Poderá, numa democracia, um governo governar contra a vontade maioritária e reiteradamente manifestada da população? Poderá o “governo do povo, pelo povo e para o povo”, na definição lapidar de Abraham Lincoln no célebre discurso de 1863, em Gettysburg, deliberar contra o povo? A julgar pelo que se passa em França com o aumento da idade da reforma, parece que sim. De forma esmagadora (as sondagens à opinião pública contabilizam cerca de 70% de opositores à reforma e até 90% quando apenas se conta a população ativa) e reiterada (com constantes manifestações nas principais cidades francesas), a resistência francesa ao aumento da idade da reforma dos atuais 62 para os 64 constitui uma enorme onda de contestação à reforma que o Presidente Emmanuel Macron e a sua primeira-ministra, Elisabeth Borne, querem impor a todo o custo, juntando gente de várias idades, profissões e condição social.
Apesar das mobilizações recorde – cerca de 300 manifestações e comícios no dia 7 de março e 3,5 milhões de manifestantes nas ruas – desde a primeira jornada de luta, a 19 de janeiro, que o adiamento da idade da reforma foi imposto de forma intransigente pelo Governo de Macron, usando todo o tipo de expedientes legislativos manhosos para o conseguir: limitar a duração dos debates parlamentares (artigo 47-1 da Constituição), obrigar à votação da reforma em bloco e não artigo a artigo (artigo 44-3) e, finalmente, a 16 de março de 2023, o tristemente “célebre” artigo 49-3 que autorizou a dispensa do voto dos deputados da Assembleia Nacional, remetendo a lei diretamente para o Senado. Assim, como refere o historiador Benoît Bréville, “No final, a sua reforma das pensões, que compromete a vida dos franceses para várias décadas, só terá sido aprovada por senadores eleitos por sufrágio indireto, que cuidaram de proteger o seu próprio regime especial no momento em que eliminavam os dos outros.”, acrescentando que “Os dois anos de trabalho suplementar impostos sem aprovação da Assembleia Nacional apenas assentam, assim, na legitimidade de uma instituição dominada por um partido (o Republicanos) que não ultrapassou 5% dos votos nas últimas eleições presidenciais, e da qual estão ausentes as duas principais formações (a Reunião Nacional [RN] e a França Insubmissa [LFI]…” (Benoît Bréville, “Um povo de pé, um poder obstinado”, Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, abril de 2023).
O próprio Macron, na primeira volta das eleições presidenciais há um ano (24 de abril de 2022), apenas obteve 20,7% dos votos, contando para a sua vitória na 2ª volta (58,5%) com os votos daqueles que queriam barrar Marine Le Pen, conforme o próprio reconheceu na noite da vitória: “Eu sei que muitos dos nossos compatriotas não votaram em mim para apoiar as ideias que eu defendo, mas para fazer barragem à extrema-direita. […] Tenho consciência de que este voto me obriga para os próximos anos.” Compromisso rapidamente esquecido quando, a 21 de março último, afirmou, sem qualquer rebuço, “A multidão não tem legitimidade face ao povo que se exprime através dos seus eleitos”. Como se lê no Le Monde Diplomatique, “O mundo político perdeu crédito, deteriorado por governos cujo objetivo é tornar felizes os acionistas […]. Quando a orientação é o desprezo pelas pessoas comuns, os dirigentes só alimentam dois tipos de reações: a resignação ou a revolta. Eles apostam na resignação, mas o desejo de viver uma vida digna reacendeu a força de lutar entre os menos politizados e remobilizou sindicatos.” (“Pensões de reforma: onda de choque em França”, Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, abril de 2023).
Esta forma de atuar, que está longe de ser caso único e que encontra em Portugal exemplos similares (a ostracização de classes profissionais inteiras, como a dos docentes), não pode deixar de merecer alguma reflexão. Antes de mais pelo significado que estas medidas têm na vida das comunidades. É que, como refere Paulo Pedroso, sociólogo e ex-ministro do Trabalho, em entrevista ao Público (8/4/23), “um sistema de segurança social, para ser forte, tem de merecer a confiança das pessoas. É preferível uma reforma menos perfeita e negociada do que uma reforma que pareça perfeita e que não é aceite.” Se a média da idade da reforma dos países da União Europeia está nos 65 anos e em Portugal nos 66 anos, não se terá ido já longe de mais?
Embora o progressivo envelhecimento da população, a crescente digitalização e as transformações do mundo do trabalho sejam realidades presentes na generalidade dos países europeus, há questões que devem ser tidas em conta e que os cidadãos insistentemente reclamam: não só se têm de encontrar novas fontes de financiamento dos sistemas de segurança social (nomeadamente através da taxação das gigantes tecnológicas), combater com eficácia a evasão fiscal e promover o fim das offshores, como potenciar as indústrias e serviços ligados aos reformados e pensionistas que podem constituir um fator acrescido de dinamismo da economia. Longe de serem uma população descartável, reformados e pensionistas são cidadãos ativos e intervenientes na sociedade. Podem representar simultaneamente uma oportunidade de reforço da coesão social e de desenvolvimento económico.
Está também em causa o entendimento da própria democracia. O princípio da soberania popular, ainda que a governação obedeça aos ditames da representação política e do jogo parlamentar, poderá reduzir-se à periódica liturgia eleitoral? Poderá o sistema democrático limitar-se a uma competição pelo voto popular para a conquista do poder, subsumindo a realização do bem comum a um mero cálculo eleitoral? Tratar-se-á de um simples jogo de elites, corporizado na formação de uma “classe política” – segundo a conhecida designação do politólogo italiano Gaetano Mosca – ou a emanação de uma verdadeira cidadania? Ecoam as palavras de Jean-Jacques Rousseau, no livro III do seu Du Contrat Social (1762): “Le peuple anglais pense être libre, il se trompe fort; il ne l’est que durant l’élection des membres du parlement: sitôt qu’ils sont élus, il est esclave, il n’est rien.” (Paris, Le Livre de Poche,1996, p. 118). Neste caso, estaremos perante o domínio efetivo da democracia ou apenas da sua encenação? Queremos uma democracia “de baixa intensidade”, em que à votação maioritária se deseja que corresponda uma resignação cidadã, ou não será a possibilidade da população se fazer ouvir – e ser tida em conta – fora dos períodos eleitorais, condição sine qua non para uma democracia plena?
É a democracia participativa que confere substância à democracia representativa. Só a articulação das duas vincula governantes e governados aos pressupostos da cidadania, evitando simultaneamente o poder excessivo da “classe política” e o populismo das soluções plebiscitárias. Ainda que o interesse geral não coincida, naturalmente, com o interesse de todos, é fundamental que a governação não se reduza ao interesse de alguns. Nesse caso, estaremos perante o que Boaventura de Sousa Santos descreve como a “liquidação do potencial emancipatório da modernidade pela via dupla da hegemonização da racionalidade técnico-científica […] e da hipertrofia do princípio do mercado em detrimento do princípio do Estado e com o «esquecimento» total do princípio da comunidade rousseauiana.” (Boaventura de Sousa Santos, Pela Mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade, Porto, Afrontamento, 1994, p. 208). Como conclui, mais adiante, o sociólogo coimbrão, “O capitalismo [liberal] não é criticável por não ser democrático, mas por não ser suficientemente democrático.” (ibid. p. 232).
Uma influência real dos cidadãos na governação permitirá a sua vinculação à democracia e assegurará a harmonia da sociedade. As pessoas precisam que os seus problemas encontrem eco nas políticas públicas. O seu afastamento da participação política (exceto nos momentos eleitorais pontuais), levará à descrença na democracia. E esta conduzirá, inevitavelmente, ao populismo e à tirania. Como sublinham o economista Jean-Paul Fitoussi e o historiador Pierre Rosanvallon, “A ascensão do populismo deve ser compreendida a partir das diferentes figuras da deceção democrática. A crise política alimenta-se antes de mais do sentimento de traição da representação: os representantes não fazem o que os representados desejariam.” (Jean-Paul Fitoussi e Pierre Rosanvallon, A Nova Era das Desigualdades, Oeiras, Celta, 1997, p. 135).
