais e à responsabilidade para com os demais. É o que podemos chamar de «despolitização»: desinteresse em pensar os temas fundamentais da existência colectiva. As questões políticas tornam-se, assim, assunto de especialistas e de políticos profissionais ( maioritariamente de duvidosa competência). Com o que se alarga o hiato que separa os indivíduos dos problemas básicos da sua sociedade e do seu Estado. Os cidadãos tornam-se personagens que certamente sabem os seus direitos mas minimizam as suas obrigações, pondo-se contra o governar, o poder, o lutar (por ideias e por interesses), o participar, o viver colectivo.
Atenção! Somos protagonistas de um mundo complexo, no qual as fronteiras do saber se modificaram muito. Não nos podemos contentar em dominar algumas técnicas e informações: precisamos de ir além, ser capazes de pensar criticamente e assimilar recursos intelectuais abrangentes. Precisamos, também, de aprender a trabalhar em termos prospectivos e de projectos de (e no) mundo. Não basta receber algumas pinceladas de razão instrumental ou adquirir «disciplina» para enfrentar o mercado. Devemos ser mais ambiciosos. Sabemos bem que a capacidade crítica de ver o mundo não se aprende na escola: nasce da vida e da práxis real. Na escola (em toda a escola, não só nos seus estágios mais avançados), porém, podemos acelerar e refinar esse processo, e isso desde que o ensino não seja reduzido a mero tirocínio técnico para a competição profissional. Caso contrário, a aprendizagem formal esvazia-se de sentido maior.
A politização não pode ser só a perspectiva do governo, nem dos profissionais da política: tem que ser assumidamente a perspectiva dos interesses sociais e da Polis. Com ela, temos melhores condições de pensar a sociedade em que vivemos e de avaliar as chances que possuímos de construir um mundo melhor, com governos melhores inclusivamente, mas sobretudo com pessoas melhores. A perspectiva da política permite que se mantenha vivo na agenda o problema de saber quem somos, por que estamos juntos e que objectivos desejamos alcançar (gostávamos de repetir algumas vezes esta frase). Permite que sejamos capazes de analisar os interesses que devem prevalecer entre nós, o padrão de desenvolvimento e de justiça social em que queremos viver, as acções a serem empreendidas para que se estabeleçam as bases da dominação e do consentimento...
Avivo no teu rosto o rosto que me deste, / E torno mais real o rosto que de dou. / Mostro aos olhos que não te desfigura / Quem te desfigurou. / Criatura da tua criatura, / Serás sempre o que sou. / E eu sou a liberdade dum perfil / Desenhado no mar. / Ondulo e permaneço. / Cavo, remo, imagino, / E descubro na bruma o meu destino / Que de antemão conheço: / Teimoso aventureiro da ilusão, / Surdo às razões do tempo e da fortuna, / Achar sem nunca achar o que procuro, / Exilado / Na gávea do futuro, / Mais alta ainda do que no passado.
(Miguel Torga, Portugal, in Antologia Poética, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 5.ª ed., 1999)
O DESASSOMBRAMENTO CONTINUARÁ...Milton Lahuerta, Fernando de La Cuadra, Aurélio Nogueira, Alessia Ansaloni, Leandro Konder, Guido Liguori, etc.
