Uma análise do Hugo Fernandez sobre os grandes factores estruturantes da sociedade portuguesa o caciquismo, clientelismo e paternalismo -, essas permanências de mando discricionário e sem contraste que persiste desde os antigos chefes políticos, senhores do eleitorado e do voto de cabresto através de foguetório, cunha e mediocridade predicado do Portugal Liberal do séc. XIX. O texto pela sua extensão será dividido em duas partes.
PARTE I
No questionamento que fazemos da nossa vida quotidiana contentamo-nos, muitas vezes, com a enumeração de preceitos e razões que não ultrapassam a dimensão do senso comum. Não é mau que isso aconteça, se tivermos em consideração que, pelo menos, exercemos dessa forma a nossa capacidade crítica e a nossa competência racional. Este âmbito de análise conduz-nos, no entanto, a dois enviesamentos importantes na compreensão do que se passa em nosso redor. Por um lado, não conseguimos ultrapassar o nível da aparência dos fenómenos, perdendo com isso informação indispensável para uma reflexão mais fundamentada. Por outro lado et pour cause, falhamos na detecção das determinantes causais essenciais e na escala e implicações das consequências que advêm das situações com que nos confrontamos. Resultado? Desfocamos a realidade e falhamos o alvo das denúncias.
Vem isto a propósito das passadas eleições autárquicas. A previsível vitória das candidaturas populistas e trauliteiras de Fátima Felgueiras, Isaltino Morais e Valentim Loureiro (Avelino Ferreira Torres era demasiado troglodita para ganhar Amarante), pareceu confirmar aquilo que muitos já anunciavam em finais de Setembro; a glorificação daqueles que se encontram a braços com a justiça, ou mesmo dos mais rematados fora-da-lei, por parte de eleitores ignorantes e idiotas. Como dizia Nicolau Santos no Expresso (24/9/05), Dentro de 15 dias saberemos de que massa somos feitos. Saberemos se somos um povo com valores, que não premeia fugitivos à lei, pessoas que enriqueceram sem explicação válida ou que influenciaram decisões. Ou se somos um grupo de indigentes, que não merece existir como nação.. No mesmo registo, desta feita no Jornal de Notícias (24/9/05), David Pontes afirmava, Nas próximas eleições o que vai estar em escrutínio é a qualidade de um povo, perante o acto mais nobre que pode existir em sociedade, que é o de escolher os seus representantes pelo voto.
Compreendo o sentido de tais afirmações e a indignação que lhes está subjacente. Duvido, no entanto, que a perspectiva adoptada seja a mais pertinente. Cabe, então, interrogar-nos do porquê das sucessivas eleições de tais personagens e da passiva aceitação de um domínio político tão controverso. Isto partindo do princípio, que parece consensual, de que vivemos num regime democrático, onde a liberdade de expressão e a possibilidade de crítica são uma realidade.
É evidente que não é à ignorância ou mesmo a uma alegada estupidez das populações em causa, que podemos assacar as responsabilidades por tal atitude. Até porque se esquece que a qualidade de um povo tem sobretudo a ver com o modelo de sociedade que se adopta e o seu grau de desenvolvimento humano. E estes são, em grande parte, induzidos pelas suas elites e por aqueles que detêm o poder. E é talvez nestes últimos, mais do que naqueles, que temos de procurar as explicações para um conjunto de fenómenos que atravessam a sociedade portuguesa. Porque o que nos parecem ser as opções mais discutíveis e as escolhas mais disparatadas têm razões sociais, políticas e ideológicas profundas, a malha da nossa análise terá que ser bem mais fina.
Enfatizemos apenas um aspecto que nos parece verdadeiramente decisivo; o papel do paternalismo enquanto fenómeno estruturante da nossa sociedade. Este papel é, de resto, concomitante com a lógica da pretensa desideologização dos nossos tempos e o alegado apoliticismo da ordem neoliberal.
A tradição do poder estatal no nosso país é uma tradição eminentemente centralizadora, dando escassa margem de manobra a todos aqueles que não se encontram no Terreiro do Paço, ou que, de alguma forma, não têm capacidade para influenciar as decisões que aí são tomadas. Esta macrocefalia da capital tem, como reverso da medalha, a proliferação de miríades de redes de influência e compadrio locais e da manutenção das inúmeras prebendas e sinecuras dos pequenos poderes. A relatividade e fluidez dos mais elementares princípios éticos, a que assistimos nos dias de hoje, acaba por justificar o injustificável. Como disse no início da década de setenta do século passado o professor norte-americano John Rawls, na sua obra clássica de filosofia política Uma Teoria da Justiça, È fácil, para aqueles que possuem posições sociais mais poderosas, promover os seus interesses de forma injusta sem que se consiga demonstrar que ultrapassaram claramente os limites toleráveis. O óbvio desta constatação radica numa multiplicidade de elementos coadjuvantes dos quais não é despiciente a capacidade de controle sentimental das populações, numa dupla perspectiva ideológica e psicológica (de que, aliás, não podemos arredar o papel desempenhado por uma comunicação social subserviente quando não abertamente cúmplice). Tal como não se pode negar o poder económico e social de que estes tiranetes fazem uso para subjugar as populações.
O líder local é o mediador entre as populações que domina e o poder central. Essa posição acaba por granjear-lhe um estatuto muito particular junto de uns e de outros e a possibilidade de aceder a um conjunto de privilégios que, quando convenientemente usados, propiciam o feed back de todo o sistema e a perpetuação do seu poder. O paternalismo tem, nestas circunstâncias, um espaço de eleição.
CONTINUA