No desvario em que se transformou o nosso mundo, é da “razão certa” ou da “boa razão” de que falava Cícero (expressão retomada por Hugo Grócio e, depois, pelos iluministas) que a humanidade desesperadamente precisa. Já nem falo da loucura de Vladimir Putin e do “desafio dos mísseis” na Ucrânia, ou do seu insano apetite atómico. Falo tão só da perspetiva de uma Administração grotesca de Donald Trump nos EUA. Foi a esse propósito que, no início de dezembro de 2024, setenta e sete personalidades distinguidas com o prémio Nobel da Medicina, Química, Física e Economia, apelaram à rejeição da nomeação de Robert Kennedy Jr. como Secretário de Estado da Saúde dos EUA. Alegaram que “Além da falta de reconhecimento ou experiência relevantes nas áreas da Medicina, Ciência, Saúde Pública ou Administração, o senhor Kennedy está contra muitas das vacinas que protegem a saúde e salvam vidas, como as que previnem a poliomielite e o sarampo” (Jornal de Notícias, 10/12/2024), propalando a ideia absurda de que as vacinas causam autismo – Kennedy refere-se a uma surreal “epidemia” de autismo, escondida pelas instituições de saúde norte-americanas, tendo inclusive comparado a vacinação de crianças ao Holocausto. Conforme sublinham os seus autores numa carta dirigida ao Senado e citada pelo The New York Times, a nomeação de semelhante personagem “colocaria em perigo a saúde pública”. Como se isto não bastasse, Kennedy será assessorado pelo famoso – e muito contestado – Doutor Mehmet Oz, estrela da televisão, divulgador de todo o tipo de fenómenos paranormais e promotor de medicinas alternativas, como a “cura pela fé” (faith healing). Terá a seu cargo a gestão dos sistemas de seguro de saúde públicos Medicare e Medicaid, destinados a idosos, pessoas portadoras de deficiência e pessoas de baixa condição económica; gente dispensável, portanto.
Não são casos únicos. Do conjunto de aberrações que constituem a futura Administração Trump, uma das mais paradigmáticas é, precisamente, a da responsável pela área da Educação (secretaria de Estado que, aliás, Trump prometeu desmantelar): nada mais, nada menos do que a bilionária e magnata do wrestling profissional, Linda McMahon. A empresária é casada com Vince McMahon, afastado da liderança da World Wrestling Entertainment em 2022, por ter sido processado por exploração sexual infantil, agressão sexual e tráfico de seres humanos. É também o caso de Chris Wright, empresário do petróleo e gás, defensor acérrimo da exploração dos combustíveis fósseis e negacionista das alterações climáticas, indigitado como Secretário de Estado da Energia. Pior, era difícil! Não fazem mais do que mimetizar o seu chefe e o rol de disparates protagonizados por Trump, desde a famosa afirmação, em dezembro de 2013, “Estou em Los Angeles e está um frio de rachar. O aquecimento global é uma farsa total e muito cara!” – e a consequente retirada dos EUA do acordo de Paris, com vista à redução das emissões de gases com efeito de estufa –, até à sugestão, numa conferência de imprensa na Casa Branca, em abril de 2020, das autoridades de saúde administrarem injeções de lixívia como tratamento para a Covid-19.
Mas, mais do que uma patologia norte-americana, esta irracionalidade está a tornar-se, de forma alarmante, no novo zeitgeist. Semelhante “espírito do tempo” da contemporaneidade, difundido universalmente sobretudo pelas plataformas digitais e pelas redes sociais, não podia estar mais afastado da recta ratio iluminista e da necessidade de sustentar as opiniões em factos. Como justamente refere a filósofa francesa Myriam Revault D’Allonnes, trata-se de “um sistema de explicação do mundo que se sobrepõe à realidade e que pretende explicar absolutamente tudo.” (Público, 28/4/2024). Esta pós-verdade, de que Donald Trump e os seus comparsas são arautos planetários, erige a mentira ao estatuto de “verdade alternativa”, rejeitando quaisquer outras possibilidades de explicação, muito menos de explicação razoável. Por isso, para a académica francesa, há aqui uma clara transformação concetual: “O mentiroso mente, mas não destrói a verdade como critério ou padrão de sentimento ou comportamento.” Estamos, assim, perante um upgrade da mentira que, para assegurar a sua validação, abole a verdade.
Os negacionistas, terraplanistas e teóricos da conspiração arrasam os sistemas periciais e todas as bases científicas do conhecimento, para se lançarem no mais puro delírio da desinformação e irracionalidade, proclamando as suas asserções como inquestionáveis, porque é de fanáticos e politicamente totalitários que falamos. Nesse sentido, o filósofo da ciência da Universidade de Boston, Lee McIntyre, explica: “Há [vários] objetivos na pós-verdade: um é fazer com que acreditemos numa falsidade. Outro é fazer com que desconfiemos de qualquer pessoa que não acredite na mesma falsidade, e até que a odiemos. O terceiro é tornarmo-nos céticos, desistir da ideia de verdade. É isso mesmo que o autoritário quer.” (Público, 12/5/2024). Dá o exemplo comezinho, mas significativo, da alegação de Trump de que a sua tomada de posse, em 2016, teve mais assistência que a do seu antecessor Barack Obama, quando os inúmeros registos fílmicos, fotográficos e testemunhais desmentem categoricamente tal ilação. Refere o filósofo norte-americano: “Porque é que ele se humilharia ao dizer isto? [Porque] o que ele realmente precisava era que eles [os apoiantes] lhe permitissem afirmar isso, mesmo sabendo que era falso, e aceitar. Porque era esse mundo em que viviam agora, em que a realidade não se definia pela realidade, mas sim por um tirano.”, concluindo, “É uma técnica terrível e funciona.” Não só se substitui uma verdade por outra, como se destrói o próprio conceito de verdade. A verdade passa a ser uma questão de escolha pessoal. “Escolhe-se por aquilo que se quer que seja. Pela pessoa em quem se confia ou pela pessoa que está ao nosso lado, porque odeia quem nós já odiamos.” É essa a diferença, argumenta McIntyre, entre uma informação incorreta (misinformation), que é um engano, e a desinformação (disinformation), que é uma mentira partilhada por alguém que sabe que é mentira.
No rescaldo da recente eleição de Donald Trump, o jornalista Manuel Carvalho deixa-nos um testemunho sombrio: “As trevas estão de volta […] A escuridão parece inexorável. As coisas vão piorar até que, num futuro próximo, a luz regresse. Oxalá não seja necessário, como em outros tempos, experimentar a guerra para que a ordem em curso se destrua e seja preciso construir uma nova.” (Público, 7/11/2024). É no mesmo sentido que se pronuncia a filósofa catalã Marina Garcés no seu livro Novo Iluminismo Radical (Lisboa, Orfeu Negro, 2023), para quem “O nosso é o tempo do tudo se acaba.” (p. 19), um tempo que nos remete para o que ela designa por “condição póstuma”. Com efeito, para a professora da Universidade Aberta da Catalunha, o desaparecimento do progresso e do desenvolvimento enquanto ideais de futuro e o esgotamento dos recursos planetários, faz com que deixemos de nos interrogar “para onde?”, mas sim “até quando?”, dúvida existencial definidora deste “tempo da insustentabilidade”. Como adverte Marina Garcés, “É evidente que vivemos em tempo real um endurecimento das condições materiais de vida, tanto económicas como ambientais. Os limites do planeta e dos seus recursos são evidências científicas. A insustentabilidade do sistema económico também é cada vez mais evidente.” (p. 34). Por isso, “O nosso presente é o tempo que resta. A cada dia, um dia a menos.” (p. 30).
Como chegamos a este ponto? Talvez porque cada vez um maior número de pessoas, como anteriormente referido, se recuse a ver a realidade, caminhando alegremente para o abismo. A insubmissão a esta “ideologia póstuma” é a principal tarefa do pensamento crítico atual. Seguindo a exortação de Marina Garcés, é absolutamente necessária “uma atualização da aposta iluminista, entendida como o combate radical contra a credulidade.” (p. 38), devolvendo-nos às raízes do iluminismo “como impugnação dos dogmas e dos poderes que beneficiam deles.” (p. 39). Três séculos depois, já não se trata, aliás, de uma questão de recta ratio, mas tão-só de ratio!
