PARTE II (continuação do "post" anterior)
A definição que a ciência política normalmente dá acerca deste fenómeno é a de que o paternalismo é a tendência para exercer o poder político, solucionando os problemas individuais e sociais através de métodos meramente administrativos ou de carácter burocrático, que alienam o indivíduo da sua cidadania e do sistema político em geral. O paternalismo tende, por isso, a ser casuístico na resolução dos problemas e discricionário nos favores e benesses distribuídos. As situações são tratadas individualmente e os problemas resolvidos de forma pontual. Assim sendo, a participação popular é afastada quer-se antes a passividade das populações e uma política simultaneamente autoritária e benévola, análoga à atitude parental para com os filhos menores, passa a ser a regra da actuação política. Esta atitude de carácter assistencial, exercida exclusivamente desde o alto e sem interferências populares, usando métodos administrativos, esvazia o significado da cidadania e mina o funcionamento da democracia.
Apesar de eleitos, estes dirigentes subvertem a representação política, pelo aniquilamento da participação cidadã, confinada que está a actos particulares de agradecimento pelas graças concedidas. O amiguismo e o compadrio são métodos recorrentes de acção. Toda a oposição é silenciada e ostracizada. Os governantes governam segundo a sua exclusiva vontade e não segundo os desejos mais profundos das populações. Podendo coincidir, segundo o seu arbítrio, com alguns destes desejos, reforçam incontestavelmente a sua posição e potenciam o seu domínio. O governo paternal confunde-se, por isso, com o governo despótico ou absoluto reminiscência de um passado longínquo que julgávamos já ultrapassado. Este imperium paternale como lhe chamava Kant infantiliza os cidadãos, torna os indivíduos incapazes de um querer autónomo, esvaziando a democracia e tolhendo a liberdade.
Ora, o paternalismo só pode existir numa sociedade atomizada, onde um individualismo extremo, longe de alargar o campo de actuação de cada um, tolhe os seus movimentos no círculo restrito da dimensão familiar e dos interesses domésticos. Falhos de preocupações sociais e da necessidade de uma intervenção cívica alargada, os indivíduos definham no seu isolamento, incapazes de alcançar o significado democrático da vida em comunidade. As questões de carácter mais geral e de interesse colectivo afinal, aquilo que significa a própria Política perdem-se numa escala microscópica ou paroquial. Aproveitam-se disso, naturalmente, todos aqueles que beneficiam com esse estado de coisas, seguindo os ditames da ordem neo-liberal.
De facto, o que o neo-liberalismo e a teocracia do mercado pretendem é a desregulação das sociedades e solidariedades tradicionais, a falência das ideologias, a proclamação da relatividade ética e moral de que o anything goes do tão propalado pensamento pós-moderno é uma inequívoca manifestação e a redução dos cidadãos à anomia social. Com que objectivos? Atomizar os indivíduos, remetidos à mera condição de consumidores acéfalos, para que uma máquina de consumo desenfreado possa ditar a sua lógica e para que a perpetuação e aprofundamento das desigualdades sociais e do domínio incontestado de alguns possa prevalecer.
O diagnóstico feito por um grupo de cidadãos anónimos de Amarante, numa revista sarcástica que editaram para estas eleições, insurgindo-se contra a anarquia, a demagogia e a opressão protagonizadas pela candidatura do inefável Avelino Ferreira Torres, é certeiro: Às vezes, ponho-me a pensar: se a gente deita o lixo nas praias, cospe para o chão, insulta a mulher, dá porrada nos filhos, foge ao fisco por que raio não havíamos de votar no Avelino?! Felizmente não votaram! Mas os problemas estruturais de desenvolvimento, quer económicos e sociais, quer culturais, e o enorme deficit de cidadania que aqui se denunciam, obrigam-nos a um outro tipo de interrogações que não podem quedar-se pela alegada "má" qualidade do povo. É uma visão demasiado parcial do problema. O modelo de sociedade seguido e a aquiescência dos nossos governantes são factores essenciais a ter em conta.
Antes de julgar apressadamente as populações, devemos, isso sim, começar a exigir aos responsáveis políticos que respondam a uma série de perguntas fundamentais para o nosso devir colectivo. Qual o modelo de sociedade que o nosso país deve adoptar? Que estratégias de desenvolvimento devemos escolher? Qual o papel das autarquias no conjunto nacional? A qualidade do povo é, precisamente, condicionada pelas opções que se fizerem.
O exemplo da Madeira é paradigmático. Aqui, perante a escala e características do poder de que usufrui Alberto João Jardim, dificilmente podemos sequer falar em regime democrático. Neste caso, como em muitos outros, a complacência das nossas elites e governantes é verdadeiramente inadmissível. São eles que são os indigentes. É a eles que cabe a maior quota-parte de responsabilidade na perpetuação de uma situação intolerável. Há muito que este ditador insular devia ter sido afastado do exercício de cargos públicos da democracia portuguesa. Até por uma questão de decoro. Por tudo isto, pensamos que é sobretudo a atitude autista e sobranceira dos nossos governantes que faz com que o nosso país seja, como disse Fernando Sobral no Jornal de Negócios (27/9/05), um donut fora de prazo.