Hugo Fernandez
Faleceu Rui Nabeiro, um exemplo de Robert Owen, que fez de Campo Maior uma outra New Lanark. Um alentejano, um raiano que fez do ir e vir na transposição da fronteira um modo de “ganhar a vida”, e daí começou um “negócio” cuja dimensão factual o guindou a um dos maiores empresários, cujo sucesso não se consubstanciou só numa abordagem do lucro pelo lucro. Aliás, o José Luís Peixoto no seu livro “Almoço de Domingo” tem isso bem marcado no registo que fez de Rui Nabeiro.
É uma honra para mim elogiar um empresário que teve preocupações sociais como pessoa e na sua estratégia de negócios. É raro encontrar líderes empresariais que estejam dispostos a colocar as necessidades da sociedade acima do lucro, mas esses líderes são vitais para criar um mundo melhor para todos nós.
Ao incorporar preocupações sociais nos seus negócios, este empresário demonstrou um forte senso de responsabilidade social e cidadania corporativa. Ele entendeu que a responsabilidade dos negócios vai além de simplesmente gerar lucros e que as empresas têm um papel importante a desempenhar na construção de uma sociedade mais justa e sustentável.
Além disso, ao fazer escolhas conscientes em relação aos seus produtos, serviços e práticas empresariais, este empresário contribui para moldar um mercado mais ético e responsável. Creio que provou que é possível equilibrar preocupações sociais e económicas, que empresas responsáveis podem ser bem-sucedidas e lucrativas ao mesmo tempo.
Ao investir em projetos sociais e comunitários (Campo Maior e outros locais são disso prova), projetos de natureza académica e científica (A Cátedra Rui Nabeiro, na Universidade de Évora, destina-se à promoção da investigação, do ensino e da divulgação científica na área da Biodiversidade), este empresário contribui ativamente para o desenvolvimento e bem-estar da sociedade. Não será de mais salientar, ele está usou a sua posição de influência e poder para fazer uma diferença positiva e inspirar outras empresas a seguirem o seu exemplo.
Sempre tive um enorme respeito pelo Senhor Rui Nabeiro, e no meu “entendimento” merece todo o elogio pelas suas preocupações sociais e por ser um modelo a seguir para outras empresas. Já agora, se me é permitido, se outras figuras que se destacaram no campo das artes, das letras, da cultura, do espetáculo (até o futebol), tiveram o seu lugar no panteão, este homem que foi um modelo na sua atividade profissional e que muito contribui para o desenvolvimento de uma região, um empresário inovador, humanista e solidário, creio que também merece essa homenagem. A sua abordagem ética e responsável é um exemplo fundamental para construir um futuro melhor para todos nós.
Tenho dito.
Domingos Caeiro
No artigo que assina na Visão (2/2/23) e que servirá de base ao presente texto, o jornalista Paulo Santos cita dados da Global Wealth Report segundo o qual há 1% de portugueses que controlam um quinto da riqueza do país. Em contrapartida, a metade mais pobre da população não detém mais de 6,5% dos bens nacionais. Esta concentração da riqueza em Portugal acompanha, de resto, a enorme desigualdade na distribuição dos recursos a nível mundial. Nos EUA, um dos países mais desigualitários do mundo, 1% de indivíduos possui mais de um terço da sua riqueza. Em números publicados o ano passado, oito das 10 maiores fortunas mundiais são detidas por norte-americanos, totalizando a soma astronómica de 807 mil milhões de euros (Visão 17/2/2022). Com base no ranking das maiores fortunas portuguesas da revista Exame, há pelo menos sete famílias que acumulam uma fortuna superior a mil milhões de euros.
Trata-se de um fenómeno sistémico que o reputado economista francês Thomas Piketty apelida de “capitalismo patrimonial” e que se traduz, a uma escala nunca antes vista, na apropriação continuada e exponencial de riqueza nas mãos de uns poucos em detrimento do bem-estar geral. É um novo patamar da exploração capitalista induzido pelo neoliberalismo globalizado. Nas elucidativas palavras de Jean-Louis Bourlanges, atual presidente da Comissão dos Negócios Estrangeiros da Assembleia Nacional Francesa, resumindo a política económica e social protagonizada por Emmanuel Macron quando acedeu à presidência de França, em 2017, “Objetivamente, os problemas deste país implicam soluções favoráveis aos altos rendimentos” (cit. in Serge Halimi, “Um homem contra um povo”, Le Monde Diplomatique ed. portuguesa, fevereiro de 2023). Não se podia ser mais claro!
Os dados da análise do Global Wealth Report pecam, aliás, por defeito, uma vez que se baseiam nos fluxos de capital e participações sociais em empresas, não abrangendo uma parte significativa da fortuna das famílias em causa, como propriedades, bens imobiliários ou objetos de arte. Tomando em conta o relatório divulgado há cerca de um ano pela OCDE, 5% da população portuguesa controlaria 42% da riqueza nacional. Tal é o resultado da proteção despudorada de sucessivos governos e das suas políticas económicas ultraliberais (nomeadamente em termos da legislação laboral), de uma fiscalidade extremamente permissiva – ou mesmo, omissa – sobre os rendimentos e bens, e das vantagens dos paraísos fiscais (quando não da pura e simples fuga ao fisco). É o caso das empresas portuguesas do PSI20 que têm sede na Holanda e que, antes da pandemia, distribuíram mais de dois mil milhões de euros em dividendos aos respetivos acionistas, em detrimento do pagamento devido de impostos em Portugal. Os Países Baixos constituem, aliás, um caso paradigmático: “A Holanda é responsável pela perda anual de entre dez e 15 mil milhões de euros por parte dos outros Estados membros da União Europeia, em impostos sobre as empresas”, pode ler-se no relatório Tax Justice Network.
Esta concentração de riqueza é de tal maneira escandalosa, que as denúncias vêm das vozes mais insuspeitas. Numa missiva enviada à Cimeira de Davos, Sandrine Dixson-Declève, vice-presidente do conservador Clube de Roma, não hesita em afirmar que “O aumento do custo de vida, a estagnação dos salários e a pobreza duradoura, numa conjuntura de recessão iminente, contribuem cada vez mais para que a desigualdade atinja níveis tão extremos que se podem tornar uma ameaça à democracia”, acrescentando, “Se valorizamos a democracia, o mundo deve passar por uma transformação económica. Durante anos permitiu-se o crescimento desenfreado, o que abriu um abismo entre os super-ricos e o resto da sociedade. É chegada a hora de resolver o problema.”
Ao impingirem-nos um estado permanente de falta de recursos e de crise, há sempre algo que é omitido. Por isso, quando se diz que não há dinheiro, custa muito a aceitar.
Hugo Fernandez
Em França, do caos socialista que foi o “consulado” de Hollande, emergiu um ex-ministro, Emmanuel Macron. Em 2016, Macron deixou o governo para lançar o seu próprio partido político, chamado “En Marche!”, que se apresentou como uma alternativa ao sistema político tradicional e que atraiu um amplo espectro de eleitores, incluindo tanto socialistas como conservadores. O seu posicionamento procurou (procura) transcender as divisões tradicionais entre esquerda e direita na política francesa. Na prática, a plataforma política de Macron envolve uma mistura de medidas, tanto de esquerda como de matriz liberal. A sua posição no espectro político não é consensual, no entanto, tem mantido uma popularidade relativamente estável, apesar de protestos e críticas de diferentes setores políticos. Tomando como exemplo de Macron no contexto político atual, será que
conceitos de "esquerda" e "direita" amplamente utilizados na linguagem política serão ainda úteis para se entender algumas das principais divisões ideológicas no mundo de hoje?