Hugo Fernandez
Em janeiro próximo será instaurada mais uma ditadura democraticamente eleita nos EUA. Mais do que uma autocracia, os cidadãos norte-americanos escolheram uma plutocracia, em que o poder do Estado é posto ao serviço de monopólios económicos privados, juntando os interesses do homem mais rico do mundo, Elon Musk, e aquele que, enquanto Presidente americano, será o homem mais poderoso do mundo, Donald Trump (ele próprio um milionário, membro da elite empresarial nova-iorquina). Elon Musk, aquele que Pedro Adão e Silva descreve como “personalidade demiúrgica de perfil ameaçador.” (Público, 22/11/2024), nomeado chefe de uma denominada Agência para a Eficiência Governamental, já definiu a sua ação no sentido de cortar uns apocalípticos 30% no orçamento da Administração norte-americana, mimetizando o que pratica nas suas empresas, “Um exercício que tem assentado no desrespeito pelas leis, no incumprimento das exigências regulatórias (designadamente as relacionadas com a segurança dos produtos) e no abandono de qualquer réstia de decência.” À imagem e semelhança de um Donald Trump, omnipotente e desregrado, sem quaisquer escrúpulos em impor uma senda destruidora e revanchista ao país, em seu – e dos seus comparsas – exclusivo benefício. É o sonho neoliberal em todo o seu esplendor!
Com o poder absoluto nas mãos, Trump fará dos EUA um Estado de partido único, ao seu serviço e como instrumento das suas vinganças pessoais. A divisão de poderes será uma quimera, o sistema de checks and balances será minado, adversários políticos não merecerão qualquer respeito e não se tolerará a mínima desobediência. Como diz Jason Stanley, professor de Filosofia da Universidade de Yale, “Desde a República de Platão, há 2300 anos, que os filósofos compreendem o processo pelo qual os demagogos chegam ao poder em eleições livres e justas, tão-somente para derrubarem a democracia e estabelecerem regimes tirânicos. O processo é simples e nós acabámos de assistir à sua execução” (Público, 8/11/2024). E, em jeito de aviso, acrescenta: “O futuro pode oferecer oportunidades ocasionais para outros disputarem o poder, mas quaisquer que sejam as disputas políticas que se avizinham, muito provavelmente não serão caracterizadas como eleições livres e justas.”
E o que fez o Partido Democrático para contrariar um desfecho que era tudo menos imprevisível? Assobiou para o lado, atabalhoou-se em “jogos de corte” incompreensíveis e sumamente ineficazes, envolveu-se em assuntos de lana-caprina e… insistiu sempre na mesma cartilha neoliberal, ainda que de forma mais dissimulada. É exatamente o que se passa na Europa. Perante o avanço das forças de extrema-direita e populista, os partidos à esquerda – porque, de facto, muitos deles não são de esquerda – deixam-se enredar num indisfarçável embaraço de quem andou anos a contribuir para beneficiar sempre os mesmos, a fomentar a injustiça social, a desregulamentar as economias, a precarizar as existências, a incentivar a rapina dos recursos e a “lei do mais forte”, ou seja, a promover o neoliberalismo.
Ou não será esta eleição de um energúmeno como Trump (vitória em toda a linha, incluindo no voto popular), uma reação desesperada perante uma globalização anárquica, com a gigantesca destruição de empregos, precariedade laboral, degradação das condições de vida de uma imensa maioria da população norte-americana, dissolução do sentimento de pertença e de respeito próprio? Ou a consequência da paralisia a que se remeteu um Partido Democrata, incapaz de reconhecer os seus erros de atuação na sociedade e de pôr fim à insensatez crescente das suas prioridades políticas? Quando os sistemas de educação e saúde colapsam, quando a desigualdade social atinge extremos nunca antes imaginados, quando o nível de vida da generalidade dos americanos não permite fazer face às despesas mais elementares, não se pode esperar grande racionalidade na escolha eleitoral. Nas palavras certeiras de Bernie Sanders, “Não devia ser uma grande surpresa um Partido Democrata que abandonou a classe trabalhadora descobrir que a classe trabalhadora o abandonou”.
As classes média e trabalhadora foram, desde sempre, a base essencial de apoio aos Democratas. Esse eleitorado predominantemente branco, mas com grande expressão também junto dos negros, hispânicos e asiáticos, foi alienado pelo Partido Democrático, por sua inteira responsabilidade. Como refere o politólogo Diogo Noivo, citando o livro dos norte-americanos John Judis e Ruy Teixeira, Were have all the Democrats gone?, de 2023, foi sob a sua governação que se permitiu o crescimento desmesurado e desregulado dos setores financeiro e tecnológico em detrimento da produção industrial, que entrou num processo de decadência e deslocalização para destinos estrangeiros com a mão-de-obra muito mais barata. Permitiu-se mesmo a intensificação da emigração ilegal, para desvalorizar o custo do trabalho e precarizar a situação dos americanos menos qualificados. Acresce que foi pela taxação quase exclusiva da classe média que se sustentaram as políticas sociais, desonerando despudoradamente os contribuintes mais ricos das suas obrigações fiscais em prol de uma sociedade mais justa e harmoniosa. A governação democrática enveredou por agendas identitárias extremas e por formalismos demagógicos pouco consentâneos com os reais problemas da generalidade dos cidadãos: o emprego, a habitação, a saúde, a educação, a segurança. Diogo Noivo, conclui: “A esquerda trocou a luta de classes pelos dogmas das guerras culturais, mas o eleitorado parece mostrar que as condições materiais do indivíduo são mais importantes do que a etnia ou a orientação sexual.” (Diário de Notícias, 10/11/2024).
Com efeito, a importância dada pelos eleitores aos temas da campanha relativos à economia (39%) e à imigração (20%) superaram todos os outros juntos (cf. Diário de Notícias, 10/11/2024). Foram, aliás, as mulheres brancas, os hispânicos (quase metade do eleitorado latino), os negros e os trabalhadores brancos que deram a vitória a Trump. Em todo o caso, a adesão da “esquerda” norte-americana ao neoliberalismo teve consequências bem mais decisivas do que o apelo ao wokismo. Com a inflação e a subida das taxas de juro a afetarem duramente as vidas e expetativas da maioria dos eleitores, Trump ganhou precisamente nas famílias com rendimentos inferiores a 100 mil dólares, enquanto Kamala Harris recolhia a maioria das preferências nas famílias com rendimentos superiores (cf. Público, 10/11/2024). É o mundo ao contrário! A comparação com a situação económica anterior, nomeadamente no período pré-pandemia, e a crescente descrença e ressentimento face às elites políticas, fez os eleitores desejarem uma mudança (para muitos, estou em crer, apesar da boçalidade de Trump). Até porque, como disse com desarmante simplicidade Kellyanne Conway, a diretora da campanha de Donald Trump em 2016, “Para os eleitores, há uma diferença entre o que os ofende e o que os afeta, e os eleitores votam quase sempre no que os afeta.” (Público, 7/11/2024).
Mas fazer de Trump e da sua elite milionária os representantes dos oprimidos e rejeitados da sociedade americana, tornando-os naquilo que eles não são, nem nunca poderão – ou quererão – ser, é um desvario intolerável que os Democratas não conseguiram contrariar. Os eleitores só cavaram mais fundo a sua sepultura. Pensarão que a prometida redução fiscal aos multimilionários irá beneficiar os mais pobres, ou que a completa concentração e desregulação do poder económico e financeiro irá resolver os problemas dos trabalhadores? Pensarão que o ataque aos sindicatos, lhes trará mais regalias laborais? Ou que o corte nas despesas sociais, tornará a sua vida melhor? Acharão que a anulação de direitos e a medievalização da condição feminina será excelente? Já para não falar do incremento das políticas extrativistas e a negação reiterada das alterações climáticas, com consequências ambientais desastrosas e cada vez mais frequentes. Mas foi precisamente nisto que votaram.
As deportações em massa para resolver os problemas de emprego (neste momento, praticamente inexistente), ou a ameaça dos direitos das minorias (direitos que continuam, em grande parte, por cumprir) é simples folclore eleitoral. A maior virtude dos Republicanos foi terem-se aproveitado do estado de desorientação em que as pessoas se encontram, do profundo ressentimento pelo agravamento das suas condições de vida, da sua falta de esperança relativamente ao futuro, fazendo apelo às suas mais elementares inseguranças existenciais e beneficiando da criminosa apatia e negligência dos Democratas. Na inexistência de alternativas credíveis, caminha-se para o desastre. Confirma-se assim, mutatis mutandis, a célebre provocação de Margaret Thatcher, num jantar de homenagem em 2002, doze anos depois de ter deixado o poder na Grã-Bretanha, quando confessou que a sua maior conquista tinha sido “Tony Blair e o New Labour”, pois, “Forçamos os nossos opositores a mudar de ideias.”
