Indesmentivelmente que uma das mais importantes vitórias do mundo moderno, em particular, nesta temporalidade histórica que teve o seu início na segunda metade do século XX, foi o aprofundamento radical das margens da liberdade individual. Emergindo das sombras do tradicionalismo, os indivíduos foram a pouco e pouco soltando-se e afirmando-se sobre grupos, normas e convenções. Tornaram-se mais autónomos e independentes, e passaram a explorar as brechas que se foram abrindo na vida social e institucional. Ganharam espaço e começaram, pasme-se, a ser vistos não só como portadores de direitos inalienáveis, mas também como entes singulares, dotados de ritmos, idiossincrasias, preferências e valores próprios, que não deveriam ser sufocados.
Claro que os governos "pidescos" e o autoritarismo não desapareceram e o tradicionalismo - em todas as suas múltiplas formas - continuou a reproduzir-se. O confronto entre o individual e o colectivo não cessou de se refazer. Em muitos casos, deu-se até mesmo uma ruptura do indivíduo com o institucional ou com o social: isolamento, aviltamento cívico, indiferença, egoísmo, vontade de se voltar contra tudo e todos, ser dono do próprio nariz, e assim por diante (todos e cada um há sua maneira teve a sua dose!). É verdade que houve momentos em que aumentou a dificuldade de compor a liberdade e a ordem, a pulsão criativa e a disciplina, a diferença e a norma. Mas isso não explica, muito menos desculpa, o avanço da individualidade confundindo-se com o individualismo possessivo e o niilismo, e sendo por eles deformado. Evidentemente, por trás de tudo, o mercado, a concorrência, a acumulação.
Estabeleceu-se então um paradoxo: quanto mais se glorificou o indivíduo, mais se desagregou o colectivo e mais se teve de recuperar o controlo sobre as pessoas. O individualismo, deste modo, ficou represado. Veja-se a actual situação no campo das Instituições. No plano do discurso, proliferam e são fartos os elogios à diferenciação, à criatividade, ao empreendedorismo, ao respeito pelas peculiaridades de cada um. Diz-se que as normas burocráticas precisam de ser flexibilizadas e que a burocracia deve ser substituída pela gestão administrativa racionalizadora. Aparentemente, sobram incentivos para que as pessoas sejam tratadas como individualidades singulares, para que os controlos se tornem suaves, discretos e inteligentes, tanto quanto possível controláveis pelos funcionários racionalizadores. Todos dizem que a gestão, em suma, precisa de ser estratégica, democrática, participativa (lindo!).
Tudo isto integra a retórica que hoje prevalece e está na boca de todo o executivo, de qualquer gestor ou dirigente, dos consultores em geral. No entanto, há um abismo entre esta retórica e o dia-a-dia das instituições. As rotinas continuam emperradas, os controlos ainda são prepotentes e arbitrários, a discricionariedade e o compadrio é usual, quase todas as decisões são unilaterais e, acima de tudo, ainda há doses cavalares de desrespeito pelas pessoas, que são muitas vezes tratadas como mero numerário (o que conta é a estatística), gado a ser tangido ou suportado. Demitem-se e despendem-se trabalhadores com a mesma facilidade com que se apaga um arquivo ou ficheiro do computador, em nome da racionalidade e do omnipresente défice.
Isto é assim sobretudo nas instituições que, pela sua natureza de serviço público, são menos dinâmicas ou mais submetidas a crises de identidade. Diversos órgãos da administração pública, por exemplo, fornecem exemplos cabais desta situação. Como enfrentam seguidos problemas orçamentais (muitas são causa e consequência dos gestores «partidários» que os governos apadrinham) sofrem o bloqueio do mercado e tendem a ser submissas às orientações neoliberais dos seus governos, tais instituições mergulham na confusão e no definhamento. Ficam expostas à acção de dirigentes pouco sensíveis ao quadro geral, que aprofundam a quebra de lealdades, pisam a auto-estima dos funcionários e desfazem a cultura organizacional. Movidos por uma fé fanática na racionalização e no economicismo, os novos caudilhos exacerbam as suas funções e em vez de ajudar as instituições a sair da crise, agem para liquidá-las.
Este estilo de chefatura não distingue nem respeita indivíduos nem singularidades, por mais que fale uma língua moderna. Para ele, a independência, o mérito e a distinção pessoal são perigosos, pois criam espaços subversivos, fora do alcance normativo. Agindo em nome do que julgam ser racional, os novos chefes esmagam os que estão a eles submetidos, traindo a lógica da sua própria retórica. A reengenharia a que submetem as instituições quebra a espinha dorsal delas, retira seu oxigénio e, pior ainda, rouba-lhes a memória.
Diante destes novos chefes, o avanço da liberdade individual retrocede ainda mais. É a teoria gerencial e administrativa de vanguarda tão generosa nos elogios aos recursos humanos e à criatividade pessoal acagaça-se e ruboriza-se, encavacada perante os estragos que são feitos em seu nome.
Mais uma vez a publicitação deste texto só foi possível devido às leituras da PONTE ATLÂNTICA, entre outros, de Milton Lahuerta, Marco Aurélio Nogueira, Marçal Brandão, Fernando de