No século XXI, os conceitos políticos tradicionais de "esquerda" e "direita" estão a tornar-se cada vez mais obsoletos no nosso mundo global e digital. Embora estes rótulos tenham outrora constituído uma abreviatura útil para classificar as opiniões políticas, foram fundamentais para a compreensão da política ao longo do século XX, são cada vez mais inadequados para captar a complexidade do discurso político moderno.
Como sabemos, o espectro tradicional esquerda-direita nasceu da Revolução Francesa e da disposição dos lugares da Assembleia Nacional, com aqueles que apoiaram a monarquia sentados à direita e aqueles que apoiaram a revolução sentados à esquerda. Com o tempo, estes termos passaram a representar uma série de ideologias políticas, com a esquerda geralmente associada a ideias como social-democracia, progressivismo e coletivismo, e a direita associada ao conservadorismo, libertário, e individualismo.
No entanto, no nosso mundo moderno, estas categorias ideológicas já não são suficientes para captar a complexidade das visões políticas. Com a ascensão da globalização, da Internet e dos meios de comunicação social, as pessoas estão expostas a uma maior diversidade de ideias e perspetivas do que nunca. Os pontos de vista políticos já não estão ordenadamente divididos ao longo de um espectro esquerda-direita, e estão a surgir novos movimentos políticos que não se enquadram ordenadamente nestas categorias tradicionais.
Por exemplo, a crescente popularidade dos movimentos populistas em todo o mundo tem desafiado as noções tradicionais de esquerda e direita. Estes movimentos combinam frequentemente elementos tanto da esquerda como da direita, tais como o apoio a programas de bem-estar social e políticas económicas proteccionistas. Da mesma forma, o crescente enfoque em questões como as alterações climáticas e a inovação tecnológica levou à emergência de novos movimentos políticos que não se enquadram perfeitamente no espectro esquerda-direita. Na era digital, por exemplo, questões como a privacidade, a cibersegurança e a liberdade de expressão online tornaram-se cada vez mais importantes, e as distinções tradicionais de esquerda-direita não respondem adequadamente a estas preocupações. Além disso, o aumento do populismo e do nacionalismo nos últimos anos esbateu as linhas entre esquerda e direita, já que alguns grupos de ambos os lados do espectro político abraçaram estas ideologias.
Este mundo global e digital, está a tornar-se cada vez mais importante ir além dos rótulos simplistas esquerda-direita e abraçar uma compreensão mais matizada e complexa dos pontos de vista políticos. Precisamos de reconhecer que as crenças políticas das pessoas são moldadas por uma vasta gama de fatores, incluindo o seu passado cultural, experiências pessoais, e exposição a novas ideias e perspetivas.
Será que os conceitos tradicionais de "esquerda" e "direita" são leituras anacrónicas da realidade no nosso mundo global e digital do século XXI? Precisaremos de ir além destes rótulos e abraçar uma compreensão mais matizada e complexa dos pontos de vista políticos, a fim de compreender verdadeiramente a paisagem política do nosso tempo? Será que Neste mundo global e digital, precisaremos de ultrapassar as limitações da divisão esquerda-direita e adotar uma abordagem mais inclusiva da política. Será que Precisaremos de reconhecer que os desafios que enfrentamos requerem ação coletiva e cooperação, em vez de pureza ideológica. Será que em vez de se concentrar numa divisão binária de "esquerda" e "direita", as questões políticas e sociais do século XXI exigem soluções mais criativas e colaborativas que transcendam essas categorias tradicionais?
Domingos Caeiro
Em geral, qualidade é a adequação ao propósito, ou a qualidade está nos olhos
de quem vê. Neste caso da educação e aprendizagem aberta: trata-se de paixão, propriedade,
envolvimento, acesso, eficácia, impacto, disponibilidade, precisão e excelência.
As universidades foram criadas para enfrentar e lidar com o desconhecido. Apesar de o seu futuro não ser predeterminado, as ferramentas que tem para lidar com o futuro podem ser melhoradas. A pandemia recente de COVID-19, com toda certeza, trouxe novas questões à tona sobre como os ecossistemas de inovação serão no futuro, as relações entre os principais atores da inovação e os desafios que eles precisarão de enfrentar para serem rapidamente transformados em novas organizações operando de forma digital e tornando-se assim mais resilientes. Este período de crise mundial acelerou também uma discussão global a respeito de problemas e desafios chamados Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (iniciados pelas Nações Unidas décadas atrás e propostos em 2015 como Agenda 2030) que ganharam força. "Verde" e "Digital" tornaram-se "grandes ideias" e leitmotivs deste debate.
Acreditamos que as universidades devem tomar medidas estratégicas, criar programas e desenvolver modelos de cooperação amplos com a sociedade para enfrentar o crescente desafio das transições digital e da sustentabilidade. O modelo universitário social e digitalmente integrado pode ser uma ferramenta para estimular e fortalecer as suas funções dentro de um moderno sistema regional de inovação, permitindo um papel ativo na abordagem dos desafios globais, incluindo os ODS.
As universidades devem e/ou precisam: criar estruturas e mecanismos adequados de apoio ao desenvolvimento e implementação da inovação social/digital; alargar a inovação social (digital) a todas as missões; incorporar as prioridades societais e de sustentabilidade de forma sistémica e com isso desempenhar um papel ativo e protagonista em prol da cidadania; abraçar a trans e interdisciplinaridade na investigação e ensino; promover a colaboração intersetorial e multiator; incentivar a utilização da IA onde quer que ela possa trazer benefícios para a economia e a sociedade; fortalecer a mobilidade entre o tecido empresarial e a academia e reconhecer outros resultados e medidas além das publicações; promover a aprendizagem inteligente e criar novos sistemas de aprendizagem flexíveis, inclusivo, acessíveis e adaptativos para todas as gerações; promover novos currículos focados em competências "verdes", digitais, quantitativas e éticas necessárias para garantir a utilização efetiva e apropriada da IA(ferramentas como o ChatGPT não podem ser vistas como um perigo, mas como um avanço e podem ser de grande ajuda na promoção das aprendizagens); transformação digital e currículos de IA incorporados na abordagem da Investigação e Inovação Responsável visando antecipar o impacto negativo da IA; maior enfoque no bem-estar social e na qualidade de vida;
As universidades devem ser ativas na criação e na definição de visões de futuro e não apenas reagir-lhes. Devem rever seus papeis e a forma de atuar; impõe-se uma caracterização dos seus Perfis institucionais. Algumas questões fundamentais devem ser discutidas em relação aos novos modelos de ensino e educação online/híbridos, atendendo às expetativas das diferentes gerações. Além de outros fatores, as universidades devem investir em: programas de aprendizagem adaptativa; tecnologia de ensino e aprendizagem colaborativas, e recursos digitais para professores e estudantes; ensino on-line para alunos em qualquer lugar. Incentivamos a criação de programas académicos que ofereçam aos alunos a experiência de colocar em prática os seus talentos e conhecimentos, adquirindo novas aptidões por meio de projetos focados nas necessidades de uma organização específica ou comunidades locais, como, por exemplo, combinando objetivos de aprendizagem com serviço comunitário. Além de terem que saber sobre computação, meio ambiente e educação digital, os participantes desses novos programas também devem aprender como pensar critica, criativamente e se autorregular; habilidades sociais e emocionais, como empatia e cooperação; e também práticas e físicas, como utilizar novos equipamentos de comunicação e tecnologia.