Perante semelhantes desmandos, não podemos deixar de recordar as palavras do filósofo seiscentista Étienne de la Boétie, no seu Discours de la Servitude Volontaire (1548), onde este humanista francês afirmava, “c’est le peuple qui s’asservit, qui se coupe la gorge” (ed. Paris, Flammarion, 2010, p. 136). Em que mundo iremos viver?
Hugo Fernandez
Ter-se-á extinguido a cultura, tal como a conhecíamos, na era da cibernética e do smartphone? Terá o tsunami tecnológico e globalizador varrido os intelectuais? Estas duas questões constituem o ponto de partida da reflexão de Gabriela Bustelo. A noção ocidental de cultura transmutou-se — afirma — com a revolução informática: onde antes existiam bibliotecas, agora, na era cibernética, existe um «supercérebro que permite aos sete milhões de proprietários de um telefone inteligente decidir o que consideram cultura e em que formato a desejam receber». Porém, a «fantasmagoria mundial das redes sociais» permite aos millennials ostentarem erudição. Uma investigação da National Literacy Trust desmascarou esta impostura ao revelar que dois terços dos britânicos mentem quando afirmam ter lido Guerra e Paz ou Ulisses, e que o fazem para impressionar com fins amorosos ou sexuais, instrumentalizando assim a cultura. Em Espanha, 30% ― mais de 15 milhões de pessoas ― não leram um único livro em todo o ano de 2023 e, entre os que leem, também há exibicionismo: fingem ter lido Dom Quixote, Cem Anos de Solidão e O Jogo da Amarelinha, entre outros.
Esta mudança de paradigma ocorreu entre o final do século XX e o início do século XXI, fruto do «processo de interconexão planetária», iniciado com a descoberta da América por Colombo e que culminou com o telefone inteligente e o computador pessoal, conectando, em tempo real, oito mil milhões de pessoas. O certo é que autores como Vargas Llosa consideram a cultura morta devido «ao excesso de laxismo e entretenimento».
E o que aconteceu ao venerado intelectual do século XX? Foi substituído pela «estrela mediática com podcast», observa Bustelo. Os intelectuais perderam a aura de seres iluminados e parecem «criaturas redundantes, quase extintas», numa altura em que a velha tarefa de «evangelizar» o inculto é agora monopolizada por ativistas políticos e agitadores mediáticos na ágora das redes sociais. Em Espanha, e por extensão na Hispano-América, ainda subsistem vestígios de intelectualidade como uma ocupação «praticada por charlatães pedantões».
O aterragem forçada da digitalização em 2020, imposta pelo confinamento, deu o golpe final à cultura oficialista. Empresas e particulares foram obrigados a conectar-se numa espécie de metamorfose tecnológica que, em tempos pré-pandémicos, teria demorado muitos anos. Hoje, praticamente todos os lares espanhóis possuem telefone fixo ou móvel, sendo Espanha o país europeu com mais dispositivos por habitante. Graças à internet, temos ao alcance de um simples clique o saber mundial, mas a questão é se queremos utilizá-lo e com que critérios.
Não será descabido perguntar se ainda existem os intelectuais que tanto nos impressionaram e marcaram ao longo do século XX. No âmbito ocidental, a palavra “intelectual” foi perdendo o seu prestígio totémico, sendo até usada com ironia ou desprezo. A tradicional missão de evangelizar os incultos é hoje levada a cabo nas redes sociais por ativistas políticos e agitadores mediáticos. Nos países digitalizados, os intelectuais veteranos perderam a aura de seres iluminados e parecem criaturas redundantes, quase extintas. Têm alguma influência em pequenos círculos, mas as gerações mais jovens mal conhecem a sua existência. O cidadão global é agora um autodidata que se autoabastece através do iPhone.
À medida que o novo século avança para o final da sua segunda década, vivemos já mergulhados nas novelas de ficção científica que líamos no século XX. Nenhum aspeto das nossas vidas quotidianas escapou ao impacto da globalização e, graças à internet, dispomos de um vasto corpus de conhecimento científico, educativo e cultural, apresentado em formatos mediáticos acessíveis ao público comum. Temos ao alcance o saber mundial, mas será que queremos usá-lo?
Neste cenário emergente, a velha guarda intelectual parece ridicularizar, por desconhecimento, uma juventude tecnificada e autodidata, que se forma através da internet, das redes sociais e do cinema em plataformas digitais. Paralelamente, a tempestade mediática em torno dos mesmos temas, somada à credibilidade decrescente da informação e à dinâmica de autocríticas e polarizações, contribui para o desprestígio da imprensa tradicional. Não é por acaso que os antigos «meios de informação» passaram a ser chamados de «meios de comunicação». De facto, como apontava Revel em O Conhecimento Inútil, trata-se de conceitos opostos.
Numa era digital em que a informação está a um toque de tecla para a esmagadora maioria da humanidade, a cultura é — e será cada vez mais — aquilo que cada um quiser que ela seja.
No âmbito do Seminário FOLEG 2024, sob o tema “LIDERAR ESTUDOS GLOBAIS”, tivemos a oportunidade de explorar o impacto da inteligência artificial (IA) na investigação colaborativa e o papel transformador da extensão universitária como um motor de desenvolvimento social. Este fórum sublinhou a importância da sinergia entre a academia e o contexto local, visando uma investigação que transcenda a teoria e gere mudanças concretas e significativas na sociedade. A união entre a academia e o contexto local é essencial para criar uma investigação que não apenas avance teoricamente, mas que também produza mudanças concretas e significativas na sociedade. Neste sentido, a Universidade Aberta e o Centro de Estudos Globais (CEG) têm dado passos importantes ao aproximar a investigação da prática, promovendo parcerias estratégicas com atores locais e impulsionando a troca de saberes entre investigadores e a sociedade.
"Como Investigar em Equipa na Era da Inteligência Artificial"
A revolução trazida pela inteligência artificial (IA) está a transformar profundamente as dinâmicas de colaboração e investigação numa variedade de setores, afetando desde a ciência até as ciências sociais e empresariais. A utilização de recursos de IA em equipas de investigação oferece novas oportunidades de inovação, permitindo analisar grandes volumes de dados, gerar hipóteses automaticamente e acelerar o ritmo das descobertas. Ao mesmo tempo, essa integração não é isenta de desafios significativos, exigindo uma reavaliação de como as equipas trabalham, comunicam e tomam decisões.
Historicamente, o trabalho em equipa baseava-se em interações humanas, onde competências complementares e especializações eram compartilhadas para resolver problemas complexos. Hoje, com a introdução de IA, essa dinâmica evolui. Recursos de inteligência artificial podem processar informações de maneira mais rápida e eficiente do que qualquer humano, além de conseguirem identificar padrões e fornecer insights que, por vezes, passam despercebidos. Este novo cenário abre portas para equipas de investigação alcançarem resultados mais precisos e em menos tempo, aumentando significativamente a produtividade. Contudo, o verdadeiro valor da IA não está em substituir os humanos, mas em aumentar as capacidades de uma equipa, oferecendo uma parceria complementar entre a capacidade computacional e o raciocínio humano.
Entretanto, a adoção da IA nas equipas de investigação levanta uma série de questões fundamentais. Em primeiro lugar, as metodologias de trabalho precisam ser ajustadas para acomodar a participação da IA. Recursos tecnológicos devem ser integrados de forma coesa aos processos de investigação, sem desvalorizar as competências críticas humanas, como a capacidade de interpretação, análise contextual e tomada de decisões éticas. O sucesso dessa integração dependerá da capacidade dos profissionais em equilibrar as contribuições da IA com as suas próprias, garantindo que a máquina não seja apenas uma ferramenta de execução, mas também um suporte estratégico que enriqueça a análise e a interpretação dos dados.
Além disso, a redefinição dos papéis dentro da equipa é inevitável. À medida que a IA assume tarefas rotineiras ou de processamento intensivo, os investigadores podem concentrar-se em atividades de maior valor, como a formulação de hipóteses, a criação de estratégias inovadoras e a avaliação crítica dos resultados obtidos. No entanto, isso também significa que as equipas precisam desenvolver novas competências técnicas, incluindo o entendimento básico sobre o funcionamento dos recursos de IA, para garantir uma utilização eficaz e crítica destas tecnologias.