O padre António Vieira, homem de invulgar inteligência, cometeu um grave erro: supôs que os outros eram dotados de igual inteligência e o compreenderiam. Como sabemos, os seus textos revelam uma fina ironia política, civilizada e desdenham a ironia do absurdo, até porque a metáfora do mundo é tão sublime que não há lugar para o absurdo. "Demócrito ria, porque todas as coisas humanas lhe pareciam ignorâncias; Heraclito chorava, porque todas lhe pareciam misérias: logo maior razão tinha Heraclito de chorar, que Demócrito de rir; porque neste mundo há muitas misérias que não são ignorâncias, e não há ignorância que não seja miséria". Ou então, "O polvo com aquele seu cabelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus ralos estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo dessa aparência tão modesta ou dessa hipocrisia tão santa, testemunham constantemente (...) que o dito polvo é o maior traidor do mar." O Mundo cada vez mais sufoca pelo abraço do polvo, ou seja, cada vez mais a prepotência dos grandes que, como peixes, vivem do sacrifício de muitos pequenos, os quais "engolem "e "devoram". Para Vieira, no século XVII, o tempo futuro poderia ser narrado pois já estava inscrito no Infinito Divino (como proposto por Santo Agostinho e São Tomás), mesmo que dependente das causas segundas - a acção do homem podia ser estabelecida dentro do livre-arbítrio. Vieira, porém, acreditava na inexorabilidade do tempo, visto como um vector linear, o que expressa por meio de tropos que indicam, como no Sermão do Mandato, de 1643, a sua acção corrosiva que "tudo gasta, tudo digere, tudo acaba.". Tudo isto já vai longo, imagine-se para falar do poder dominante no Mundo de hoje. Não podemos narrar como Vieira nem o que Vieira teria dito sobre o devir de hoje, pois, em primeiro lugar, estamos num momento diferente (o mundo actual), e segundo, porque a nossa práxis e a nossa linguagem vai buscar um discurso (confundindo, propositadamente, discurso e pensamento) organizado numa percepção histórica que se baseia nos factos e nas evidências. Digo isto, não só a meu respeito como do meu amigo Hugo Fernandez, porque é dele o texto que se segue.
BRINCAR COM O FOGO
Agora é oficial. A Casa Branca veio há uns dias finalmente reconhecer a inexistência de armas de destruição maciça no Iraque. Depois de tudo o que se passou, tal facto não espantará, certamente, muitas pessoas. Mas o que este reconhecimento tem de patético e simultaneamente de intolerável é que foi precisamente sob esse pretexto que os E.U.A empreenderam a sua cruzada justiceira contra o Eixo do Mal, invadindo um país soberano, provocando a destruição de uma parte significativa do seu milenar legado cultural e das suas infraestruturas apenas aquelas, note-se, que não interessavam manter para assegurar a rapina eficaz dos recursos energéticos de que o território iraquiano é, como se sabe, pródigo , levando à desorganização social e económica de uma sociedade e, principalmente, à morte de milhares de pessoas (fala-se em perto de 150.000).
Afinal, não houve justificação para a guerra; pelo menos aquela que os próprios americanos nos quiseram impingir. Afinal Saddam Hussein não constituía nenhum perigo real para a região e muito menos, como se apregoou ad nauseum, para o mundo. Se o regime de Saddam era uma ameaça para alguém, era para o seu próprio povo. E em relação a este, nunca os E.U.A mostraram qualquer compaixão, apoiando activamente o ditador Saddam e chegando mesmo a vender-lhe as armas que vieram a ser utilizadas na sua repressão. Aliás, o apoio dos E.U.A a regimes ditatoriais na defesa dos seus interesses, tem sido uma constante da política externa norte-americana.
Quase dois anos depois de Colin Powell ter exibido provas irrefutáveis de que o Iraque possuía armamento químico e biológico, a trágica verdade vem ao de cima. Que vergonha, que desastre! Principal mote da cimeira da guerra nos Açores, o armamento iraquiano alimentou meses de intoxicação da opinião pública e desabrido ataque a todos aqueles que denunciavam as mentiras made in Washington e as verdadeiras intenções americanas. Onde estão esses corifeus de Bush agora? Quem não se lembra, no caso português, das certezas do nosso ex-primeiro-ministro desertor Durão Barroso que, em Londres, junto de Tony Blair, asseverou ter visto essas provas. Quem não se lembra do entusiasmo televisivo dos soldadinhos de Paulo Portas a comentar o evoluir da movimentação das tropas americanas em solo iraquiano. Quem poderá alguma vez esquecer as maquetes de aviões e carros blindados como se se tratasse de uma ingénua brincadeira de meninos apresentadas sem escrúpulos, nem pudor, pelo especialista Nuno Rogeiro nos nossos ecrãs.
Ainda assim, o porta-voz da Casa Branca, Scott McClellan reafirmou que o regime [de Saddam] tinha a intenção e as capacidades necessárias no que respeita a armas de destruição maciça. Pasme-se! Já não são precisos actos; bastam intenções. Não precisa de haver ameaças concretas. Basta julgar-se que existe vontade nesse sentido. É a inacreditável doutrina da guerra preventiva em todo o seu esplendor. A tortuosidade de tal raciocínio só encontra paralelo com o que há de mais característico no pensamento fundamentalista: fanatismo, maniqueísmo e absoluto desprezo pelos outros.
