A propósito do artigo do António Barreto publicado no Público de hoje
A ameaça é um recurso de poder tão antigo quanto a própria política. Tem sido utilizada de forma manifesta, seguida do anúncio de castigos, ou com luvas acetinadas, acompanhada da promessa de recompensas. Mas pretende sempre gerar o receio de que haverá algo de nefasto e pernicioso se vier a faltar o líder virtuoso ou não for seguida a palavra verdadeira. Que triste fado - viver sempre sob o signo da ameaça. Na época da ditadura, ela integrava o nosso quotidiano. Acreditámos que, com a democracia, a ameaça seria banida. Afinal de contas, não me parece que fosse/seja assim: Será que estamos condenados a uma só ideia, a uma só solução, a um único e bom mundo. Fora isso, o caos ou o nada. A ameaça, converteu-se no esteio de uma estratégia de dominação. Aceitou-se também como parceiro de um projecto de hegemonia. Nesse projecto, há uma ideologia que não se consegue conter. Ela dedica-se a disseminar uma imagem de sociedade como um território de obedientes (o respeitinho ). Nessa sociedade, não há necessidade de oposição; bastam algumas oposições dóceis, lamurientas quanto baste, distantes da contestação sistémica. Os cidadãos devem permanecer colados ao seu viver poucochinho, apenas aos seus direitos de consumidor, despojando-se de futuro. O establishment não tem poupado esforços para viabilizar essa estratégia de dominação. O establishment passou a deslegitimar aqueles que não concordam, dizendo basicamente que ser contra o governo era facilitar a volta dos tempos perigosos, era ser contra o País, contra a estabilidade, contra as reformas que nos trarão a nova sociedade de amanhã. O establishment, por isso, passou a atribuir ao governo o papel de única verdade e única certeza, algo quase etéreo, posto que incapaz de se equivocar: os problemas nacionais jamais derivariam de erros de orientação governamental, mas seriam impostos ou pela crise externa ou pela cegueira dos que são "contra". Está ser-nos roubada a alma. Temos que encontrar formas de estancar este clima de ameaça, que mobiliza poderosos recursos de poder.
"A lei das chefias da Administração Pública, ditas de "confiança política" e cujos mandatos cessam com novas eleições, foi um gesto fundador. O bilhete de identidade "quase único" foi um sinal revelador. O Governo queria construir, paulatinamente, os mecanismos de controlo e informação. E quis significar à opinião que, nesse propósito, não brincava. A criação de um órgão de coordenação de todas as polícias parecia ser uma medida meramente técnica, mas percebeu-se que não era só isso. A colocação de tal organismo sob a tutela directa do primeiro-ministro veio esclarecer dúvidas. A revisão e reforma do estatuto do jornalista e da Entidade Reguladora para a Comunicação confirmaram um espírito. A exposição pública dos nomes de alguns devedores fiscais inscrevia-se nesta linha de conduta. Os apelos à delação de funcionários ultrapassaram as fronteiras da decência. O processo disciplinar instaurado contra um professor que terá "desabafado" ou "insultado" o primeiro-ministro mostrou intranquilidade e crispação, o que não é particularmente grave, mas é sobretudo um aviso e, talvez, o primeiro de uma série cujo âmbito se desconhece ainda. A criação, anunciada esta semana, de um ficheiro dos funcionários públicos com cruzamento de todas as informações relativas a esses cidadãos, incluindo pormenores da vida privada dos próprios e dos seus filhos, agrava e concretiza um plano inadmissível de ingerência do Estado na vida dos cidadãos. Finalmente, o processo que Sócrates intentou agora contra um "bloguista" que, há anos, iniciou o episódio dos "diplomas" universitários do primeiro-ministro é mais um passo numa construção que ainda não tem nome. Não se trata de imperícia. Se fosse, já o rumo teria sido corrigido. Não são ventos de loucura. Se fossem, teriam sido como tal denunciados. Nem são caprichos. É uma intenção, é uma estratégia, é um plano minuciosamente preparado e meticulosamente posto em prática. Passo a passo. Com ordem de prioridades. Primeiro os instrumentos, depois as leis, a seguir as medidas práticas, finalmente os gestos. E toda a vida pública será abrangida. Não serão apenas a liberdade individual, os direitos e garantias dos cidadãos ou a liberdade de expressão que são atingidos. Serão também as políticas de toda a espécie, as financeiras e as de investimento, como as da saúde, da educação, administrativas e todas as outras. O que se passou com a Ota é bem significativo. Só o Presidente da República e as sondagens de opinião puseram termo, provisoriamente, note-se, a uma teimosia que se transformara numa pura irracionalidade. No país, já nem se discutem os méritos da questão em termos técnicos, sociais e económicos. O mesmo está em vias de acontecer com o TGV. E não se pense que o Governo não sabe explicar ou que mostra deficiências na sua política de comunicação. Não. O Governo, pelo contrário, sabe muito bem comunicar. Sabe falar com quem o ouve, gosta de informar quem o acata. Aprecia a companhia dos seus seguidores, do banqueiro de Estado e dos patrícios das empresas participadas. Só explica o que quer. Não explica o que não quer. E só informa sobre o que lhe convém, quando convém."
António Barreto, in Público
(agradecimentos ao João Gonçalves do Portugal dos Pequeninos http://portugaldospequeninos.blogspot.com/)