A questão dos intelectuais é daquelas que costumam ser chamadas de "tradicionais e intemporais". Sai ano, entra ano, mudam hábitos, passam as modas, e o tema persiste. Perniciosos profetas! Já houve quem pregasse o "fim das ideologias", quem se rendesse ao embaciar das utopias, quem falasse em fenecimento dos intelectuais (ou de um certo tipo de intelectual), mas não houve ninguém que deixasse de se interrogar sobre este personagem.
Plasmados, dizemos isto não porque temos um intelectual (ou serão mais?!!!) como candidato à Presidência da República, bem como respeitáveis intelectuais na sua candidatura. Mas é evidente, dizemos nós (outros dirão: - Olha, este ainda acredita no Pai Natal!) que muitos se surpreendam, e com razão, ao constatar que um "mero" escritor/poeta pode chegar ao principal cargo político do país e o exerça, digamos assim, sem pruridos e pondo de lado a maioria dos traços que tipificam o intelectual. Em linhas gerais, estes são traços que o senso comum associa ao amor pelas ideias, ao linguarejar prolixo, a uma certa dificuldade de viver o quotidiano (o que não é o caso), e que o pensamento teórico associa à disposição crítica, à capacidade de elaboração, à dedicação pública, e por que não a um certo engajamento político. O senso comum vê o intelectual pelo que ele tem de mais caricato, e rejeita-o por isto, ainda que o assimile e quase sempre o respeite. O pensamento teórico vê-o antes de tudo pelo ângulo das suas funções substanciais, e valoriza-o por isto. São tantas as imagens possíveis dos intelectuais que qualquer pretensão de tratá-los como se compusessem um agregado homogéneo, distinto dos demais, estará sempre fadada ao mais rotundo insucesso.
Façamos História! Na mesma linha de Marco Nogueira, Elide Rugai Bastos e Walquiria Leão Rego [em Intelectuais e política: a moralidade do compromisso (Campinas/São Paulo), Ed. Olho d'Água, 1999], não é por outro motivo que a literatura está repleta de tentativas de entender os intelectuais, de decifrar os seus papéis e as suas relações com as classes, o Estado e a política. Alguns, como o francês Julien Benda autor de um livro famoso, La trahison des clercs, de 1927 querem (queriam) o intelectual como guardião da cultura superior, dos valores universais (a justiça, a verdade, a razão), condenando todo aquele que trair este ideal e não se deixando "rebaixar" ao plano da política viva ou da contestação. Outros, como o marxista italiano Antonio Gramsci, viam (vêem) o intelectual como um protagonista estratégico na produção da auto consciência crítica de uma comunidade: um organizador, um dirigente, um "especialista" na elaboração conceptual e filosófica, intimamente colado à aventura histórica de um Povo-Nação e, portanto, embebido de política. Mais ou menos estremados por estas posições polares, outros e diversos grandes pensadores deixaram a sua marca no debate: Fichte, Ortega y Gasset, Weber, Mannheim, Croce, Sartre, Bobbio, para evocar os mais estafados.
Dito isto, trata-se, porém, de um debate que não prolifera apenas no terreno teórico mais abstracto. Para o bem ou para o mal, está sempre invadido pela vida, que o enriquece com novas determinações e o acossa com novas inquietações. Todavia, no que é que ficamos? Com as dúvidas mais pessimistas da razão crítica ou com as certezas mais optimistas da vontade política, ou ainda, com a ética da convicção ou com a ética da responsabilidade? O que se pode esperar do intelectual que chega ao poder ou dele se aproxima? Um maior distanciamento em relação às exigências da política ou o abandono da condição mesma do intelectual? Quais os compromissos que tem o intelectual diante das mudanças e dos dilemas do seu tempo?
Estamos perante desafios aliciantes e perturbadores: a reflexão sobre os papéis e a natureza do intelectual só pode crescer em importância. Isto é ainda mais assim porque política e cultura tornaram-se dimensões unidas demais e, sobretudo, porque o mundo da cultura digital, das tecnologias da inteligência, está alucinantemente a assacar maiores desafios a todos os que desejam fazer algo com as ideias. E é assim, acima de tudo, porque vivemos num momento no qual, tendo por fundo uma globalização ainda mal compreendida, verte sem empecilhos a ideia de que se acabaram os contrastes, de que temos de nos adaptar ao que está aí, de que existe apenas uma explicação e de que, portanto, já não necessitamos tanto de inquietação crítica. O desafio continua pensar o intelectual é deixar a porta aberta para um futuro que se anuncia na contramão do sistema uma empreitada revigorante para os tempos de hoje.