As universidades devem incentivar pesquisas que produzam um grande impacto social e procurar inovações que ninguém possa reivindicar como propriedade intelectual para protegê-las. Isso permite o surgimento de inovações sociais que atendem aos valores e às necessidades tanto do público quanto do privado. A universidade pode atender às necessidades sociais de diversas maneiras, como envolvimento com a comunidade (abordagens de laboratórios "abertos", ciência cidadã, educação científica, incluindo partes interessadas na definição da sua agenda de investigação e educação). O contexto digital da inovação pode alterar a forma como a inovação e o conhecimento são distribuídos e criados nos sistemas socioeconómicos. As universidades devem procurar por novas formas de inovação, sejam elas técnicas ou sociais. Essa medida auxiliará na junção de diferentes métodos através de novas descobertas e tecnologias, possibilitando a inclusão de opiniões e vozes públicas (por exemplo, sistemas GIS no desenvolvimento urbano, mapeamento de multidões e “crowdsourcing”) com resultados sociais e novas soluções. As novas tecnologias de informação e inteligência artificial podem favorecer abordagens mais democráticas na gestão, transferência e distribuição do conhecimento entre a sociedade.
Inquestionavelmente, os valores e necessidades da sociedade são expressos e codificados nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Eles devem ser refletidos em novos currículos e agendas de investigação. Este conjunto de metas, que está desperto globalmente, requer ações e soluções urgentes desenvolvidas por diferentes tipos de partes interessadas, em formas que sejam desenvolvidas, criadas, entregues e experimentadas de forma colaborativa. Nesse novo cenário de Sociedade e Indústria 5.0 (com máquinas e pessoas trabalhando juntas), a sociedade está no centro do sistema de inovação. Educação, Investigação e Inovação são ministradas e desenvolvidas por universidades e empresas que refletem as suas fortes relações no sistema regional de inovação e enfatizam o processo de aprendizagem ao longo da vida que deve ser continuada no local de trabalho e contribuindo para a necessidade de novos caminhos de aprendizagem flexível que devem ser oferecidos pelas universidades. Esses novos processos estão a ocorrer também num contexto digital e podem ajudar a desenvolver novas formas e canais de distribuição de Educação, Investigação e Inovação. Inovação focada na pessoa: inovação voltada para o utilizador, inovação aberta, inovação social (digital), dar poder à sociedade e, simultaneamente, envolvê-la no processo da sua divulgação.
A democracia é um requisito indispensável para que possam existir universidades completamente autónomas, gratuitas e abertas no futuro. Precisam de autonomia, internamente, para continuar com a sua investigação e ensino e, externamente, para se relacionar com a sociedade. Isso requer que as universidades ouçam as suas comunidades, reconheçam a essência e o impacto político e social da sua atuação e assumam a responsabilidade de atuar contra o retrocesso democrático. A estrutura de inovação quádrupla e quíntupla de hélice (desenvolvida por Elias G. Carayannis e David FJ Campbell), que descreve as interações entre universidade, indústria, governo, público e ambiente numa economia do conhecimento, sustenta que uma democracia do conhecimento evoluída é indispensável para fomentar o conhecimento e a inovação. É esperado que organizações educacionais e instituições de ensino superior, nomeadamente as universidades, exerçam um papel crucial. A democracia, a conservação do meio ambiente e a economia do conhecimento, impulsionada pela inovação, devem progredir em conjunto.
Dado que o mundo estava em rápida mudança, a pandemia do (COVID-19) apenas acelerou (entre outras coisas) as transições para o meio ambiente e o digital. Precisamos aproveitar esse momento de mudança para não retornarmos a modelos ultrapassados. Instituições, organizações, empresas, universidades e toda a sociedade devem transformar-se radicalmente e abraçar a incerteza e a transformação "em curso". Vivências e processos são o que procuramos em vez de soluções definitivas. Precisamos ter uma grande capacidade para constantemente atualizar as nossas competências e aceitar que existem poucas certezas. O modelo de universidade social e digitalmente engajada que abraça novos papéis universitários no ecossistema de inovação é o que propomos. Nesse modelo, as universidades são concebidas como locais de "prototipagem" para o Desenvolvimento Tecnológico e a criação de capital de poder, ou seja, a "sociedade superinteligente", onde pessoas, ciência, tecnologia e inovação, coexistam e trabalhem para elevar o bem-estar social. Não nos focamos só na inteligência artificial e em outras inovações tecnológicas, mas sim nas políticas e visões em que estão relacionadas aos novos papéis das universidades na sociedade.
Além disso, as universidades estão sob pressão contínua de outras tendências sociais, como: globalização (significando uma competição em termos de visibilidade e financiamentos), desafios demográficos (urbanização, envelhecimento da sociedade e diminuição da natalidade) e uma mudança para uma sociedade mais tecnológica. Dessa forma, as universidades ficam no limiar entre atender às necessidades e expetativas dos alunos: operar num contexto global (digital) e associar políticas e estratégias nacionais (implicitamente, o currículo) com os alunos. Dessa forma, para lidar com questões tão complexas, é necessário ter um bom equilíbrio entre o ensino (a tecnologia e a inovação digital devem tornar-se a norma), a investigação (deve ser relevante para as comunidades, logo, sustentável) e a prática (os alunos devem ser equipados com competências para o mercado de trabalho). Sem dúvida, estes são tempos exigentes para o ensino superior e especialmente para os professores, pois nunca antes tantos quiseram tanto dos professores: novas habilidades, novos empregos, nova capacidade de lidar com mudanças rápidas, novas perspetivas para uma vida plena — desde o nascimento até à morte. A crescente necessidade de educação permanente resultou em novas eficiências: módulos de cursos compartilhados em "clusters" universitários, ensino online e baseado em inteligência artificial, especialização em instituições públicas e privadas. Dada a complexidade dos temas mencionados acima, não podemos tratá-los de forma superficial. Precisamos abordá-los adequadamente, através de uma verdadeira educação ao longo da vida, um ensino inovador e uma maior concordância entre as políticas, o mercado de trabalho e o currículo.
A conclusão é que esses novos papéis estão na acessibilidade da educação online, que permitirá que um público global acesse ao "auditório digital". Ensino aberto, online e a distância no ensino superior requer inovação, repensamento, mudanças sistémicas, novas estratégias em todos os níveis dentro de uma organização. No campo operacional, as tecnologias e práticas digitais dão suporte à alteração e à mudança de diversos aspetos das universidades. Ademais, os novos atores fornecem os seus próprios conhecimentos e metodologias, ameaçando o modelo tradicional da universidade. Essas grandes mudanças requerem sistemas de governança modernos e liderança dinâmica. Dessa forma, o campo educacional deve focar-se em novas ideias para liderança executiva, alteração de perspetivas, abordagens originais para liderança partilhada, administração de práticas, aperfeiçoamento constante da qualidade, bem como em novos progressos em nível local, nacional e modelos de cooperação internacional. O propósito da Ensino Superior está a transformar-se porque o mundo também está a evoluir com mais rapidez. Como consequência, temos que lidar com problemas mais complexos. Gostaríamos de enfatizar que o principal objetivo de uma universidade ainda é transmitir e facilitar o conhecimento e a educação. Isso explica o consenso entre pessoas, grupos, companhias e administrações públicas de que a educação é fundamental para o progresso pessoal e económico, além de ser uma peça-chave para a coesão social e política.
Domingos Caeiro
Ao governo de Portugal,
Ao Ministro da Educação
Prezados/as Senhores/as,
Como cidadão preocupado com o futuro do nosso país, venho através desta carta aberta expressar o meu desconforto em relação à forma como o governo vem desconsiderando a educação e os profissionais que nela atuam. Escrevo também esta carta aberta para transmitir a minha profunda preocupação sobre um governo que devia ter outras responsabilidades com a educação e com os professores. Como sociedade, todos sabemos que a educação é o fundamento do nosso futuro, e é desanimador ver que não lhe tem sido dada a atenção que merece e é-lhe devida.
