Como sempre as leituras da PONTE ATLÂNTICA recordam-nos, de modo inevitável, não só as controvérsias que subjazem numa campanha eleitoral como os delineamentos políticos e institucionais de um regime que se quer democrático. Como sabemos, em política, a ameaça é um recurso de poder tão antigo quanto a própria política. Tem sido empregue de forma declarada, seguida do anúncio de castigos, ou com luvas de pelica, acompanhada da promessa de recompensas. Mas pretende sempre gerar o receio de que haverá algo de funesto se vier a faltar o líder virtuoso (providencial) ou não for seguida a palavra verdadeira.
O processo eleitoral prestes a concluir-se foi vivido sob o signo da ameaça. Quase todos previram desgraças para depois das eleições. O governo, timidamente, não se cansou de recordar o desastre que se seguiria a uma vitória do candidato do (seu) centrão à sua direita . Muitos situacionistas (leia-se do centrão e adeptos do rotativismo), ao contrário, trabalharam com a ideia de que o day after será tenebroso precisamente se os candidatos dos interesses (com alguma distinção e pouca convicção) não for(em) eleito(s). Nesses últimos dias de campanha, ao passo que o governo, atabalhoadamente, se anunciava como fiador da tranquilidade nacional, parte da oposição mais à esquerda falava em «punhalada pelas costas» para qualificar a estratégia desastrada do partido de governo, de facto, com alguma razão.
Utilizando uma ideia do politólogo brasileiro Aurélio Nogueira, poder-se-á afirmar que, vivemos sob o signo da ameaça há muito tempo. Antes do 25 de Abril, ela integrava o nosso quotidiano. Pensámos que, com a democracia, a ameaça seria banida. Na verdade, não foi bem assim: a imagem do inferno acompanhou as tentativas de tomada do poder nos anos que se seguiram, o mesmo sucedeu para aplacar a inflação a partir dos princípios dos anos oitenta, tanto quanto as resistências que se seguiram a elas (tentativas). Mais recentemente, a ameaça ressurgiu com a globalização, a crise financeira internacional, a incerteza quanto ao futuro. E aí estacionamos.
Sem panaceias - trata-se da artimanha preferida da cultura neoliberal que pretende monitorar a globalização até parece que não temos mais história, pois hoje tudo está ao sabor do mercado e o mercado, por se autocorrigir espontaneamente, tornaria supérflua a intervenção da vontade humana. Estamos condenados a uma só ideia, a uma só solução, a um único e bom mundo. Fora isso, o caos ou o nada. Daí o vomitar ameaçador dos situacionistas do centrão.
O governo em boa medida tem compartilhado esse discurso desnorteado: - aceitem-nos, com os remédios amargos que somos obrigado a prescrever, pois somos vítimas de uma situação objectiva inexorável, mais forte do que tudo. Não há outro modo de conviver com as turbulências mundiais. Os nossos únicos perigos são a crise sistémica internacional e a intransigência cega dos interesses corporativistas, que impedem as reformas necessárias. No fundo, dissimulando e querendo ignorar que os principais paladinos dos interesses estão sentados na sua bancada parlamentar.
Esta ameaça que permanece pairando sobre o nosso quotidiano, converteu-se no esteio de uma estratégia de dominação. O engenheiro Sócrates e a sua tralha, não percebeu ou não quis perceber o que aconteceu o ano passado em Fevereiro. Percebemos nós, hoje, que o governo se tornou refém de um estratagema capitaneado pelo grande capital financeiro (improdutivo) e pelos grandes interesses merceeiros. Aceitou também, sem se importar muito com a justiça social, como parceiro de um projecto de hegemonia. Nesse projecto, há uma ideologia que não se consegue conter. Ela dedica-se a sobrepor o mercado ao Estado, o económico ao político, o especulativo ao produtivo. A difundir uma imagem de sociedade como um território de consumidores felizes refractários a qualquer reciprocidade. Nessa sociedade, para eles, não hhaveria necessidade de oposição; bastariam algumas oposições dóceis, construtivas, distantes da contestação sistémica e de tudo que se aproxime do radical, do ideológico, do utópico. Os cidadãos deveriam permanecer colados à sua imediaticidade, aos seus direitos de consumidor, despojando-se de futuro. A política, por sua vez, estaria neutralizada pelo económico, esvaziada como terreno de luta por ideias e projectos. Talvez tenham uma surpresa!
O establishment não se tem poupado esforços para viabilizar essa estratégia de dominação. A social-democracia e a esquerda democrática dos valores e da justiça social foram engolidas por uma coligação vampírica pragmaticamente desenhada. O próprio Presidente que desejam não pode ser alguém que se orgulhe do seu passado de combatividade. O establishment passou a deslegitimar o ser de oposição, dizendo basicamente que ser contra o governo é facilitar a volta dos tempos perniciosos, é ser contra o País, contra a estabilidade, contra as reformas que nos trarão a nova sociedade de amanhã. Perguntamos: então quem tem contribuído para que esta mediocridade seja endémica? Quem tem feito parte do rotativismo? O establishment do centrão, por isso, passou a atribuir-se o papel de única verdade e única certeza, algo quase etéreo, posto que incapaz de se equivocar: os problemas nacionais jamais derivariam de erros de orientação governamental, mas seriam impostos ou pela crise externa ou pela cegueira dos que são "contra". Nesse contexto, e na sua perspectiva, não há espaço para a oposição democrática, a verdade é deles e a eles pertence; não há espaço para viabilizar um projecto alternativo político e democrático.
Foi-nos roubada a alma: ou seja, a aposta nas possibilidades da política como algo mais forte do que a satisfação de interesses materiais específicos ou a contraposição pontual aos governantes. Querem-nos roubar também a hipótese da política como projecto. Com isso, o establishment deixaria de ser contestado prática e teoricamente. Retornando a Aurélio Nogueira, este clima de ameaça, que mobiliza poderosos recursos de poder, não ajuda a oposição democrática a adaptar-se à globalização e a fazer frente à nova moral colectiva em constituição. Pretende bloquear, assim, ao menos no momento presente, a possibilidade de se poder encontrar a abertura por onde se possa aproveitar as condições favoráveis que inegavelmente existem e construir as bases de um outro futuro. Necessitamos de FUTURO