Com esta política de George W. Bush e do seu governo, o mundo ficou mais inseguro, mais violento e mais injusto, potenciando o ódio e ressentimento a uma tal escala, que o fenómeno do terrorismo se universalizou. Aliás, num relatório recente emanado do insuspeito National Intelligence Council, organismo de informações que assessora a CIA, concluiu-se que, desde a invasão americana, o Iraque se tornou num campo de treino para terroristas em substituição do Afeganistão e que o sentimento extremista e fundamentalista tinham aumentado exponencialmente. A administração Bush desrespeitou as leis internacionais, invadiu países soberanos, provocou a destruição e o caos, espalhou a morte indiscriminada de pessoas. Baseou a sua acção no mais absoluto unilateralismo e na obsessão messiânica da luta do Bem contra o Mal. Bin Laden não teria feito melhor. Quem é esta gente? O que pretendem, afinal?
Foi Miguel Coutinho, no editorial do DN de 13 de Janeiro quem afirmou que os debates, ao contrário dos programas eleitorais, têm a virtude de revelar convicções e denunciar hesitações. Os debates vivem de ideias, os programas eleitorais, tal como os comícios, de generalidades. A escolha entre uns e outros não é, portanto, indiferente. (...) os dois partidos (os do rotativismo actual, digo eu!) precisam de um choque ideológico. Ou, dito de outro modo, de um tsunami de ideias. Mas como diz a minha fonte da ponte Atlântica não quero assustá-lo, amigo leitor, com antiguidades, todavia, lá terá de ser. Parecenos que anda muita gente entusiasmada com as pesquisas pré-eleitorais... puro logro!? Verdade... é que ainda não descobrimos seriamente que este país é barroco e precisa de metafísica para viver e para se movimentar. Na verdade, não nos lembramos de um outro período pré-eleitoral, onde os partidos que aspiram a governar este país, tenham uma visão tão racional, tão ampla e precisa sobre o país (este gajo só pode estar... devem dizer alguns, e tem razão). O conjunto de reformas que propõem abriga uma clara elegância de coisa nenhuma, e são de uma harmonia interna que só pode provocar uma indolente emoção. A cascata de argumentos e raciocínios que, em particular, os cabecilhas do actual governo despejam sobre nós, para além de não ter lógica porque foram eles os principais responsáveis pela situação, é gelada como uma lâmina de cutelo. Vamos ver se nos entendemos! Tentativa de explicação: o que a nossa (actual) elite política no poder, não nos conseguiu oferecer, ou não conseguiu desenhar, foi um mito correspondente às suas ambições reformadoras e refundadoras do país, provavelmente qualquer coisa que encarnasse uma aurea mediocritas.
Explique-se melhor esta história de barroco e da metafísica. Não somos barrocos apenas porque desbaratamos uma imensa riqueza nos altares da crendice. A visão de mundo do barroco materializava, nos séculos XVII e XVIII, uma "vontade de crer", uma ânsia de sentidos e significados estáveis para a vida, diante dos estragos relativistas da racionalidade, da ciência nascente e da incerteza quanto à nossa salvação eterna. O avanço da razão e das ideias recheava de dúvidas o mundo, e o barroco organizava a estratégia de reconstituição de um quadro de valores vitais, reclamando da metafísica um enorme esforço reflexivo para a fixação de significados claros para a vida. Ciente da precariedade da própria metafísica, enquanto exercício da razão, o barroco mobilizava a arte para a certificação sensorial destes valores. Daí a sua gesticulação exagerada, torturada, espectaculosa, testemunhal, destinada a conferir veracidade aos valores que dificilmente podiam ser afirmados no campo exclusivo da razão.