A educação é o alicerce da sociedade e a base para o desenvolvimento económico, social e pessoal de um país. No entanto, a falta de investimento e apoio por parte do governo tem deixado as nossas escolas em condições precárias, com salas superlotadas, falta de recursos e infraestruturas inadequadas. Subestima-se a função dos professores, os quais enfrentam dificuldades nas suas condições de trabalho, sem merecerem o reconhecimento e os salários adequados pelo relevante serviço que prestam na educação das nossas crianças e jovens.
A falta de consideração com a educação e os professores não os atinge somente a eles, mas sim toda a sociedade. Quando não se investe com critério e planeamento na educação, estamos a comprometer o futuro do nosso país e das próximas gerações. A falta de apoio e valorização dos professores também tem um impacto negativo sobre a motivação e o desempenho deles, prejudicando a qualidade do ensino. Além disso, os profissionais da educação são constantemente desvalorizados e desrespeitados, sendo vistos como simples funcionários públicos em vez de verdadeiros profissionais. Este descaso com a educação tem reflexos graves na formação dos estudantes e na qualidade da educação no país.
Gostaria de destacar a importância de se investir na formação e valorização dos professores, pois eles são os principais responsáveis por formar os cidadãos e líderes do futuro. Sem uma educação de qualidade, será impossível alcançar um futuro melhor para o nosso país.
A luta por uma educação inclusiva e de qualidade para todos, sem distinção de raça, género ou classe social, merece o meu apoio. É importantíssimo que todos tenham acesso a oportunidades de aprendizagem e que os professores disponham das ferramentas e recursos necessários para oferecer uma educação de qualidade.
É importante destacar que a educação não se limita a salas de aula e livros escolares. Ela também inclui a aquisição de competências sociais, emocionais e de pensamento crítico, que são essenciais para a vida e para o exercício da cidadania.
Vamos, juntos, continuar a promover a importância da educação e a valorizar os professores pelo trabalho incansável e significativo que realizam.
Requiro, assim, que o governo tome em consideração o quanto é importante a educação e os professores, investindo de forma efetiva nesta área, dando valor e apoiando os educadores, para que possam exercer as suas funções de maneira merecedora e eficiente.
Agradeço a vossa atenção e ressalto que esta carta tem como objetivo chamar a atenção para a importância da educação e dos professores, de forma que possamos lutar juntos por uma educação de qualidade para todos.
Atenciosamente,
Domingos Caeiro
Já quase tudo foi dito sobre o caso de Alexandra Reis e como foi possível uma gestora ter sido agraciada por uma empresa pública (a TAP) com meio milhão de euros de indemnização (inicialmente seria o triplo) por um suposto despedimento que nunca se chegou a comprovar para, logo a seguir, ingressar nos quadros de outra empresa pública (a NAV) e finalmente ter sido chamada ao Governo – pasme-se – como secretária de Estado do Tesouro. E o pior é que, com toda a probabilidade, foi tudo feito no mais escrupuloso cumprimento da lei. Ora, como justamente sublinha Carmo Afonso na sua habitual crónica no Público (28/12/2022), “O sentimento de injustiça que ele suscita não tem acolhimento na lei, mas paira sobre demasiados princípios. […] Tem de se tornar clara a linha que separa um comportamento incorreto de um comportamento racional que procura otimizar as oportunidades que surgem.” Para além da enorme disparidade de rendimentos entre a gestora (uma vez que a suposta indemnização terá sido calculada com base na sua remuneração e no tempo que faltava para o termo do seu mandato) e os funcionários da TAP (com cortes salariais draconianos e cujo cálculo de indemnizações por despedimento – e foram aos milhares na reestruturação da empresa de que ela também foi responsável – nem de perto nem de longe se lhe pode comparar), há um problema de fundo que foi largamente ignorado; o dos “hipersalários” dos quadros empresariais dirigentes, em todo o mundo.
Neste ponto, importa atentar nas conclusões do economista francês Thomas Piketty que nos fala mesmo de níveis de remuneração “inéditos na história” (cf. Thomas Piketty, Le Capital au XXI siècle, Paris, Seuil, 2013, p. 477). A explosão das remunerações destes “super-quadros” dirigentes das grandes empresas sustenta a fórmula avançada por este autor – r>g – que significa que o rendimento de capital é maior que a taxa de crescimento do rendimento nacional, sendo que r é o rendimento do capital – medindo os proventos anuais de um capital, qualquer que seja a forma jurídica que tomam esses rendimentos (lucros, juros, rendas, dividendos, royalties, mais-valias, etc) – e g a taxa de crescimento da economia, equivalente ao crescimento do rendimento nacional. Quanto mais a taxa de rentabilidade do capital exceder a taxa de crescimento da economia (r>g), mais a riqueza se acumula no topo e mais desigual é a sua repartição. Quando a taxa de crescimento da produção mundial se situa entre 1,5-2% em média e a taxa de rendimento puro do capital (antes dos impostos), 4,5-5% em média, com tendência para aumentar esta discrepância (ibid., p. 561), isso dá-nos bem a medida não só da extrema desigualdade na distribuição de riqueza da atual fase de exploração capitalista (por ele designada “capitalismo patrimonial”), como para a grave distorção que induz no funcionamento das nossas sociedades.
Piketty dá-nos o exemplo paradigmático dos EUA que, seguindo a tendência da enorme acumulação da riqueza no 1% do topo dos rendimentos nos últimos 30 anos, essa acumulação é ainda mais espetacular no decil superior desse 1%, onde os 400 americanos mais ricos, com ativos combinados superiores a 2 biliões de dólares, possuíam no início da segunda década do século XXI, uma riqueza equivalente à dos 41 milhões de afro-americanos desse país, constituindo o que o autor francês designa por “classe de casta”, tal a disparidade de rendimentos, a concentração extrema da riqueza e o exclusivismo social que engendra. Em 2010, a percentagem na riqueza nacional dos 10% de americanos mais abastados ultrapassava os 70%, e a parte do 1% do topo rondava os 35%. Em contrapartida, os 50% mais pobres passaram dos 20% do rendimento nacional em 1980 para pouco mais de 12% em 2018 (cf. Thomas Piketty, Capital et Idéologie, Paris, Seuil, 2019, p. 52).
Como se atingem tais disparidades de rendimento? Enquanto as teorias económicas tradicionais consideram que os salários, independentemente do seu nível, são determinados pela produtividade do trabalhador (teoria da produtividade marginal), Piketty afirma que isso não faz qualquer sentido, pois o que conta é o poder negocial no mercado laboral (e a consequente influência social e política na comunidade) e não a produtividade. Os gestores de topo estão em condições de estabelecer os seus próprios salários, ao passo que a generalidade dos trabalhadores não têm essa possibilidade. Piketty dá-nos o exemplo de uma grande empresa multinacional que emprega 100 mil trabalhadores em todo o mundo e tem um volume de negócios anual de cerca de 10 biliões de euros, dispondo cerca de metade deste valor para a remuneração dos seus funcionários, isto é, uma média de 50 000 euros anuais por assalariado. Como refere o economista francês, “Pour fixer le salaire du directeur financier de la société (ou de ses adjoints, ou du directeur du marketing et de son equipe, etc.), il faudrait en principe estimer sa productivité marginale, c’est-à-dire sa contribution aux 5 milliards d’euros de valeur ajoutée: est-elle de 100 000 euros, 500 000 euros ou 5 millions d’euros par an? Il est évidemment impossible de répondre précisément et objectivement à cette question. […] On voit bien que l’estimation obtenue serait inévitablement extrêmement approximative, avec une marge d’erreur beaucoup plus importante que la rémunération maximale envisageable pour ce poste, y compris dans un environnement économique totalement stable.” (Piketty, Le Capital, p. 526), acrescentando mais adiante, “En tout état de cause, compte tenu de l’impossibilité d’estimer précisément la contribution de chacun à la production de l’entreprise considérée, il est inévitable que les décisions issues de tels processus soient en grande partie arbitraires, et dépendent des rapports de force et des pouvoirs de négociation des uns et des autres.” (ibid., p. 527). É certo que o critério das qualificações e competências específicas impõe certos limites à fixação de salários. Mas, como sublinha Piketty, “notamment au sein des hiérarchies managériales des grandes sociétés, les marges d’erreur sur les productivités individuelles deviennent considérables.”, para concluir, “Le pouvoir explicatif de la technologie et des qualifications devient alors de plus en plus faible, et celui des normes sociales de plus en plus fort.” (ibid., p. 530); grassa o compadrio e o amiguismo. Pode-se então encarar com normalidade que o percentil superior das remunerações atinja 30% ou mais da massa salarial numa empresa? Trata-se, obviamente, de um absurdo!