Outro ponto crítico que deve ser discutido é o impacto ético da IA na investigação em equipa. A automação e o uso massivo de algoritmos levantam questões sobre transparência, viés algorítmico e a responsabilidade dos resultados gerados. A ética torna-se ainda mais relevante quando se trata de decidir até que ponto os resultados sugeridos pela IA podem ou devem ser adotados, especialmente em áreas sensíveis como a saúde, as ciências sociais e a política pública. Garantir que a IA opere de forma justa e transparente, e que a tomada de decisões finais permaneça nas mãos dos humanos, é um desafio que precisa ser constantemente monitorizado.
No contexto de comunicação e gestão de equipas, a IA também impõe mudanças. O trabalho colaborativo em equipa sempre exigiu uma comunicação eficaz e o estabelecimento de papéis bem definidos. Agora, a IA torna-se parte desse processo, não apenas como uma ferramenta técnica, mas como um "membro" que influencia diretamente a forma como as decisões são tomadas e os problemas são resolvidos. Isso implica a necessidade de uma comunicação clara entre os membros humanos da equipa sobre como interpretar os resultados gerados pela IA e, mais importante, como utilizar esses resultados para fundamentar as decisões de forma estratégica e ética.
Nesse sentido, o papel do líder de equipa torna-se ainda mais importante. Além das tradicionais funções de gestão e motivação, o líder agora precisa atuar como um facilitador da integração tecnológica, assegurando que a IA seja utilizada de maneira responsável e que o equilíbrio entre tecnologia e raciocínio humano, seja mantido. O líder deve ser capaz de reconhecer quando é adequado confiar na análise da IA e quando é necessário aplicar a intuição e experiência humanas.
Por fim, a IA pode transformar a forma como o conhecimento é gerado e partilhado dentro de equipas de investigação. Ao facilitar o acesso a grandes volumes de dados e insights complexos, a IA pode ajudar a democratizar a criação de conhecimento, permitindo que investigadores de diferentes áreas colaborem de forma mais ágil e produtiva. No entanto, essa abundância de informação também coloca desafios, como a necessidade de garantir que os dados sejam utilizados de forma ética e que os resultados gerados sejam compreensíveis e acionáveis para toda a equipa.
Neste seminário, explorámos como as equipas podem maximizar o potencial da IA para melhorar a colaboração, acelerar a inovação e alcançar resultados mais eficientes e precisos. Ao mesmo tempo, foram abordados os desafios inevitáveis dessa integração, como a divisão de trabalho entre humanos e máquinas, o impacto sobre a comunicação dentro das equipas e o papel transformador da liderança. Mais importante ainda, discutiu-se como a IA está a moldar o futuro da investigação, influenciando não só o modo como investigamos, mas também como construímos e partilhamos conhecimento.
A Relevância da Extensão Universitária como Ferramenta de Transformação Social.
Historicamente, as universidades desempenham um papel essencial na geração de conhecimento e na formação de profissionais qualificados. Mas, no século XXI, espera-se que as instituições de ensino superior também promovam o desenvolvimento social e económico das regiões onde atuam. A extensão universitária surge, assim, como um pilar estratégico indispensável, ao aproximar a academia das necessidades concretas do território e da sociedade. Mais do que uma função secundária, a extensão universitária deve ser integrada à missão institucional, promovendo uma universidade comprometida com a inclusão social, a sustentabilidade e a inovação.
No século XXI, a missão das universidades ultrapassa a simples disseminação de conhecimento técnico. A extensão universitária emerge como um pilar estratégico indispensável, com o propósito de desenvolver uma universidade comprometida, não apenas com a formação de profissionais, mas também com a construção de cidadãos conscientes, solidários e socialmente responsáveis.
A extensão universitária — entendida como a capacidade das universidades de aplicar o saber em benefício direto da sociedade — representa uma poderosa ferramenta de transformação social. Este conceito ultrapassa a dimensão cultural, propondo uma universidade ativamente envolvida com as necessidades do seu território e comprometida com a agenda global do desenvolvimento sustentável. Não basta que a extensão universitária seja uma missão acessória das universidades; pelo contrário, deve ser uma prioridade, plenamente integrada na estratégia de especialização inteligente de cada instituição, tal como tenho defendido em vários textos e intervenções públicas.
Na Universidade Aberta, o conceito de extensão é implementado por meio de projetos como os Centros Locais de Aprendizagem (CLAs), que facilitam o acesso da comunidade aos espaços universitários e promovem a colaboração com autarquias e instituições locais. Essas iniciativas possibilitam que a universidade contribua para a transformação do seu entorno, aplicando o saber académico em projetos que geram valor direto para a sociedade, além de promover o empreendedorismo e a inovação. Esses programas de extensão são fundamentais para que a universidade se posicione como um agente de mudança, não apenas formando profissionais capacitados, mas cidadãos conscientes, solidários e socialmente responsáveis.
A extensão universitária reforça o compromisso das universidades com a sociedade, aplicando o conhecimento académico para enfrentar desafios locais e promover o desenvolvimento sustentável. A Universidade Aberta, por meio de projetos como os Centros Locais de Aprendizagem, ilustra o impacto positivo que a academia pode ter na construção de uma sociedade mais inclusiva e solidária.
O Seminário FOLEG 2024 representou uma oportunidade de refletir sobre a aplicação da metodologia de investigação nas áreas científicas do CEG, sobre Como investigar em Equipa num Global e Digital, sobre o papel da inteligência artificial, e com acrescento da minha parte, ainda sobre a extensão universitária como alavanca para uma academia mais integrada, ética e socialmente responsável.
Neste Seminário, os participantes foram incentivados a explorar como maximizar os vetores que fazem parte do ofício do investigador, ao mesmo tempo, em que se refletiu sobre os desafios éticos e metodológicos de novos recursos. Através da partilha de experiências e boas práticas, esperamos fortalecer o compromisso dos investigadores com uma investigação que não só inova, mas também constrói pontes entre o conhecimento e a sociedade, alinhando-se à missão de uma universidade comprometida com o desenvolvimento humano e social no século XXI.
Domingos Caeiro
(Ponte Lima — FOLEG2024 — novembro)
Excelentíssimos Professores, Estudantes, Ilustres Convidados e Membros da Comunidade Universitária,
Permitam-me iniciar com uma palavra de gratidão a todos que contribuíram para o sucesso deste II Simpósio Temático: Relações Luso-Nipónicas – Mono-no-aware e uma Saudade: “Entre Páginas: teias narrativas entre o Japão e Portugal.”
Hoje, concluímos mais uma etapa no caminho de fortalecer e aprofundar os laços culturais e literários que unem Portugal e o Japão. Ao longo deste evento, fomos enriquecidos por análises perspicazes e apresentações que realçaram a importância do intercâmbio literário entre as nossas duas nações, construído ao longo de 480 anos de amizade.
Este simpósio, dando continuidade à celebração das relações históricas luso-nipónicas, não apenas se limitou a revisitar os marcos do passado. Pelo contrário, expandiu-se para refletir sobre como essas relações têm evoluído e florescido, particularmente no campo da literatura, onde as trocas culturais tomam forma em palavras, imagens e emoções que transcendem fronteiras geográficas e temporais. Através das páginas escritas, tanto por autores portugueses como japoneses, testemunhamos como a saudade e o mono-no-aware, dois conceitos intrinsecamente ligados ao sentir de cada cultura, se encontram em narrativas que ressoam com a sensibilidade universal.
Foi abordado, com extrema clareza e erudição pelos especialistas aqui presentes e os que estão do outro deste hemisfério, como essas trocas literárias criam teias narrativas que refletem não só as diferenças culturais, mas também os valores humanos que nos aproximam. O poder das palavras tem sido um meio fundamental para continuar a construir pontes entre Portugal e o Japão, e é precisamente através dessa lente literária que podemos compreender melhor o que nos une.
Neste sentido, é impossível não destacar o papel crucial da Universidade e da academia em sustentar e nutrir esses laços. As instituições académicas são, e continuarão a ser, pilares centrais para a preservação e promoção das conexões culturais entre as nações. Num mundo que parece, muitas vezes, fragmentar-se diante dos nossos olhos, onde a globalização convive paradoxalmente com o isolamento e a polarização, é essencial que a Universidade se mantenha como um espaço de diálogo, troca e construção conjunta de conhecimento.
A universidade, como vimos ao longo deste simpósio, desempenha as suas três missões essenciais: o ensino, a investigação e a transferência de conhecimento versus extensão universitária e cultural. Mas, no contexto das relações luso-nipónicas, quero destacar, sobretudo, o papel da extensão universitária – a terceira missão da universidade –, que se revela vital para a manutenção e o fortalecimento dos laços culturais e humanos. Ao partilhar o conhecimento com a sociedade, ao promover o entendimento intercultural e ao integrar-se e desenvolver atividades que aproximam diferentes partes do mundo, a academia não apenas preserva o passado, mas projeta um futuro de cooperação e enriquecimento mútuo.