Suprema ironia! Sem mostrarmos qualquer arrependimento, somos barrocos porque vivemos num país e duvidamos dele. E o pior é que temos razões para isso. Duvidamos do seu destino, sempre cercado de precariedade e marcado pela exploração, pela injustiça, pela falta de desenvolvimento, pela contaminação da mediocridade. Mas chegámos ao fim da linha: não podemos esperar nenhuma salvação fora dele. Desbaratámos três impérios mais o dinheiro dos contribuintes europeus. O seu fracasso é o nosso fracasso e a nossa perdição. Precisamos de acreditar nele, encontrar para ele um significado e um destino, e por mais que nos custe, isto não é só tarefa para as frias lâminas da razão. Não há encoberto que nos valha. Precisamos é de um mito sobre o país, de uma imaginação que nos devolva permanentemente a candura nas suas possibilidades, por mais irracionais que pareçam. Precisamos de um mito que nos envolva e arrebate, e justifique esta vida de misérias e sacrifícios no quotidiano. E necessitamos dos gestos autênticos, de manifestações concretas, pictóricas, sensoriais, que tornem este mito presente, visível, material e eficaz.
Os nossos patrícios da restante Ibéria ergueram-se com um mito: o de um país com liberdade, vontade e organização. Mas este mito, e qualquer um, seria reles mentira se a realidade nada tivesse a ver com ele. Por isso ele não foi para os povos da Espanha (como não deve ser para nós) produzido por técnicas de manipulação simbólica. Só existe como o desenho vivo de um conjunto de valores exigentes, que sincronize e empolgue os governos e a sociedade. Claro que necessitamos de refundar a nossa vida, mas para tal não precisamos de uma ruptura com a nossa história, devemos é redefinir o nosso mito nacional, reconstruindo-o de modo mais poderoso e envolvente, isto é, a nova epopeia das descobertas tem que ser cá dentro educação, qualificação, majoramento dos recursos. Foi o que não se fez até hoje. A maior parte da actual elite política esqueceu-se (provavelmente nunca aprendeu) que o país precisa de ser vivido como uma epopeia colectiva, não apenas como desvairada passerelle de eunucos. Não foi de admirar este alvoroço da politiquice na escolha de cinzentos parlamentares. Parafraseando as minhas fontes do DESASSOMBRAMENTO: à medida que se aproximam as eleições, vamos assumindo cada vez mais a condição de animais metafísicos e angélicos barrocos. Ninguém parece ter ainda rasgado o véu do que precisamos. Nem a razão! Só um tsunami de ideias...
Acuso-te, Destino! /A própria abelha às vezes se alimenta / Do mel que fabricou.../ E eu leio o que escrevi / Como um notário um testamento alheio./ Esvazio o coração, cuido que me exprimi, / E vou a olhar o poço, e ele continua cheio! / Acuso-te e protesto. / É manifesto / Que existe malvadez ou má vontade! / Com a mais humilíssima humildade, / Requeiro, peço, imploro... / Mas trago às costas esta maldição / De sofrer com razão ou sem razão, / E de não ter alívio nas lágrimas que choro! (Miguel Torga, «Penas do Purgatório». Coimbra, Ed. Autor, 1954; 3.ª ed. 1976)
O DESASSOMBRAMENTO CONTINUARÁ com a ajuda das leituras da ponte Atlântica...
Corre-se o risco de alternar insensatamente entre euforia e depressão quem pautar a sua análise, mesmo de conjuntura, segundo as noticias da comunicação social, em particular a imprensa, especialmente as páginas de economia. Parecemos todos condenados à montanha russa dos índices da bolsa e cotações de moedas e de títulos de nome exótico. Descobrimos a todo o instante, espantados, que uma entidade sem rosto chamada "mercado", colocada acima e além das necessidades humanas, não só adquiriu a vida própria dos fetiches como até desenvolveu uma personalidade de "serial killer". Não há muito tempo, liquidou os chamados tigres asiáticos Coreia do Sul, Taiwan, Singapura, Tailândia, etc., prosseguiu lentamente para outras latitudes e instalou-se em economias débeis e periféricas, como a nossa, mau grado a pertença a um gigante de nome União Europeia.
No momento actual é inútil especular, e muito menos avaliar, por ora, a extensão da crise e a paralisia da nossa economia. Qualquer especulação nesse sentido, além do risco maníaco-depressivo, não contribuiria para esclarecer certos aspectos essenciais tanto da presente crise institucional quanto da frágil posição financeira/económica de Portugal, contaminado como está, por um tumultuoso processo de mediocridade governativa e em pleno período de eleições gerais. Desde já, podemos destacar dois desses aspectos básicos.