A fixação destes “hipersalários” pouco tem a ver com qualquer lógica racional de produtividade, sendo difícil descortinarmos as variações e volumes observados na remuneração dos quadros dirigentes e a performance das respetivas instituições. São sobejamente conhecidos os casos de prémios avultados a gestores que levaram as suas empresas à falência ou de indemnizações chorudas na sequência de decisões estratégicas desastrosas, para já não falar do aproveitamento de prolongadas situações de monopólio ou de generosas concessões públicas de financiamento a empresas “grandes demais para falir”; o que se passou com a crise financeira de 2008 é um exemplo paradigmático de tais situações. Os supergestores ou superexecutivos corporativos atribuem-se a si próprios chorudos salários e compensações. Por isso, qualquer ideia de esforço ou mérito, alicerçados na teoria económica da produtividade marginal – que faz corresponder as remunerações à produtividade de cada um – é, neste contexto, um mito. Pelo contrário, e a partir de determinado nível, é o poder político e social das classes possidentes que determina a concentração da riqueza e os números astronómicos dos rendimentos destes dirigentes. A contribuição que dão para a valorização das empresas é, em grande medida, uma falácia. A sua principal preocupação é aumentar os seus proventos, despedindo trabalhadores e encarecendo os produtos e serviços que colocam no mercado, em implacáveis processos de reestruturação e em despudoradas derivas especulativas. Da mesma forma, os salários baixos pagos aos trabalhadores têm a ver com uma avaliação social negativa e o pouco peso político que têm na sociedade, e não com qualquer apreciação racional sobre a penosidade, a complexidade do trabalho ou as competências requeridas. É o poder negocial e a apreciação social das partes envolvidas que verdadeiramente determina as decisões remuneratórias. Até porque os comités de remunerações são constituídos por quadros dirigentes, eles próprios com elevados níveis salariais, limitando-se as assembleias de acionistas a sufragar as suas decisões. Como conclui António Guerreiro, “A grande mentira implícita nos hipersalários da burguesia remunerada em excesso é a de que refletem um valor de mercado e a eles acede por mérito quem detém competências e conhecimentos raros que geram valores enormes.” (Público, 30/12/2022).
Como vimos, nada mais falacioso. A sua origem radica, verdadeiramente, numa arbitragem endógena de interesses e benefícios que têm mais a ver com a afirmação do poder das empresas em causa perante as suas concorrentes – uma espécie de potlatch empresarial – em que o que se perde em investimento produtivo, se pensa vir a ganhar em reconhecimento, prestígio e afirmação. As despesas de representação e o exclusivismo social sobrepõem-se às lógicas mercantis e à eficiência empresarial. Esta concentração de rendimentos no topo da estrutura de remunerações não corresponde a qualquer meritocracia de desempenho, mas a um verdadeiro estatuto de privilégio. O empreendedorismo transforma-se, assim, em escandalosa sinecura. Mais do que desigualdades funcionais, como é o caso das disparidades de remuneração em função de competências ou responsabilidades acrescidas no seio da organização – ou seja, pelo efeito de exigências funcionais que indexem as retribuições à respetiva contribuição para os resultados da empresa – o que temos é uma competição pela notoriedade. A um princípio racional de justificação e legitimidade, passamos rapidamente ao exclusivismo do arbítrio e do desperdício sumptuário. Estaremos, em pleno século XXI, a reconstituir a sociedade estamental do Antigo Regime?
Até o insuspeito – porque assumidamente liberal – analista político Pedro Marques Lopes, numa crónica na Visão (19/1/2023) intitulada “Os salários dos gestores e o capitalismo”, cita o blogue de esquerda Ladrões de Bicicletas, onde se lê que, em Portugal, “Entre 2010 e 2017, os gestores de topo viram o seu rendimento aumentar 49,7%, ao mesmo tempo que o rendimento médio dos trabalhadores diminuiu 6,2%. O rácio médio entre o salário dos gestores e o dos trabalhadores passou de 24:1 para 33:1. […] Em 2021, os presidentes-executivos das principais empresas cotadas na bolsa portuguesa continuavam a receber, em média, 32 vezes mais do que os trabalhadores.” Aduzindo também o exemplo “particularmente chocante” do CEO da Jerónimo Martins, cujo salário é 262 vezes superior à média dos trabalhadores da empresa, Pedro Marques Lopes chega à seguinte conclusão: “Não há forma de o maior defensor do capitalismo conseguir provar a um trabalhador de uma empresa, em que a disparidade salarial é tão gritante, que há qualquer lógica nisto e que essa diferença é boa para a comunidade. E não há forma porque é exatamente o seu contrário.” Nem mais!
Hugo Fernandez
Lemos e não acreditamos: “Mutilação genital feminina atinge números recorde após a pandemia”, titula o Diário de Notícias de dia 25 de novembro de 2022. Os 138 casos descobertos em 2021 nos centros de saúde e hospitais portugueses representam um aumento de 39 % em relação aos 99 de 2020, ano em que o país fechou devido à pandemia, ultrapassando os 126 verificados no ano anterior, que era até agora o valor mais alto, e duplicando os números de 2018 (63). Desde 2014, foram registados um total de 668 casos de excisão em Portugal, segundo a Plataforma de Dados da Saúde. Estas situações foram detetadas sobretudo em mulheres oriundas da Guiné-Bissau (63%), da Guiné-Conacri (27%) e Senegal (4%), durante o acompanhamento, no nosso país, da respetiva gravidez ou do parto. Ainda que a quase totalidade destas mutilações se tenha verificado em deslocações aos países de origem, há pelo menos um caso, em 2021, que ocorreu em território português. Apesar de tudo, uma gota de água nos cerca de 200 milhões de casos denunciados pela UNICEF a nível mundial, em países como a Nigéria, Eritreia, Etiópia, Costa do Marfim, Somália, Serra Leoa, Sudão do Norte, Gana e Gâmbia, para além dos já referidos. Na segunda década do século XXI, como é possível a subsistência destas práticas bárbaras?
A mutilação genital feminina constitui um grave atentado aos direitos humanos, sendo considerada crime ao abrigo de legislação específica em Portugal desde 2015 (lei n.º 83/2015). É também o caso do crime de casamento forçado de menores de idade, infelizmente uma prática bem mais comum em determinadas comunidades portuguesas. Relativamente a este crime verificam-se mesmo duas circunstâncias agravantes: por um lado, a complacência inexplicável das autoridades perante uma transgressão tão grosseira da lei; por outro, a tentativa da sua justificação pela invocação de uma qualquer marca cultural ou tradição identitária. Tão criminosa é uma como a outra atitude. Para além das questões morais e éticas que se levantam, aquilo a que aqui se assiste é a uma violação flagrante dos princípios básicos da justiça e da legalidade. O caráter universal dos preceitos da cidadania é liminarmente posto em causa.