Encorajamos todos os membros da comunidade universitária a continuar a explorar essas ricas interseções culturais e a estender a mão, por meio da literatura, da arte e da ciência, para manter vivas essas conexões. Através de parcerias entre instituições, da colaboração com entidades culturais e da promoção de iniciativas que envolvam a sociedade, estamos a garantir que os laços entre Portugal e o Japão não se percam, mas sim que se fortaleçam e floresçam ainda mais.
Devemos, portanto, continuar a incentivar os nossos estudantes e professores a se envolverem ativamente na promoção deste diálogo cultural e literário. Ao celebrarmos a amizade entre Portugal e o Japão, também reafirmamos o nosso compromisso com um futuro em que a colaboração entre povos, mediada pelo conhecimento e pela cultura, seja a chave para a construção de uma sociedade mais justa e integrada.
Em tempos de incerteza e divisão, é crucial que a universidade se mantenha como um espaço de encontro, onde as ideias circulam e as fronteiras se desfazem. O nosso dever, enquanto membros da comunidade académica, é garantir que a terceira missão da universidade – a sua ligação à sociedade – seja cumprida com vigor e determinação. Mediante eventos como este, reforçamos o nosso compromisso de transferir o conhecimento além dos do campus, sejam físicos ou digitais, envolvendo a sociedade e promovendo o intercâmbio cultural como um caminho para a paz e o entendimento global.
Por fim, deixo uma reflexão. Se há algo que aprendemos ao longo destes dois simpósios, é que o valor das relações humanas e culturais está na sua capacidade de gerar empatia e entendimento. O mono-no-aware japonês, a consciência da transitoriedade das coisas e a saudade portuguesa, o anseio pelo que se perdeu, ambos falam de um reconhecimento profundo das emoções e experiências que nos conectam como seres humanos. E é essa sensibilidade que devemos preservar, num mundo cada vez mais desafiado pela indiferença e pela desconexão.
Ao encerrar este II Simpósio, quero agradecer a todos os que participaram, aos académicos que contribuíram com as suas análises, e a todos os presentes que, com o seu interesse e atenção, ajudaram a tornar este evento um sucesso. Encerramos este II Simpósio com o sentimento de que a jornada continua. As páginas da nossa história conjunta estão longe de serem totalmente escritas, e cabe a nós, enquanto academia e sociedade, continuar a contribuir para essa narrativa rica e em constante evolução.
Mais uma vez, agradeço profundamente a todos os participantes, palestrantes e organizadores deste simpósio, cujo empenho e dedicação tornaram este evento possível e frutífero. Agradeço, sobretudo, pela contínua partilha de saberes que nos mantém unidos e inspirados a continuar a trilhar este caminho de amizade e cooperação entre Portugal e o Japão.
Que esta jornada continue por muitas gerações, e que a academia, com a sua missão de perpetuar o conhecimento e promover o intercâmbio cultural, seja sempre uma ponte sólida entre as nossas nações.
Muito obrigado.
Domingos Caeiro
(Universidade Aberta, outubro de 2024)
A consideração dos direitos fundamentais, enquanto determinação normativa e princípio de organização das sociedades, tem a sua origem na instauração do liberalismo no mundo euro-atlântico nos finais do século XVIII e ao longo do século XIX. Radica no postulado universalista da igualdade perante a lei, traduzida na igual consideração social dos indivíduos. A história política e social da modernidade não tem sido mais do que a disputa em torno do grau e das modalidades da concretização deste paradigma igualitário, ou seja, da maior ou menor materialização das aspirações democráticas então despoletadas. Esta igualdade de estatuto entre os cidadãos, manifestada nos valores da liberdade individual e da propriedade privada tem, para o pensamento dominante, expressão cimeira na economia de mercado e no desenvolvimento do sistema capitalista.
Martin Wolf, editor associado e principal comentador económico do Financial Times, na sua mais recente obra, The Crisis of Democratic Capitalism, de 2023 (tradução portuguesa da Gradiva), parte precisamente desta “simbiose”, que denomina “capitalismo democrático”, isto é, “a combinação de democracia liberal com o capitalismo de mercado” (Wolf 2023: 40). Para o autor, “A democracia e o mercado têm em comum algo fundamental: a ideia da igualdade de estatuto. Numa democracia, todos têm direito a ter voz nos assuntos públicos. Num mercado livre, todos têm o direito de comprar e vender o que possuem.” (Wolf 2023: 13). Levando esta analogia adiante, Wolf afirma: “Por mais diferentes que possam parecer um do outro, o capitalismo de mercado e a democracia liberal baseiam-se nos mesmos valores filosóficos subjacentes.” (Wolf 2023: 25), isto é, a ideia de igualdade, assente no credo individualista da liberdade. Partindo do pressuposto de uma natural desigualdade de resultados ou de realização pessoal, alega-se que “aqueles que detêm poder político são responsabilizáveis perante os cidadãos”, da mesma forma que “aqueles que participam nos mercados têm de responder às decisões dos clientes.” (Wolf 2023: 27).
A aporia essencial desta tese é que o paradigma igualitário liberal significa a exclusão de discriminações, mais do que verdadeira igualdade de oportunidades. São estas as condições do que é considerado socialmente justo (e, por isso, legítimo): igualdade no respeito e consideração individuais e não um tratamento igual, entendido enquanto distribuição igualitária – ou sequer, equitativa – de funções e recursos. Para o pensamento liberal, a noção de igualdade de oportunidades abre o caminho a que cada pessoa, sem ter em conta a sua origem ou condição existencial, possa ter as mesmas possibilidades que todas as outras de atingir os objetivos pretendidos se, para tal, apresentar a energia e talento necessários. É com este enquadramento ideológico que surge o conceito de mérito, entendido enquanto legitimador da distinção social. O sucesso pessoal passa a medir-se pela posse, sendo os bens e cargos acessíveis a quem os consiga adquirir, sem mais restrições ou entraves que a vontade e a capacidade de cada um. O mérito é o critério justo desta competição, premiando com a prosperidade aqueles que conseguem destacar-se. Consagrando a distinção social, legitima-se a desigualdade. Ficam assim estabelecidos os critérios essenciais do liberalismo que, como é sabido, têm tido uma existência perene. Será este o “fim da história” invocado, em 1989, por Francis Fukuyama? É certamente prematuro chegar a tal conclusão.
Com efeito, quando se fala da igualdade de oportunidades, há dois aspetos essenciais a ter em consideração: a igualdade de acesso, isto é, a possibilidade de (a habilitação necessária para o efeito e a não discriminação de ingresso), e a igualdade de pontos de partida, isto é, condições para (os requisitos económicos, sociais e culturais necessários para aceder às próprias oportunidades). Como se sabe, a sociedade liberal considerará com muito mais dificuldade o segundo aspeto. Ainda que a igualdade seja uma ideia central da contemporaneidade, a complexidade das questões que levanta – desde logo porque confronta outros valores considerados igualmente fundamentais – e as perplexidades que suscita, não pode deixar de originar algumas interrogações. A pobreza é uma condição existencial ou uma ordem de grandeza (neste caso de privação) relativamente aos outros? Partimos de uma circunstância individual ou de uma relação social? Se optarmos pela primeira opção, é ao pobre que assacamos a responsabilidade pela sua situação, naturalmente decorrente do desleixo, da preguiça, do vício ou de qualquer outro aspeto depreciativo. Se adotarmos o segundo critério, a pobreza é, antes de mais, uma condição social de privação resultante de um funcionamento específico da sociedade e que só nesta poderá encontrar os meios da sua mitigação ou, em última análise, resolução. Por outro lado, a propriedade decorrerá sempre de uma justa retribuição do mérito? A riqueza resultará, em todos os casos, do esforço e talento dos seus detentores? O mérito é pressuposto ou expediente ideológico de legitimação da posse? E em caso de dúvida, poder-se-á considerar a existência de uma real universalidade de direitos?
