Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!
Segunda-feira, 14 de Agosto de 2006
Instituições, Cidadãos e o resto…!!

Indesmentivelmente que uma das mais importantes vitórias do mundo moderno, em particular, nesta temporalidade histórica que teve o seu início na segunda metade do século XX, foi o aprofundamento radical das margens da liberdade individual. Emergindo das sombras do tradicionalismo, os indivíduos foram a pouco e pouco soltando-se e afirmando-se sobre grupos, normas e convenções. Tornaram-se mais autónomos e independentes, e passaram a explorar as brechas que se foram abrindo na vida social e institucional. Ganharam espaço e começaram, pasme-se, a ser vistos não só como portadores de direitos inalienáveis, mas também como entes singulares, dotados de ritmos, idiossincrasias, preferências e valores próprios, que não deveriam ser sufocados.


Claro que os governos "pidescos" e o autoritarismo não desapareceram e o tradicionalismo - em todas as suas múltiplas formas - continuou a reproduzir-se. O confronto entre o individual e o colectivo não cessou de se refazer. Em muitos casos, deu-se até mesmo uma ruptura do indivíduo com o institucional ou com o social: isolamento, aviltamento cívico, indiferença, egoísmo, vontade de se voltar contra tudo e todos, ser dono do próprio nariz, e assim por diante (todos e cada um há sua maneira teve a sua dose!). É verdade que houve momentos em que aumentou a dificuldade de compor a liberdade e a ordem, a pulsão criativa e a disciplina, a diferença e a norma. Mas isso não explica, muito menos desculpa, o avanço da individualidade confundindo-se com o individualismo possessivo e o niilismo, e sendo por eles deformado. Evidentemente, por trás de tudo, o mercado, a concorrência, a acumulação.


Estabeleceu-se então um paradoxo: quanto mais se glorificou o indivíduo, mais se desagregou o colectivo e mais se teve de recuperar o controlo sobre as pessoas. O individualismo, deste modo, ficou represado. Veja-se a actual situação no campo das Instituições. No plano do discurso, proliferam e são fartos os elogios à diferenciação, à criatividade, ao empreendedorismo, ao respeito pelas peculiaridades de cada um. Diz-se que as normas burocráticas precisam de ser flexibilizadas e que a burocracia deve ser substituída pela “gestão administrativa racionalizadora”. Aparentemente, sobram incentivos para que as pessoas sejam tratadas como individualidades singulares, para que os controlos se tornem suaves, discretos e inteligentes, tanto quanto possível controláveis pelos “funcionários racionalizadores”. Todos dizem que a gestão, em suma, precisa de ser estratégica, democrática, participativa (lindo!).


Tudo isto integra a retórica que hoje prevalece e está na boca de todo o executivo, de qualquer “gestor” ou dirigente, dos consultores em geral. No entanto, há um abismo entre esta retórica e o dia-a-dia das instituições. As rotinas continuam emperradas, os controlos ainda são prepotentes e arbitrários, a discricionariedade e o compadrio é usual, quase todas as decisões são unilaterais e, acima de tudo, ainda há doses cavalares de desrespeito pelas pessoas, que são muitas vezes tratadas como mero numerário (o que conta é a estatística), gado a ser tangido ou suportado. Demitem-se e despendem-se trabalhadores com a mesma facilidade com que se apaga um arquivo ou ficheiro do computador, em nome da racionalidade e do omnipresente défice.


Isto é assim sobretudo nas instituições que, pela sua natureza de serviço público, são menos dinâmicas ou mais submetidas a crises de identidade. Diversos órgãos da administração pública, por exemplo, fornecem exemplos cabais desta situação. Como enfrentam seguidos problemas orçamentais (muitas são causa e consequência dos gestores «partidários» que os governos apadrinham) sofrem o bloqueio do mercado e tendem a ser submissas às orientações neoliberais dos seus governos, tais instituições mergulham na confusão e no definhamento. Ficam expostas à acção de dirigentes pouco sensíveis ao quadro geral, que aprofundam a quebra de lealdades, pisam a auto-estima dos funcionários e desfazem a cultura organizacional. Movidos por uma fé fanática na “racionalização” e no economicismo, os novos “caudilhos” exacerbam as suas funções e em vez de ajudar as instituições a sair da crise, agem para liquidá-las.


Este estilo de “chefatura” não distingue nem respeita indivíduos nem singularidades, por mais que fale uma língua moderna. Para ele, a independência, o mérito e a distinção pessoal são perigosos, pois criam espaços subversivos, fora do alcance normativo. Agindo em nome do que julgam ser “racional”, os novos chefes esmagam os que estão a eles submetidos, traindo a lógica da sua própria retórica. A “reengenharia” a que submetem as instituições quebra a espinha dorsal delas, retira seu oxigénio e, pior ainda, rouba-lhes a memória.


Diante destes novos chefes, o avanço da liberdade individual retrocede ainda mais. É a teoria “gerencial” e administrativa de vanguarda – tão generosa nos elogios aos recursos humanos e à criatividade pessoal – acagaça-se e ruboriza-se, “encavacada” perante os estragos que são feitos em seu nome.


Mais uma vez a publicitação deste texto só foi possível devido às leituras da PONTE ATLÂNTICA, entre outros, de Milton Lahuerta, Marco Aurélio Nogueira, Marçal Brandão, Fernando de La Cuadra, Alessia Ansaloni, Leandro Konder, Guido Liguori, etc.



publicado por albardeiro às 19:55
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