O Irão alega que o seu programa nuclear será usado apenas para fins civis, embora poucos estejam convencidos disso. Israel usará certamente o seu arsenal nuclear secreto (de perto de 200 ogivas), em caso de ameaça. A França, por intermédio do presidente Jacques Chirac, já assegurou que utilizará o seu armamento atómico contra qualquer tentativa alheia de o fazer. Os E.U.A foram o único país do mundo que, até ao presente, fizeram uso efectivo das armas atómicas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, no final da II Guerra Mundial. Temos, então, o seguinte panorama: uma dúvida razoável, uma provável certeza, a afirmação de uma vontade e a garantia do acto consumado. Curiosamente, as desconfianças e a pressão internacional incidem precisamente naquele país que não pode sequer pelo menos por enquanto fabricar uma bomba atómica.
Esta escala de perigosidade nuclear não pode deixar de surpreender. Esquece-se, por exemplo, um país como Israel que, de há anos a esta parte, viola sistematicamente todas as regras do direito e rejeita todas as determinações da comunidade internacional e aceitam-se como válidas as garantias dadas por países como os E.U.A que, por outro lado, advogam as guerras preventivas como forma de resolver os seus diferendos com terceiros. Legitima-se, assim, o recurso à opção nuclear para, como afirmou o presidente francês aquando da visita à base militar de Île Longue (Brest) no passado dia 19 de Janeiro, garantir os nossos aprovisionamentos estratégicos e a defesa dos países aliados. Está bem de ver que dificilmente se pode negar ao Irão a legitimidade do desenvolvimento de um programa nuclear com fins militares se simultaneamente se preconiza o uso dessas armas, mas reservada apenas a alguns. A compatibilização de uma estratégia de dissuasão nuclear com a reiteração de uma política activa de não-proliferação do armamento atómico, unanimemente reconhecido como a principal ameaça à paz e à segurança internacionais, torna-se mais do que duvidosa. É que, como disse um antigo ministro dos Negócios Estrangeiros francês Maurice de Murville nos idos de 1964, Para proibir os outros, é preciso renunciar voluntariamente àquilo que se proíbe (Le Monde Diplomatique, ed. port., Março de 2006). Assim vai a política internacional.
O que parece certo é que a deriva securitária se reflectirá cada vez mais em todos os aspectos da nossa vida, onde quer que nos encontremos. Basta ver a definição das linhas estratégicas de actuação da Policia Judiciária portuguesa, recentemente apresentadas por Santos Cabral, Director Nacional desta força, em que a prioridade das prioridades vai no sentido do combate ao terrorismo, relegando para plano bem mais modesto quer nos meios operacionais envolvidos, quer nas verbas dispendidas o combate à corrupção, ao crime económico e à fraude fiscal. Ninguém duvida que o terrorismo constitui hoje um risco efectivo, potenciado, em larga medida, pela escalada belicista a que nos conduziram as políticas aventureiristas de Washington e Londres, mais preocupados em garantir fontes de abastecimento energético do que em aplacar injustiças e resolver conflitos. Mas o que também me parece inquestionável é que num país onde são sobejamente conhecidos inúmeros casos de compadrio e de corrupção e onde a fuga ao fisco é a regra, estas prioridades são também, no mínimo, surpreendentes. Talvez fosse mais pertinente combater com um acrescido número dos meios policiais disponíveis estes problemas e mobilizar principalmente os esforços políticos e diplomáticos para, por um lado, contribuir empenhadamente para minimizar as causas do fenómeno terrorista e, por outro, rejeitar a lógica neoconservadora do choque das civilizações.
Dois outros factos, recentemente vindos a lume, parecem confirmar a actual ordem das coisas e atestar a prioridade securitária existente. Depois de dois adiamentos, o Congresso americano acabou por aprovar, nos inícios de Março, a renovação do Patriot Act. Este pacote legislativo de excepção, criado logo após os atentados de 11 de Setembro de 2001 preconiza, entre outras pérolas, buscas extra-judiciais, violação de correspondência, escutas telefónicas, prisões arbitrárias e o que designa por provas tangíveis como registos médicos ou mesmo listas de obras consultadas em bibliotecas. Para quem pretende apresentar-se como a nação-modelo da democracia e da defesa da liberdade contra os fundamentalismos, não está mal! Talvez por isso a juíza Sandra Day OConnor, que se demitiu o mês passado depois de 24 anos no Supremo Tribunal dos Estados Unidos nomeada, sublinhe-se, por Ronald Reagan tenha afirmado, num colóquio de advogados que decorreu na Universidade de Georgetown, em Washington, que os E.U.A se encontram em perigo de derrapar para uma ditadura (The Guardian, 13/3/06).
Hugo Fernandez