Em primeiro lugar, toda a crise, especialmente uma crise deste porte, tem o poder de abalar verdades estabelecidas, às vezes ferindo de morte ideias inexpugnáveis. Assim, em formações sociais como a nossa, está claramente em questão não propriamente a governação canhestra, mas certamente a forma neo-liberal sob a qual ela se impôs avassaladoramente nestes últimos anos. A centralidade da riqueza privada, em particular a financeira, foi acentuada até ao absurdo, em detrimento da coesão social, numa ofensiva impiedosa contra as diferentes formas de compromisso entre capital e trabalho obtidas por direito depois de décadas de atropelos aos direitos sociais, durante o salazarismo.
Em segundo lugar, e não menos importante, esta globalização neo-liberal trata a política como mera província da economia. Ela exige que a acção política se adapte passivamente aos requerimentos do mecanismo económico, como se fosse a única matriz de toda a racionalidade. Impotentes, as sociedades (penoso para os indivíduos que as compõem) devem submeter-se à "disciplina dos mercados", de vocação totalitária evidente. O trabalho torna-se precário e sem garantias, os direitos sociais, que levaram gerações a conquistar, são vistos como intoleráveis privilégios corporativos, a segurança social (direito inalienável) é confiada à irracionalidade exuberante da bolsa de valores.
A "sociedade aberta", para usarmos um polémico termo popperiano, torna-se o palco por excelência do economicismo vulgar, acusação que o próprio Karl Popper outrora tinha tornado clássica em relação aos governos de esquerda (maioritariamente sociais democratas). Não deixa de ser curioso este episódio da dialéctica das ideias. Para Popper, considerado um dos pontos de referência do hodierno pensamento liberal, afirmou que os marxistas cometiam um erro grosseiro na análise do sistema político e social: em suma, na teoria do Estado e da política. Segundo Popper, apesar de contribuir para o envolvimento dos trabalhadores na vida pública, o marxismo, contraditoriamente, comportava uma visão fatalista da própria acção política. A esta caberia, na melhor das hipóteses, "minorar as dores do parto", dando passagem às mudanças operadas na esfera decisiva: os meios de produção e as relações entre as classes.
Ironia das coisas! Então não é também este o papel atribuído à política pela ideologia neoliberal hoje dominante. O Estado nacional, por exemplo, é pressionado a intervir abruptamente no mercado de trabalho, destruindo direitos e deixando os indivíduos à mercê das exigências da acumulação "flexível". Um Estado, portanto, longe de qualquer resquício de neutralidade: forte em relação aos fracos, fraco em relação aos poderes fortes da sociedade. O maior ataque do neo-liberalismo foi este : a cidadania, construída no espaço dos Estados nacionais, está em vias de se tornar apenas memória - em lugar do cidadão, o consumidor. Em lugar do bilhete de identidade ou do cartão de eleitor, apenas o cartão de crédito. Entre outros, parece que foi Mário Soares que aqui há uns tempos alvitrou de que isto não pode continuar assim. Face a esta permanente fuga para a frente, sem se importarem com os excluídos, a pobreza e todos os que estão à margem do festim - podem crer - nada mais estão a fazer do que a criar o contexto adequado para fermentar os primeiros e promissores sinais de rebelião social contra os imperativos da globalização neo-liberal.
Será que pode então estar próximo um retorno da política como capacidade de controlar processos hoje considerados cegos e inexoráveis, e como esfera da invenção de uma vida a salvo do "horror económico"? E porque não acreditar que talvez nasça, como alternativa concreta, uma nova forma social democrata da globalização, se compreendermos "social democracia" num sentido arrojado e mais próximo da situação original, em que sociais democratas eram (talvez se espantem!) Marx e Engels, Bernstein e Kautsky, Rosa e Karl Liebknecht , António Sérgio e Henrique de Barros. Nenhuma semelhança, pois, com a actual falsificação generalizada do termo.
Terra de pedras esburgadas, secas/como esses sentimentos de oito séculos/de roubos e patrões, barões ou condes;/ó terra de ninguém, ninguém,ninguém:/eu te pertenço./És cabra, és badalhoca,/és mais que cachorra pelo cio,/és peste e fome e guerra e dor de coração./Eu te pertenço mas seres minha, não .(Jorge de Sena, excerto do poema A Portugal)
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