Ficou famosa a diatribe de Warren Buffett, segundo o qual “Existe guerra de classes, sim, mas é a minha classe, a classe rica, que está a fazer a guerra, e estamos a ganhar.” O que poderá contribuir para a atenuação deste conflito de interesses, a bem da esmagadora maioria da população? No âmbito da próxima cimeira do G20, que reunirá no Brasil em novembro, sob o lema “Building a just world and a sustainable planet”, foi proposta, por iniciativa do país organizador, uma contribuição mínima anual de 2% sobre as fortunas superiores a mil milhões de dólares. Este imposto, que resulta de uma tentativa de progressividade ínfima na taxação de fortunas desmesuradas – e, a bem dizer, de elementar decência na tributação e distribuição da riqueza – é o sucedâneo da famosa “Taxa Tobin”, sugerida em 1972 pelo economista norte-americano James Tobin, da Universidade de Yale, que incidiria sobre as movimentações financeiras internacionais de caráter especulativo em cerca de 0,1% e 0,5%, e que poderia levar à cobrança de muitos milhares de milhões de dólares anuais destinados a financiar políticas de desenvolvimento sustentável, de redução das desigualdades e combate à pobreza à escala mundial. Relativamente a esta iniciativa pioneira, nada aconteceu.
A sugestão brasileira permitiria tributar os 2781 bilionários do mundo (património líquido estimado em mil milhões de dólares americanos, em abril de 2024), segundo a Forbes. É o caso de Elon Musk, empreendedor sul-africano e CEO da Tesla e da SpaceX (239,6), Jeff Bezos, empresário norte-americano, fundador da Amazon (202), Bernard Arnault, magnata francês que lidera a LVMH, a maior empresa de bens de luxo (179,7), Larry Ellison, investidor norte-americano, cofundador e diretor-executivo da Oracle (171,9), Mark Zuckerberg, empresário norte-americano, fundador e CEO da Meta (163,8), Larry Page, cientista norte-americano de computação, cofundador e diretor-executivo da Google (141), Warren Buffett, investidor e acionista norte-americano, diretor-executivo da holding Berkshire Hathaway (139), Sergey Brin, cientista norte-americano de computação, cofundador da Google e acionista da Alphabet (134,6), Bill Gates, empresário e cofundador da Microsoft (131,7), ou Steve Ballmer, ex-presidente da Microsoft e dono da equipa de basquetebol Los Angeles Clippers (126,3) (Visão, 5/9/24).
A desigualdade na distribuição da riqueza, como foi amplamente demonstrado pelas análises de Thomas Piketty (Le Capital au XXI siècle, Paris, Seuil, 2013), teve um refluxo global no período entre Guerras (em especial nos EUA) e sobretudo após a II Guerra Mundial (também na Europa), contrariando uma tendência de acumulação excessiva de fortunas que vinha do século XIX e que foi retomada, na sequência das crises petrolíferas dos anos 70, com a implantação das políticas neoliberais dos consulados de Margaret Thatcher e de Ronald Reagan, na década de 80 da centúria passada e que, com variantes e conivências políticas surpreendentes dos dois lados do Atlântico (por exemplo, os casos de Bill Clinton e Tony Blair) se prolongou pelos inícios do século XXI, para assumir a forma desbragada e grotesca das governações de um Boris Johnson ou de um Donald Trump. Esta evolução provocou aquilo que Susana Peralta descreve como “inexorável erosão da progressividade dos impostos”. Como refere a economista portuguesa, “As taxas marginais aplicadas ao escalão mais elevado dos rendimentos chegaram a valores acima dos 80% tanto nos Estados Unidos como no Reino Unido, entre as décadas de 40 e 70 do século passado. Seguiram-se-lhes as reformas de Reagan e Thatcher. A «Dama de Ferro» diminuiu a taxa marginal do último escalão para 60%, em 1980, e depois para 40%, em 1989; Reagan, para 50%, em 1981.” (Público, 27/9/24).
Susana Peralta cita os economistas da Universidade de Berkeley, Emmanuel Saez e Gabriel Zucman que, no seu livro The Triumph of Injustice, de 2019, denunciam o facto de o sistema fiscal norte-americano se ter tornado numa “flat tax gigante”. Nos cálculos que fizeram, estes autores concluíram que a generalidade dos contribuintes norte-americanos pagam entre 25% e 28% de impostos sobre os seus rendimentos brutos, enquanto que os 400 bilionários mais ricos, pouco ultrapassam os 20%, concluindo que, “como um grupo, embora as suas situações individuais não sejam as mesmas, os Trumps, os Zuckerbergs e os Buffetts deste mundo pagam menos impostos que os professores e as secretárias”, aproveitando-se de uma ampla panóplia de expedientes de engenharia contabilística e criatividade tributária (vulgo, fraude fiscal) e de práticas correntes de pura e simples fuga aos impostos. As somas envolvidas nestes esquemas fraudulentos são muito relevantes; um estudo de 2015 do FMI, calculou que a erosão da base tributária e da transferência de lucros reduziram a receita anual de longo prazo nos países membros da OCDE em cerca de 450 mil milhões de dólares (cf. Wolf 2023: 172). Desta forma, não só desaparece qualquer expetativa de progressividade fiscal, como se elimina a mera proporcionalidade tributária.
O próprio Martin Wolf reconhece este estado de coisas, quando afirma “Uma característica dominante do período que decorreu desde o início da década de 1980 foi o aumento da desigualdade, tanto na riqueza como nos rendimentos (antes e depois dos impostos).” (Wolf 2023: 33). Invoca, para o efeito, os dados do observatório “Income Inequality” da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE) que, no seu relatório “Inequality and Poverty” de 2020, conclui que “A desigualdade de rendimento nos países da OCDE está no seu nível mais alto do último meio século.”, alertando para a circunstância de que “A incerteza e os receios de declínio social e exclusão atingiram as classes médias em muitas sociedades.” (Wolf 2023: 92). Sublinha, a este propósito, que um dos aspetos mais impactantes para o aumento das desigualdades é o do crescimento desmesurado dos níveis de remuneração do topo da escala social. De acordo com Deborah Hargreaves, do High Pay Center, a relação entre o salário médio dos principais executivos e o salário dos funcionários no Reino Unido foi de 129 para 1 em 2016, um aumento significativo de 48 para 1 em 1998, sendo que, no caso dos EUA, a proporção correspondente foi de 347 para 1 em 2016, subindo de 42 para 1 em 1980 (cf. Wolf 2023: 94), tendência que se tem vindo a agravar desde então. Como refere Wolf, “esses novos níveis de remuneração permitem que um executivo acumule riqueza dinástica em muito poucos anos.” (ibid.). Será viável a manutenção de sociedades com semelhante grau de desigualdade? Ou teremos que acompanhar o desabafo do crítico literário e filósofo norte-americano Fredric Jameson, quando afirmou, no seu livro Seeds of Times, de 1994, que “É, para nós, hoje, mais fácil a destruição da natureza e do planeta Terra do que o fim do capitalismo.”?
Verdadeiramente premonitória foi a preocupação expressa pelo sempre sagaz Alexis de Tocqueville, no programa parlamentar que redigiu em 1847, quando chamou a atenção precisamente para o facto de que “La Révolution française, qui a aboli tous les privilèges et détruit tous les droits exclusifs, en a pourtant laissé subsister un, celui de la propriété.” (citado por Patrick Savidan, no Pósfacio a Crawford B. Macpherson, La Théorie Politique de l’Individualisme Possessif, Paris, Gallimard, 2004, pp.540-541). Para o pensador político e historiador francês, dotado de um notável sentido prospetivo e denunciando o que qualificou de “velha doença democrática”, será este o “grande campo de batalha” político e social futuro: “Bientôt, ce sera entre ceux qui possèdent et ceux qui ne possèdent pas que s’établira la lutte politique; le grand champ de bataille sera la propriété, et les principales questions de la politique rouleront sur des modifications plus ou moins profondes à apporter au droit des propriétaires. Nous reverrons alors les grandes agitations publiques et les grands partis.” (ibid.). O presente aí está para o demonstrar.
Hugo Fernandez
A resposta do governo português ao desafio do uso de telemóveis nas escolas revela uma profunda falta de visão estratégica e uma resistência preocupante à inovação. Em vez de abraçar a modernidade e preparar as escolas para os desafios do século XXI, opta-se por uma medida paliativa, a recomendação de proibição, que ignora tanto as exigências da era digital como as reais necessidades educativas. A decisão de proibir o uso de telemóveis nas escolas é não só ineficaz, como também contrária ao progresso e à inovação que uma educação moderna requer.
Ao invés de proibições simplistas, o que se impõe é a criação de um plano nacional robusto e ambicioso para a integração dos telemóveis e outras tecnologias digitais nos processos educativos. O desenvolvimento tecnológico não pode ser travado com soluções reativas que apenas adiam o inevitável. As escolas são os espaços onde os futuros cidadãos estão a ser formados, e é fundamental que estas instituições estejam na vanguarda da preparação digital, fornecendo aos alunos as ferramentas necessárias para navegar, de forma crítica e responsável, no mundo tecnológico de hoje e de amanhã.
