Várias vezes tenho discordado da opinião de Pedro Norton. Penso até que são mais as ocasiões em que divirjo dos seus raciocínios do que aquelas em que neles me revejo. Mais uma vez isso aconteceu, com um artigo publicado na revista Visão de 29 de Junho. Citando o sombrio retrato que o professor Fernando Machado fez no Expresso da semana anterior sobre o brutal aumento das desigualdades sociais no nosso país Portugal está a tornar-se numa sociedade de contornos dualistas onde quer a opulência quer a pobreza se vão acentuando. (...) Temos a distribuição de rendimento mais desigual e a segunda taxa de risco de pobreza mais elevada da Europa. , Pedro Norton contrapõe-lhe o editorial do The Economist dessa mesma semana que faz, segundo o autor, uma corajosa e politicamente incorrecta defesa da desigualdade, dando como exemplo a afirmação daí retirada de que a desigualdade não é inerentemente errada. Perante estas duas afirmações aparentemente tão antitéticas, Pedro Norton divisa uma real convergência de opiniões. E justifica este acordo com mais uma citação deste último jornal: a desigualdade não é errada desde que se verifiquem três condições: primeiro, a sociedade como um todo está a ficar mais rica; segundo, existe uma rede de segurança para os mais pobres; e terceiro, qualquer pessoa, independentemente da sua classe, raça, credo ou sexo, tem a oportunidade de subir no sistema.
O que falha, então, em Portugal? Pedro Norton esclarece: A sociedade, é sabido, não está a ficar mais rica como um todo. (...) a rede de segurança para os mais pobres continua, em grande medida, a ser uma miragem que não evita a multiplicação de casos de miséria extrema. E, porventura o problema mais difícil de erradicar, em Portugal nem todos têm uma real oportunidade para subir no sistema.. Conclui com uma afirmação lapidar: Em Portugal está longe de ser indiferente ser-se filho de um doutor de Lisboa ou de um camponês de Moimenta. Que extraordinária clarividência! Que perspicácia de análise! Passe embora o lugar-comum do doutor de Lisboa e do camponês de Moimenta, Pedro Norton descobre a pólvora: Seria bom portanto que atacássemos de vez o problema da desigualdade no ponto onde ele precisa verdadeiramente de ser atacado: a desigualdade de oportunidades. E, depois de opiniões tão ajuizadas, o disparate: Por pura demagogia, por ignorância ou por miopia dos mais variados grupos de interesses, ainda não nos livrámos do mito marxista da bondade do igualitarismo. Resultado: no papel somos todos iguais. Na realidade somos todos muito pouco. É a cereja em cima do bolo.
Vamos por partes. O paradigma igualitário foi fruto das revoluções liberais que, há duzentos anos, derrubaram as monarquias absolutistas e aboliram o sistema aristocrático-corporativo de organização social, consubstanciando-se nos primeiros textos constitucionais com o postulado da igualdade de todos perante a lei. À discriminação do privilégio, contrapunha-se a igualdade dos cidadãos. É claro que esta ordem das coisas interessava sobremaneira a uma burguesia que precisava de assegurar a liberdade contratual necessária aos seus negócios e uma igualdade de condição que permitisse o seu domínio social e o controlo do poder político. O que o liberalismo burguês propunha era precisamente que no papel somos todos iguais. Tudo isto, como é bom de ver, muito antes da existência de qualquer ideia marxista.
Aliás, se há algo que desde o início caracterizou a postura político-ideológica do marxismo foi precisamente a crítica ao carácter formal de uma igualdade que, ainda que plasmada na letra da lei, dificilmente podia atalhar às mais gritantes e efectivas desigualdades sociais existentes. A virulência desta crítica chegou mesmo, em diversas ocasiões, a obscurecer o real progresso civilizacional ainda que com todas as limitações conhecidas que representou a emergência deste paradigma igualitário na normatividade jurídico-política da sociedade liberal. Ao longo da história dos dois últimos séculos, toda a actuação dos vários movimentos e correntes de inspiração marxista visou, pelo contrário, tentar dotar de substancialidade aquilo que parecia não passar de um tópico abstracto de discursos oficiais ou o eco de um longínquo horizonte utópico. A luta pela igualdade de oportunidades e por uma sociedade mais justa, motivou a extensão dos direitos cívicos, sociais e económicos que permitiram melhorar o nível de vida de largas camadas da população.
Perante o evidente agravamento das desigualdades nas modernas sociedades capitalistas e às lutas sociais desencadeadas, o pensamento liberal dominante procurou, face às críticas marxistas, encontrar soluções que simultaneamente mitigassem a existência da pobreza mais extrema e mantivessem intacta a ordem social existente. Entre muitos outros autores, são exemplos desta preocupação John Rawls com o seu paradigmático Uma Teoria da Justiça, Ronald Dworkin, Ralf Darhendorf ou Norberto Bobbio. Todos eles preconizaram, tal como consta no editorial do The Economist, que a manutenção das desigualdades sociais que a natural desigualdade de capacidades e motivações entre os indivíduos parece justificar devia permitir assegurar sempre a protecção dos mais pobres e fazer com que o aumento da riqueza de alguns acabe por reverter em benefício de todos. Assegurar, por outro lado, que as oportunidades estejam abertas a todos e não tenham outros entraves para além do mérito e da competência. Mantendo-se, portanto, o princípio da desigualdade, procurou-se compensá-lo com paliativos de ordem ético-moral que evitassem disparidades de riqueza demasiado escandalosas.
Acontece, no entanto, que não só as políticas neo-liberais não tiveram minimamente em conta estas (ou, para o efeito, quaisquer outras) preocupações humanistas, como se verifica um agravamento generalizado da pobreza e um aumento exponencial das desigualdades sociais. Ora aqui reside, precisamente, aquilo que os marxistas sempre consideraram a grande mistificação ideológica da ordem capitalista. Apregoando-se formalmente a igualdade de oportunidades, não se dão efectivas condições para cumprir esse desiderato. Antes pelo contrário. Aliás, qualquer marxista sabe que dificilmente podia ser outro o resultado pois, no actual sistema, apesar da igualdade legal, o acesso diferenciado à propriedade e aos meios de produção, bem a lógica implacável da maximização dos lucros, obriga à reprodução da desigualdade material na repartição da riqueza.
Em todo o caso, só uma total distorção do pensamento político e da história recente, pode assacar aos marxistas a falta de denúncia deste problema. Querer transformar o algoz em vítima parece-nos uma intenção absolutamente reprovável. Por isso, ou Pedro Norton está enganado ou quer enganar-nos.
Hugo Fernandez