Em artigo do Público (16/7/06) Mário Mesquita disserta sobre a coabitação, ou melhor, cumplicidade, entre o Presidente Cavaco e o Primeiro-Ministro Sócrates. Caracteriza a identidade de pontos de vista desses governantes socorrendo-se de dois neologismos certeiros: o economês e o tecnologês. Diz-nos Mário Mesquita: O diálogo entre o economês e o tecnologês, as duas linguagens dominantes, tendem a ajustar-se. A sua convergência aponta no sentido da abolição da política, enquanto área de decisão situada acima do inevitável económico e do inadiável tecnológico. Com efeito, o inevitável económico e o inadiável tecnológico, isto é, a pretensa neutralidade política das escolhas técnicas, é algo de recorrente na moderna sociedade industrial. A eficácia apregoada assenta numa desejada superação da dimensão política, entendida como o espaço privilegiado de confronto ideológico, com a consequente troca de ideias e análise dos vários projectos de sociedade. A visão tecnocrática e economicista obsta, assim, à relativização dos conceitos e procedimentos, sempre passíveis de crítica e de correcção, erigindo-se em pensamento único e numa ordem de cariz tendencialmente totalitário.
Por isso, com a globalização neo-liberal, todas as opções governativas passam por ser inevitabilidades. Lembremo-nos do famoso there is no alternative (TINA), de Margareth Thatcher ou do nunca me engano e raramente tenho dúvidas do nosso Cavaco Silva. Esta postura tem duas consequências fundamentais. Por um lado, fundando-se em certezas absolutas, ostracizam-se todos aqueles que duvidem da eficácia das opções tomadas ou contestem a sua inevitabilidade. Por outro, entronizam-se os dirigentes políticos numa aura de infalibilidade e providencialismo de feição quase divina. Aparentemente retornamos ao determinismo fatalista pré-moderno, característico das sociedades do Ancien Régime. Tal como nessa época, acumulam-se erros e vaidades, injustiças e prepotências, ressentimentos e arrogâncias.
Exemplo acabado desta obstinação e self-fulfilment é a actual ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues. Como diz São José Almeida (Público, 22/7/06), A ministra da Educação é uma esperta e os portugueses são todos burros, em particular os professores, os alunos e os pais destes. Verdade seja dita que tal tendência teve conhecidos antecedentes. Penso, no entanto, que esta personagem conseguiu atingir um refinamento de discricionariedade que dificilmente encontraremos no passado recente. E, mais uma vez, é com um neologismo que melhor podemos definir a actual situação; trata-se, na feliz expressão de Nuno Crato em livro recente, do eduquês.
O eduquês apresenta, na nossa opinião, dois grandes eixos de pensamento e actuação. Por um lado, a defesa de uma pedagogia romântica e construtivista de inspiração rousseauista que preconiza e estamos a falar do ensino básico o ensino centrado no aluno. Desta forma simplista, diluem-se responsabilidades e alijam-se competências. Como se todo o ensino não tivesse que ser induzido ainda para mais tratando-se de alunos em idades tão jovens não implicasse esforço e, portanto, algum grau de constrangimento e mesmo contrariedade (o que obviamente não significa deixar de tentar, na medida do possível, ir de encontro aos interesses imediatos do aluno) e não tivesse que assentar em funções e tarefas bem definidas. A outra vertente, não menos significativa, tem a ver com a pretensão de mostrar a escola como uma espécie de ilha, local idílico incólume às contradições e conflitos existentes na sociedade. Faz-se de conta que o ponto de partida dos alunos é o mesmo. Quando o desfasamento se torna por demais evidente, baixa-se o grau de exigência para atender às dificuldades entretanto surgidas. Evita-se um verdadeiro investimento na educação (em especial de recursos humanos) e mantêm-se pais e alunos satisfeitos. Esta prática populista tem constituído, nos últimos anos, a matriz da política educativa de sucessivos governos. Perde o conhecimento, ganham as estatísticas: o sucesso é garantido.
Este falso igualitarismo cria, está bem de ver, distorções importantes. Por um lado, dificilmente se podem igualizar situações que são manifestamente desiguais. Por outro lado, o falhanço do sistema, patente nas altíssimas taxas de abandono escolar recorrentes, obriga à criação de bodes expiatórios os professores, claro que carreguem com as culpas de uma sociedade obviamente injusta e desigualitária. No deve e haver economicista, o eduquês promove uma política de funcionalização e proletarização dos professores, retirando-lhes estatuto e autoridade e asfixiando a sua actuação. Isso dá mais eficácia ao sistema? Claro que não. Cria, isso sim, mais revolta, tensões e desmotivação junto daqueles profissionais que são um dos parceiros essenciais de qualquer política educativa correcta. O que é mais importante é descurado: o que se ensina e como se ensina, isto é, currículos, programas e procedimentos. E os que estão actualmente em vigor não foram certamente os professores que os determinaram.
Só o completo alheamento da realidade e a arrogância da verdade revelada podem explicar as declarações proferidas por Maria de Lurdes Rodrigues num debate com militantes do PS realizado em Coimbra um dia depois de ter ido ao Parlamento defender o indefensável sobre os exames: Apesar de a oposição ter tentado exaltar o clima, nas escolas tudo se passa com tranquilidade e isso é o mais importante para mim. Nada podia ser mais falso. As escolas vivem um ambiente de profunda agitação por causa da arbitrariedade das medidas tomadas pelo Ministério da Educação. A perseguição aos professores e a sua constante descredibilização aos olhos da sociedade, numa campanha governamental com laivos de autêntica paranóia, criam um ambiente de profundo desgaste e indignação junto de um dos parceiros fundamentais para êxito educativo.
Aliás, o facto inédito da repetição dos exames de Física e Química do 12º ano por falta de capacidade de prever um problema que era conhecido, o das dificuldades sentidas pelos alunos na adaptação ao novo programa ou às respectivas provas de avaliação (conforme se reconhece em nota do Ministério e para o qual, sublinhe-se, os docentes a seu tempo tinham alertado a tutela) é só o último episódio de uma série de medidas avulsas e de decisões irresponsáveis do Ministério. Afinal onde está o rigor proclamado? Que credibilidade pode ter esta equipa ministerial que nunca assume os seus erros e que passa sempre as culpas para os outros? Que preocupações pedagógicas podem presidir a tamanho desvario? Porque é que nunca se ouvem os professores e as suas organizações representativas que, com a experiência do terreno, podiam ser preciosos aliados na definição de uma política educativa consistente?
No seu editorial no Público (21/7/06), José Manuel Fernandes apelidou de trágico o debate ocorrido no Parlamento, explicando que Não se tratou apenas de falta de jeito ou de traquejo político: foi não ter percebido que, tendo o ministério cometido um erro, é melhor assumi-lo do que negá-lo, porque, ao negar a realidade, um político perde o seu principal capital: a confiança que nele devem depositar os cidadãos. Conclui este seu comentário, dizendo: Ao sustentar o insustentável, a ministra da Educação colocou-se nas mãos do pior que há no seu ministério. Aliás, a análise da semana política que este jornal fez no dia seguinte é impiedoso: Até há dias, era a ministra destemida, determinada, que apontava o dedo aos erros do sistema e aos seus protagonistas e garantia que nada mais seria como dantes. Mas o feitiço virou-se contra o feiticeiro. À primeira contrariedade faltou-lhe a coragem para assumir o erro, a determinação para o corrigir e a compostura para enfrentar as consequências. Obrigada a ir ao Parlamento, ali só lhe faltou chorar. É que, na verdade, o economês, o tecnologês e o eduquês rimam com farsa.
Hugo Fernandez