Formação de Professores e Alunos para o Mundo Digital:
O primeiro passo é garantir que os professores estejam adequadamente preparados para integrar as tecnologias digitais nas suas práticas pedagógicas. A formação contínua e especializada dos docentes deve ser central neste processo. Propomos a criação de um plano nacional de formação digital, com módulos obrigatórios sobre literacia digital, cibersegurança, pedagogia digital, inteligência artificial, entre outros temas relevantes. Esta formação deve ser acompanhada por certificação progressiva e avaliações periódicas, garantindo que os professores estejam constantemente atualizados sobre as melhores práticas educativas no uso da tecnologia.
Ao mesmo tempo, é imperativo que os alunos não sejam meros consumidores passivos de tecnologias, mas utilizadores críticos e criativos. As escolas devem integrar, no currículo, disciplinas voltadas para o uso responsável e inovador de ferramentas digitais, que fomentem a criação de projetos tecnológicos, o pensamento crítico sobre o impacto da tecnologia na sociedade e o desenvolvimento de competências em áreas como programação, robótica e ciência de dados.
Infraestrutura Tecnológica nas Escolas:
O investimento em infraestrutura é outro pilar fundamental para a transformação digital das escolas. As instituições de ensino devem ser equipadas com tecnologia de ponta, incluindo redes de internet de alta velocidade, computadores modernos e plataformas de ensino online eficazes. Além disso, o uso de telemóveis e outros dispositivos pessoais deve ser integrado de forma estratégica no processo pedagógico, transformando-os em instrumentos de investigação, comunicação e criação.
É necessário garantir que todas as escolas, independentemente da sua localização geográfica ou perfil socioeconómico, tenham acesso a estes recursos, promovendo a equidade digital. A digitalização do ensino não pode ser um privilégio de poucos; deve ser um direito universal que permita a todos os alunos o mesmo nível de acesso a recursos tecnológicos.
Desenvolvimento de Ambientes Virtuais e de Ensino a Distância:
A pandemia de COVID-19 evidenciou as lacunas no sistema educativo português no que diz respeito à digitalização e ao ensino a distância. Contudo, em vez de se tirar partido das lições aprendidas, o governo parece inclinado a regressar ao status quo pré-pandemia. É urgente a criação de ambientes virtuais de ensino robustos, que possibilitem não apenas o ensino a distância em situações de emergência, mas que complementem e expandam a educação presencial. Estas plataformas digitais devem ser interativas, acessíveis e projetadas para promover o desenvolvimento de competências digitais em contextos reais e práticos.
Literacia Digital como Pilar da Cidadania Ativa:
As ferramentas digitais são essenciais para muito mais do que a preparação para o mercado de trabalho; elas são fundamentais para o exercício pleno da cidadania. Uma população digitalmente capacitada está mais preparada para participar de forma ativa e crítica na sociedade. Por isso, a formação em literacia digital deve ser encarada como um dever cívico, inserido desde os primeiros anos de escolaridade e continuamente reforçado ao longo da vida.
A resistência à integração tecnológica nas escolas não é apenas um reflexo de uma visão ultrapassada da educação, mas também um entrave ao desenvolvimento da sociedade portuguesa no seu conjunto. O governo deve abandonar a mentalidade de medo e recusa da mudança e, em vez disso, assumir uma posição de liderança proativa, investindo de forma séria e consistente na preparação das novas gerações para o futuro digital.
Em suma, Portugal não pode continuar a "parar o vento com as mãos", adotando medidas paliativas que atrasam o inevitável. O desenvolvimento tecnológico é um imperativo, não uma opção, e as escolas são os principais agentes dessa transformação. Um plano estratégico para a digitalização da educação é urgente, e deve basear-se na capacitação dos professores, na criação de infraestrutura adequada, na inclusão de disciplinas de literacia digital e no desenvolvimento de plataformas de ensino online. Este é o caminho para formar uma geração preparada, inovadora e capaz de enfrentar os desafios do mundo digital. Não se trata de barrar o progresso, mas de o antecipar e abraçar, garantindo que as novas gerações estejam prontas para liderar o futuro.
Caros Sócios e Adeptos do Sport Lisboa e Benfica,
A nação benfiquista, reconhecida pela sua paixão, lealdade e inigualável apoio, atravessa um momento que exige reflexão, análise crítica e, acima de tudo, coragem para enfrentar a realidade. Estamos a vivenciar uma fase em que a grandeza do nosso clube, construída ao longo de mais de um século de história, está a ser posta à prova pela falta de visão, competência e liderança.
É com profundo pesar e preocupação que observamos a gestão do Sr. Rui Costa e da sua direção. Um presidente que, apesar de ter sido um ícone nos relvados, tem falhado em traduzir essa experiência em sucesso administrativo. A equipa técnica, por sua vez, tem demonstrado uma incapacidade gritante de potencializar o plantel, tomando decisões que desafiam a lógica desportiva e que resultam em desempenhos abaixo do esperado.
Desde que assumiu a presidência, Rui Costa tem mostrado uma falta de estratégia clara e consistente. O clube tem vivido de decisões reativas, sem um plano de médio e longo prazo que nos devolva à posição de domínio no futebol português e à competitividade nas competições europeias. As promessas de renovação, a aposta na formação e uma gestão mais transparente têm sido, na prática, apenas palavras ocas, sem resultados palpáveis.
A continuidade de um treinador que está em conflito com os sócios e a massa adepta, a falta de critério nas contratações e a pouca valorização dos nossos talentos da formação são sintomas de uma direção desorientada. A falta de um projeto desportivo coerente é visível na forma como a equipa se apresenta em campo: desorganizada, sem identidade e com um futebol que está longe de honrar o manto sagrado.
Em campo, os problemas são igualmente evidentes. A equipa técnica, que deveria ser o pilar da nossa ambição, tem falhado na construção de uma equipa competitiva. As opções táticas são, frequentemente, questionáveis e a falta de capacidade para motivar os jogadores e criar um espírito de grupo vencedor tem sido patente. A ausência de um plano de jogo consistente e a incapacidade de fazer ajustes durante as partidas são aspetos que já não podem ser ignorados.
O Benfica não pode continuar a desperdiçar recursos em jogadores que não acrescentam valor. As contratações devem ser feitas com base em necessidades específicas da equipa, com um foco na qualidade e não na quantidade. A política de contratações deve estar alinhada com a estratégia de longo prazo, privilegiando jogadores que tragam valor desportivo e potencial retorno financeiro. É fundamental trazer para o clube uma equipa técnica competente, com experiência e uma visão moderna do futebol. Precisamos de um treinador que seja capaz de implementar um estilo de jogo que respeite a nossa identidade, mas que seja também adaptável às exigências do futebol atual.
É imperativo que, para salvarmos o Sport Lisboa e Benfica de um ciclo de mediocridade, sejam tomadas medidas urgentes e estruturais.
Caros Benfiquistas, o Sport Lisboa e Benfica é muito mais do que um clube. É uma instituição centenária, um símbolo de orgulho para milhões de pessoas. Não podemos permitir que a incompetência e a falta de visão nos afastem do nosso destino de grandeza. Está nas nossas mãos, enquanto sócios e adeptos, exigir mudanças, exigir resultados e lutar por um Benfica forte, vencedor e digno da sua história.
Apelo à Ação
Este é um momento de reflexão e de ação. Não podemos continuar a assistir passivamente ao declínio do nosso clube. Exigimos uma mudança de rumo, que volte a colocar o Benfica no caminho do sucesso e da glória. A atual direção tem falhado, e é tempo de considerar uma nova liderança, capaz de conduzir o Benfica de volta ao lugar que merece: no topo.
A todos os sócios e adeptos, deixo um apelo à união e ao espírito crítico. O Benfica somos todos nós, e é nosso dever exigir o melhor para o nosso clube. Que estejamos juntos na defesa do Sport Lisboa e Benfica, para que o futuro seja tão glorioso como o passado.
Com as mais cordiais saudações benfiquistas,
Com determinação e união, seremos capazes de resgatar a glória que nos pertence.
Viva o Benfica!