Estamos a falar do cerceamento do desenvolvimento pessoal e social de raparigas de 13, 14, 15 anos, obrigadas a uma vida conjugal extemporânea e às perturbações sanitárias (tanto ao nível psicológico, como físico) e encargos implicados nas situações de gravidez infantil. Estamos a falar do abandono precoce da escolaridade – que, recorde-se, é obrigatória até aos 18 anos de idade – com tudo o que isso implica de menorização individual (coartando a aquisição de conhecimentos e o desenvolvimento de capacidades e atitudes) e constrangimento social. Esta manifesta discriminação feminina, impedindo as mulheres do pleno usufruto dos direitos, liberdades e garantias da cidadania, constitui uma das chagas mais escandalosas com que, enquanto sociedade, nos confrontamos.
Não se trata de legiscentrismo ou nomofilia. É que, nas democracias, o império do direito resulta do princípio universal dos direitos (carácter geral e abstrato da lei) e não de um mero alvedrio jurídico (carácter casuístico do preceito legislativo). E essa foi uma conquista civilizacional decisiva da humanidade, precisamente contra o reino do arbítrio e do privilégio (a lex privata) e em defesa da igualdade, imparcialidade e justeza da norma legal. Não se trata de negar as diferenças e especificidades comunitárias, mas de lhes impor o limite dos mais elementares direitos humanos – e, desde logo, a liberdade individual e a dignidade da pessoa – bem como do respeito pelas garantias legais fundamentais. É o requisito da generalidade da lei que garante a igualdade de tratamento (e de consideração social): por ser comum, a lei obriga a todos, “quer quando protege, quer quando pune”, como consta, por exemplo, do artigo 6º da seminal Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen de 26 de agosto de 1789. De resto, o princípio da universalidade da lei e da igualdade de todos os cidadãos perante as suas determinações está amplamente plasmado nos artigos 12º e 13º da Constituição da República Portuguesa.
O problema é que este desfasamento entre os princípios proclamados e a realidade social tem consequências na credibilidade do sistema democrático e consequente adesão das populações às regras vigentes. Mutatis mutandi, e fazendo nossas as palavras do escritor israelita David Grossman, “O fosso entre as pessoas e o que se passa está a aumentar. O problema é que esse abismo nunca permanece vazio, há sempre alguém interessado em atulhá-lo: os fundamentalistas, os nacionalistas, os racistas.” (Público, 24/11/2022).
Hugo Fernandez
No passado dia 22 de outubro, os fascistas chegaram ao poder em Itália. Pela mão de Giorgia Meloni, quase um século depois de Benito Mussolini, é a extrema-direita que governa um dos países fundadores da unidade europeia (na sua versão CEE), em documento assinado, precisamente, em Roma, corria o ano de 1957. E, para que não haja dúvidas sobre a natureza político-ideológica do seu partido, o facho permanece como o símbolo dos Irmãos de Itália, recordando orgulhosamente a herança do Il Duce. Esta tendência extremista marcou, na Europa, a viragem do século, na forma de coligações governamentais: logo em 2000 com Jörg Haider na Áustria, em 2010 com Geert Wilders nos Países Baixos, em 2013 e 2017 com o Partido do Progresso na Noruega, em 2018-19 com Matteo Salvini enquanto vice-primeiro-ministro de Itália, para além de resultados eleitorais espetaculares na Dinamarca, na Finlândia, na Suécia e em França (com os Democratas Suecos e a União Nacional de Marine Le Pen como os segundos maiores partidos dos respetivos países). O Vox espanhol e o Chega português, na qualidade de terceiros maiores partidos nos parlamentos espanhol e português, bem como a consolidação parlamentar dos neonazis da Alternativa para a Alemanha, compõem este ramalhete sinistro. Para não falar dos regimes iliberais – designação tão dúbia quanto a sua democracia – na Polónia de Mateusz Morawiecki e na Hungria de Viktor Orbán.
As estratégias de isolamento (o proclamado “cordão sanitário”) destas forças políticas esbarram com a realidade de uma globalização desregulada, de uma desigualdade social descontrolada, de um desprezo intolerável – e intolerante – em relação a crescentes camadas da população e de uma desvalorização sobranceira dos problemas existentes por parte das “elites do poder”. Sobrevém o racismo, a xenofobia, a homofobia, a autarcia nacionalista, a intolerância e o fanatismo religioso. E como justamente sublinha Mafalda Anjos, diretora da Visão, numa situação de grave crise económica como aquela que a Europa está a atravessar, “a tendência é para os eleitores descontentes irem buscar respostas alternativas quando «os do costume» não oferecem soluções. […] Mais do que combater os movimentos políticos, é preciso combater as suas causas. Caso contrário, tentar detê-los é como tentar parar o vento com as mãos.” (Visão, 22/9/2022).
Há um aforismo que diz que “os inimigos dos meus inimigos, meus amigos são”. Nesta dialética schmittiana dos amigos/inimigos, encontra-se, em boa parte, a razão para o sucesso fulgurante da extrema-direita europeia. Claro que esta gente não quer o bem comum, nem pugna pela justiça social. Claro que esta gente quer restringir ou, mesmo, eliminar, os direitos e liberdades fundamentais, e regressar a uma “Idade de Ouro” do ordenamento autoritário do “respeitinho é muito bonito”, da castração mental, dos temas tabu, da sacralização dos poderes instituídos (civis e religiosos), das proibições, da repressão. Como se explica, então, tamanha adesão a semelhantes forças políticas? Precisamente pela sua oposição aos poderes fácticos das democracias que, seguindo a cartilha neoliberal, desregularam a vida social, subjugando tudo e todos aos interesses da especulação financeira, e lançaram na miséria e no desespero largas camadas da população. É contra esta “elite do poder” que se insurgem aqueles que, mais por ressentimento do que por convicção, apoiam os partidos extremistas. Mas a alternativa que estes partidos apresentam não passa de uma gigantesca falácia e, por isso, são sumamente demagógicos e oportunistas ao cavalgar todas as frustrações e instrumentalizar todas as raivas, escamoteando as suas verdadeiras origens e intenções. Tratam-se, afinal, de meros concorrentes dos atuais detentores do poder e dos mecanismos de exploração capitalista, à espera da sua vez para dominarem, com brutalidade acrescida, o sistema que agora fingem criticar.
“Sou Giorgia, sou mulher, sou mãe, sou italiana, sou cristã”, constitui uma espécie de mantra ideológico da nova primeira-ministra italiana. Mas é muito mais do que isso. Num discurso pronunciado em junho, numa iniciativa do Vox, foi taxativa: “Não há meio-termo possível. Hoje, a esquerda secular e o Islão radical ameaçam as nossas raízes. Ou é sim, ou não. Sim à família natural, não aos lóbis LGBT. Sim à universalidade da cruz, não à violência islâmica. Sim a fronteiras seguras, não à imigração em massa” (Visão, 22/9/2022). “Deus, Pátria e Família” era o lema de Mussolini, agora recuperado por Meloni (e que os portugueses tão bem conhecem da ditadura salazarista). “Meto-vos medo?” perguntou Meloni num comício durante a campanha eleitoral. Fica-nos, à laia de resposta, a sábia advertência do escritor e filósofo italiano Umberto Eco: “É sempre melhor que quem nos incute medo tenha mais medo do que nós”.
Há, sobretudo, algo de muito errado quando a esquerda não consegue capitalizar este descontentamento.
