Todos sabemos que o mundo não é a preto e branco. A complexidade com que se apresenta aos nossos olhos, não permite qualquer veleidade de entendimento imediato ou resposta linear. Esta circunstância engendra duas preocupações básicas. Por um lado, não se pode ter a tentação de simplificar o que é complexo. Por outro lado, deve-se perseguir a clareza como forma de actuação pública, com vista a tornar a realidade o mais inteligível possível. O discurso deve ser claro e as intenções perfeitamente assumidas.
Vêm estas considerações a propósito da notícia veiculada na imprensa nos inícios de Novembro, segundo a qual os manuais escolares do estado do Kansas vão poder pôr em causa a teoria da evolução. O processo de selecção natural que Charles Darwin estudou no século XIX e que está na base da biologia moderna é contestada pelo Conselho de Educação deste Estado norte-americano a partir da chamada concepção inteligente, teoria que postula que só a existência de um criador Deus pode explicar a diversidade e a complexidade do Universo e da vida no nosso planeta. Esta teoria não passa de uma versão renovada do criacionismo, a partir de uma leitura literal da Bíblia, promovida pelos sectores mais conservadores da sociedade americana e que tem como um dos maiores defensores, precisamente, o Presidente George W. Bush.
A decisão das autoridades do Kansas tem uma virtude: a de falar claro. E essa é, seguramente, a sua única virtude. Fica claro que ciência e religião nada têm a ver uma com a outra. E ainda quando os cientistas tomem a opção individual aliás, perfeitamente legítima de serem crentes, não poderão deixar de, em nome da ciência, abandonar a religião à porta do laboratório. A não separação destas duas águas, nos moldes referidos, é pura mistificação.
Esta atitude revela, igualmente, um lado mais sombrio. È que as religiões, sendo manifestações fundamentais do espírito humano, tendem pela própria idiossincrasia do processo psicológico da crença, a assumir o estatuto de pensamento único e, nesta conformidade, a produzir intolerância e discriminação. À dúvida metódica da ciência, que só complexos processos de investigação podem, ainda que provisoriamente, iluminar com algumas certezas, contrapõe-se a mentalidade religiosa que parte precisamente das certezas para o entendimento do mundo. Em vez de haver um processo de abertura ao conhecimento verifica-se, pelo contrário, um fechamento à realidade e ao carácter multiforme das suas manifestações.
É, por isso, surpreendente que, na mesma altura em que a NASA investiga a possibilidade de enviar veículos espaciais capazes de desviar, com a força da gravidade, asteróides que estejam em rota de colisão com a Terra, ou quando o telescópio espacial Hubble permite enviar imagens dos limites da nossa galáxia, este tipo de pensamento pareça ter crescente influência. Ou será apenas o natural resultado de uma época em que a religião se encontra irremediavelmente enredada em perspectivas maniqueístas e posturas fundamentalistas que pretendem confundir as várias dimensões do entendimento da realidade e, assim, impor os seus ditames? Todos os dados parecem apontar para tal circunstância. E o que não deixa de ser mais espantoso, é que este fenómeno tanto se verifica nos países mais subdesenvolvidos e nas sociedades mais miseráveis, como conforme demonstra o exemplo dado anteriormente naquele que é considerado o país mais desenvolvido do mundo e numa sociedade que é dada como o exemplo supremo da democracia e do progresso científico.
A isto não é certamente alheio o fenómeno do terrorismo. Com efeito, este constitui a manifestação, por excelência, do fanatismo. O terrorismo também é fruto das verdades insofismáveis, da intolerância e do esquematismo das explicações simplistas e lineares, que tendem a dividir o mundo em bons e maus e a percepcionar a realidade a preto e branco. Ainda mais se é um terrorismo que assume um carácter marcadamente religioso.
Por isso é simultaneamente curioso e sintomático dos tempos em que vivemos, o discurso pronunciado pelo Presidente norte-americano, por ocasião do aniversário do Armistício de 1918, em que este faz o seguinte aviso ao seu homólogo sírio Bashar al-Assad: O governo da Síria deve deixar de exportar a violência e começar a importar a democracia. Mas que democracia é esta? Será aquela democracia à americana que, cada vez mais, se parece com o seu contrário? Será aquela que postula flagrantes limitações à liberdade e à cidadania, através do chamado Patriot Act pacote legislativo que prevê prisões sem culpa formada e por tempo indeterminado, violação de correspondência e escutas telefónicas, censura nos meios de comunicação social ou o uso comprovado da tortura sobre prisioneiros? Será aquela que permite a manutenção do campo de concentração de Guantánamo, onde os detidos se encontram numa zona de não-lei? Será legítimo apelidar de democráticas as flagrantes violações das leis internacionais e da coexistência pacífica entre os povos, com a invasão de países soberanos, a morte indiscriminada de populações e a pilhagem dos seus recursos? Esta lista aparece agora reforçada com a revelação da existência de prisões secretas da CIA para o internamento daqueles que, em qualquer parte do mundo, o poder americano considere serem uma ameaça ao seu domínio absoluto (independentemente, está bem de ver, de serem considerados suspeitos de terrorismo). Situadas em países que usam todo o tipo de violações dos direitos humanos como métodos de interrogatório por infligirem tratamentos cruéis e desumanos e em total segredo e isolamento, esta é uma rede oculta de internamento à escala planetária. A CIA permite-se usar aquilo que eufemisticamente designa por Enhanced Interrogation Techniques que poderíamos traduzir por Técnicas Potenciadas de Interrogatório. Muitas destas técnicas estão formalmente proibidas pelas convenções da ONU de que os E.U.A foram, aliás, signatários bem como, sublinhe-se, pela própria legislação militar americana. Se é esta a democracia que o Presidente Bush preconiza, qual a diferença entre os E.U.A e a Síria ou, para o efeito, qualquer outra ditadura do mundo?
Correntemente o terrorismo é entendido como a prática política extremista e fanática de quem recorre sistematicamente à violência contra as pessoas e os seus bens. A incerteza e o medo provocados pela possibilidade de atentados indiscriminados, provoca um clima de verdadeiro terror. Ora esta situação pode verificar-se dentro de um país, ou ser promovida por governos contra países terceiros. Neste último caso estamos perante um tipo de terrorismo que, tendo a mesma matriz de conduta, tem uma dimensão muito superior que o acréscimo de meios de destruição possibilita e consequências muito mais devastadoras. O terrorismo no Estado passa a terrorismo de Estado. Será que é esta a via que querem seguir os E.U.A?
Como alerta José Gil no Courrier Internacional de 25 de Novembro último, Os dois pólos antitéticos tocam-se: ao horror do terrorismo da Al-Qaeda e outros grupos contrapõe-se a fuga para a frente (na teoria e na prática) na negação daquilo mesmo por que se luta contra o terrorismo. O que conduz a uma outra forma de barbárie e de terrorismo suicida. Ao terrorismo suicida da civilização. Por isso, o filósofo deixa-nos uma exortação: Recusar ser esmagado entre a pressão destes dois pólos que formam um duplo impasse mortífero é hoje um imperativo da luta antiterrorista.
Hugo Fernandez