Hugo Fernandez
Adotando a definição do conceito de Propriedade avançada pelo historiador italiano Giuliano Martignetti, chama-se Propriedade “à relação que se estabelece entre o sujeito «A» e o objeto «X», quando A dispõe livremente de X e esta faculdade de A em relação a X é socialmente reconhecida como uma prerrogativa exclusiva, cujo limite teórico é «sem vínculos» e onde «dispor de X» significa ter o direito de decidir com respeito a X, quer se possua ou não em estrito sentido material.” [Giuliano Martignetti, “Propriedade” (pp. 1021-1035), in Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino (coord.), Dicionário de Política, vol. II, Brasília, UNB/Dinalivro, 2004, p. 1021]. Sem se especificar quem ou que coisa sejam A ou X (entendidos enquanto unidades ou grupos), e tomando como referência a formulação jurídica de “dispor de alguma coisa de modo pleno, sem limites” (o ius utendi, fruendi et abutendi do direito romano), esta definição revela o aspeto essencial da posse; como o adjetivo latino proprius indica – e do qual derivou o respetivo substantivo – a propriedade estabelece uma relação de exclusividade entre quem possui objetos específicos e todos os outros indivíduos (e objetos), daí decorrendo que propriedade é algo que pertence a alguém de modo exclusivo. É esta relação de exclusividade face aos demais que aqui nos importa realçar.
Tomando o sistema social no seu todo, constituído por outros sujeitos e objetos para além de A e X que apresentamos como referência, a relação de posse implica sempre uma limitação, quer de sujeitos possuidores, quer de objetos possuídos, e o estabelecimento de processos mais ou menos alargados de exclusão. Radica nesta relação de posse a problemática da desigualdade e da justiça social. E ainda que nas nossas sociedades demoliberais, o “direito de propriedade” seja entendido como universal, é fácil constatar que se A é proprietário de X, ficam automaticamente excluídos dessa possibilidade os indivíduos ou grupos B, C, D, etc. A limitação dos recursos disponíveis agrava ainda mais as possibilidades aquisitivas, transformando o desígnio proprietarista em mera capacitação formal.
Numa altura em que as desigualdades sociais atingiram níveis nunca antes vistos na história da humanidade, e em que o rendimento de alguns ultrapassa a riqueza de nações inteiras, a posse dos meios de produção é o exemplo mais acabado da relação que necessariamente se estabelece entre os que têm e os que não têm. O filósofo alemão Anselm Jappe cita o antropólogo norte-americano Marshall Sahlins, quando este explica como a escassez é típica da sociedade moderna: “O mercado institui a escassez de uma maneira sem precedentes, num grau nunca antes atingido, […] a insuficiência de meios materiais torna-se o ponto de partida explícito, numerável, de toda a atividade económica.” (Anselm Jappe, As aventuras da mercadoria. Para uma nova crítica do valor, Lisboa, Antígona, 2006, p. 227). Ora, para Jappe, “é a privatização dos recursos que cria a escassez: o acesso privilegiado de alguns aos recursos significa necessariamente que os outros não podem aceder a eles.” (op. cit., p. 239).
Há mais de 150 anos que Karl Marx escalpelizou o sistema que engendrou esta situação. Como revelou o pensador alemão, o capitalismo caracteriza-se pela busca exclusiva do lucro, entendido no seu sentido lato de vantagem, de ganho, que advém da apropriação da mais-valia, isto é, da parte do valor não pago do trabalho incorporado no produto. A quantidade de mais-valia realizada é o resultado da diferença entre o valor que o trabalhador produz e o custo da sua força de trabalho. Para que esta exploração se concretize há que assegurar a separação dos produtores dos respetivos meios de produção, fazendo com que àqueles apenas reste vender a sua força de trabalho (para assegurar a sobrevivência) aos detentores destes últimos. A extração do sobrevalor do trabalho assalariado no próprio processo de produção capitalista tem como resultado a condição existencial que Karl Marx qualificou, com amarga ironia, de dupla liberdade do trabalhador: a liberdade de vender a sua força de trabalho ou a liberdade de morrer de fome. Passados quase dois séculos, e por mais que as formas de propriedade, as dinâmicas produtivas e a própria estrutura social tenham sofrido alterações consideráveis, a matriz da exploração capitalista mantem-se. Com efeito, o funcionamento estrutural do capitalismo tem na exploração do trabalho e na busca incessante do lucro o seu modus operandi.
Na lógica capitalista neoliberal, exacerba-se o efeito do “exército de reserva”, isto é, do agudizar do desemprego como garantia do esmagamento dos salários e da precarização das condições laborais; alastra o trabalho sem direitos. Impõe-se a ideia, sumamente perversa, das populações “dispensáveis”. Como sublinha, a este propósito, o economista Manuel Couret Branco, “a economia não tem por objetivo a criação, ou sequer a manutenção, de empregos, mas sim a mais eficaz afetação possível dos fatores de produção, por outras palavras criar um máximo de riqueza desejavelmente com um mínimo de recursos.” (Manuel Couret Branco, Economia política dos direitos humanos, Lisboa, Sílabo, 2012, p. 51). O trabalho é um custo e nem o que o desemprego significa em termos de sofrimento humano e desagregação do tecido social, leva os capitalistas a hesitarem na sua eliminação. A ideia é: quanto menos afetação de recursos humanos, mais lucros. A única preocupação que os proprietários dos meios de produção têm é a de produzir riqueza… para si próprios. A eficácia do sistema traduz-se na maximização dos lucros e na diminuição dos custos dos fatores de produção, custe o que custar; e não são eles que pagam!
É por isso que afirmações como a de Vítor Bento, presidente da Associação Portuguesa de Bancos, a propósito dos lucros excessivos na banca, para quem “o uso e abuso da expressão «lucros excessivos» na nossa comunicação […] reflete uma hostilidade cultural ao capital e à sua acumulação” (Expresso, 2/8/2022), não podem deixar de nos fazer sorrir. Pela ingenuidade? Não, pela desfaçatez. Quando os resultados do primeiro semestre de 2022 demonstram que os 5 maiores bancos portugueses – CGD, BCP, BPI, Santander e Novo Banco – obtiveram lucros de 1,3 mil milhões de euros, 80% acima dos valores reportados em período homólogo, e que num contexto de forte crise económica e social, por via de uma inflação galopante que, em julho, atingiu os 9,1%, as comissões bancárias aumentaram cerca de 12% face ao ano transato (só a CGD, o maior banco nacional, obteve, por esta via, rendas de 300 milhões de euros), apenas a generosa remuneração dos acionistas está plenamente assegurada, falhando quer o crédito adequado a empresas e famílias, quer a qualidade do serviço público prestado aos cidadãos. Como refere a economista Eugénia Pires, “Já o saudoso Francisco Pereira de Moura alertava para o sistema de cadinhos que é a economia. Para quaisquer lucros excessivos existe sempre um contraparte empobrecido.” (Eugénia Pires, “Lucros nada inesperados”, Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, setembro de 2022).
Quando, a esta acumulação de capital, acresce a recusa, por parte do governo de António Costa, da tributação dos lucros excessivos, aquilo a que assistimos é a uma gigantesca transferência de rendimentos do trabalho para o capital. Quem perde? A generalidade da população. Não esqueçamos que, para além das situações de desemprego, 11,6% dos portugueses que trabalham, não conseguem auferir um rendimento suficiente para os tirar da situação de pobreza. Ora, nas avisadas palavras de Sandra Monteiro, diretora da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique, “Abandonada uma perspetiva socialista, e quando o social-liberalismo é impossível de distinguir do neoliberalismo puro e duro, não é contra as empresas-abutre que a raiva e o protesto tendem a exprimir-se: é contra a política, os políticos, o Estado, o governo, a democracia” (Sandra Monteiro, “Dos lucros dos oligarcas aos vistos dos pobres”, Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, agosto de 2022). Estende-se, por esta via, a passadeira ao extremismo populista.
Hugo Fernandez