Domingos Caeiro
(sócio desde 1980)
É recorrente, no pensamento liberal dominante, a crítica a Karl Marx, por ter aventado a ideia de que, no sistema capitalista, se verifica uma tendência para a queda da taxa de lucro – a relação entre o lucro e o capital investido – ao longo do tempo, fruto da concorrência desenfreada entre os próprios capitalistas pela obtenção do máximo de benefícios. Essa mesma queda seria, na visão marxista, responsável pelas crises periódicas do desenvolvimento do capitalismo e poderia levar, a prazo, ao seu colapso. O principal recurso a que os capitalistas recorrem para contrariar tal tendência é o da desvalorização do trabalho, isto é, o aumento da exploração dos trabalhadores no processo produtivo pela compressão dos salários e a intensificação do ritmo e extensão dos horários de trabalho.
À época, ou seja, a segunda metade do século XIX, os padrões existentes da produção capitalista, levaram a um empobrecimento acentuado da classe trabalhadora, não só por via do aumento da exploração no processo de produção, como por efeito da grande quantidade de mão-de-obra disponível que desempenhava, neste contexto, um papel essencial, porque era este “exército industrial de reserva” que garantia um fluxo permanente de extração da mais-valia e de incremento do valor apropriado pelos capitalistas – ou seja, dos lucros – à custa da degradação da condição dos trabalhadores. Por isso, para Marx, o pauperismo não era um fator fortuito ou episódico do sistema capitalista, mas constitui uma sua característica sistémica.
Alegam os pensadores liberais que, ao longo da evolução do capitalismo, não só o processo de pauperização não se verificou – pelo menos de forma continuada – como houve uma efetiva melhoria das condições de vida da generalidade da população por via do próprio aumento da capacidade consumo e de produção. Criticam mesmo Marx, século e meio depois, por não ter previsto tal situação, rejeitando liminarmente todos os contributos que o autor germânico deu para a compreensão dos mecanismos de funcionamento do sistema capitalista. Reconhecendo, de então para cá, as enormes alterações do sistema produtivo, antes de mais pela gigantesca evolução tecnológica verificada, com o uso extensivo e intensivo de máquinas e equipamentos cada vez mais sofisticados, bem como a incorporação estratégica dos resultados do progresso científico no processo produtivo ao serviço da acumulação capitalista, escamoteiam convenientemente o contributo que a dura luta dos próprios trabalhadores e suas organizações tiveram na conquista dessas melhorias, fruto da progressiva consolidação de conceções de justiça social e de democracia na vida das sociedades.
Chegados aqui, e como tem sido amplamente demonstrado pelo conhecido economista francês, Thomas Piketty (cf. sobretudo, Le Capital au XXI siècle, Paris, Seuil, 2013), a tendência geral é para que se verifique uma efetiva baixa de valor da força de trabalho, se tivermos em conta a perda de poder de compra dos salários relativamente ao valor das mais-valias do capital. Com efeito, a enorme disparidade entre o aumento da riqueza nacional e a renda dos capitalistas agravou-se exponencialmente no último quartel do século XX, evolução sintetizada na fórmula avançada por este autor – r>g – que significa que o rendimento de capital é maior que a taxa de crescimento do rendimento nacional, sendo que r é o rendimento do capital – medindo os proventos anuais de um capital, qualquer que seja a forma jurídica que tomam esses rendimentos (lucros, juros, rendas, dividendos, royalties, mais-valias, etc) – e g a taxa de crescimento da economia, equivalente ao crescimento do rendimento nacional. Quanto mais a taxa de rentabilidade do capital exceder a taxa de crescimento da economia (r>g), mais a riqueza se acumula no topo e mais desigual é a sua repartição. Quando a taxa de crescimento da produção mundial se situava, no final da primeira década do século XXI, entre 1,5-2% em média e a taxa de rendimento puro do capital (antes dos impostos), 4,5-5% em média, com tendência para aumentar esta discrepância (2013, op. cit., p. 561), isso dá-nos bem a medida não só da extrema desigualdade na distribuição de riqueza da atual fase de exploração capitalista – que Piketty designa por “capitalismo patrimonial” – como para a grave distorção que induz no funcionamento das nossas sociedades. A tendência é, assim, para que os trabalhadores se apropriem de cada vez menos parcelas da riqueza produzida, isto é, fiquem mais pobres.
Num livro recente (Thomas Piketty, Natureza, Cultura e Desigualdades, Lisboa, Objectiva, 2024), o economista francês reitera as conclusões já avançadas, traçando um quadro sombrio do cenário mundial. Analisando a dimensão da parcela dos 50% mais pobres no total do rendimento nacional, essa percentagem limita-se aos 5% ou 6% nos países mais desiguais do mundo (por exemplo, a África do Sul) – ou seja, o rendimento médio desta população é apenas um décimo da média nacional – enquanto que nos países mais igualitários do norte da Europa se situa nos 20% ou 25% (2024, op. cit., p. 24). Se nos referirmos à distribuição da propriedade (património imobiliário, financeiro e empresarial) as disparidades ainda são maiores do que as relativas à distribuição do rendimento. Como refere Piketty, “Em termos de rendimento, os 10% mais ricos oscilam entre 25% e 70%, na Suécia e na África do Sul, respetivamente. Em termos de património, a percentagem dos 10% mais ricos situa-se sempre entre 60% e 90%. Por outro lado, enquanto a percentagem dos 50% mais pobres varia entre 5% e 25% no que toca ao rendimento, quando se trata de património, é sempre inferior a 5%.” (2024, op. cit., p. 27). Por exemplo, na América Latina, os 10% mais ricos detêm 77% do património das famílias, em comparação com 1% dos 50% mais pobres; nos EUA, a proporção é de 72% para 2% (cf. 2024, op. cit., pp. 28, 41). Se nos limitarmos ao capital empresarial e aos meios de produção, a concentração é quase absoluta: a quota parte dos 10% mais ricos é de 80%, 90% ou mais, enquanto a dos 50% mais pobres é praticamente inexistente (cf. 2024, op. cit., p. 30). Se nos períodos de pós-guerra do século XX (em especial no pós 2ª Guerra Mundial), foi possível verificar-se alguma atenuação das desigualdades existentes por intermédio da implementação dos mecanismos de proteção social do Estado-providência no mundo desenvolvido (sobretudo na relação entre os 10% mais ricos e os 40% das classes intermédias), a deriva neoliberal implementada a partir da década de 80 e agravada com o movimento da globalização económico-financeira na transição para o século XXI, veio firmar a concentração extrema da riqueza a que atualmente assistimos.
Acresce um ponto fundamental, sublinhado por Piketty; é que “as questões da desigualdade e dos desafios climáticos e ambientais estão intimamente ligados. Não é possível conceber uma solução credível para o desafio do aquecimento global sem uma redução drástica das desigualdades e uma nova era de evolução para uma maior igualdade.” (cf. 2024, op. cit., p. 91). Em termos globais, a América do Norte (EUA e Canadá) é responsável por mais de 55% das emissões de gases poluentes, seguida da Europa e da China. Enquanto a média global das emissões por cada um dos 7 mil milhões de humanos é de cerca de 6 toneladas de carbono, na América do Norte ascende a 54 toneladas (cf. 2024, op. cit., pp. 92-93). Da mesma forma, as desigualdades existentes relativamente aos grupos já referidos de rendimento e riqueza são flagrantes. Segundo os dados do Relatório sobre a Desigualdade Mundial 2022, na Europa, os 50% mais pobres, produzem cerca de 5 toneladas de carbono e os 10% mais ricos emitem cerca de 29 a 35 toneladas por pessoa, enquanto que nos EUA esse valor já ultrapassa as 70 toneladas (cf. 2024, op. cit., pp. 94-95).
Tendo em conta esta situação, o ministro das Finanças brasileiro, Fernando Haddad, conseguiu que a declaração final da reunião dos ministros das Finanças do G20, a ter lugar no Brasil a 18 e 19 de novembro próximo, incluísse princípios de colaboração internacional no domínio da justiça tributária, avançando com a proposta da cobrança de uma taxa mínima de 2% aos multimilionários, taxa essa que permitiria a arrecadação anual de 250 mil milhões de dólares destinada ao combate à pobreza e às alterações climáticas. Os EUA, que têm 800 dos cerca de 2700 multimilionários do mundo (segundo a Forbes) já veio rejeitar taxativamente tal intenção, ao declarar, pela voz da sua secretária do Tesouro, Janet Yellen, que “A política tributária é muito difícil de coordenar internacionalmente e não vemos necessidade, nem achamos desejável, tentar negociar um acordo internacional sobre isso.” (Público, 2/8/2024).
A este propósito, o jornalista António Rodrigues cita o relatório da Oxfam, Igualdade Climática: um planeta para os 99%, de 2019 (o último ano antes da pandemia) em que se constata que os 1% mais ricos do planeta gerou a mesma quantidade de emissões de carbono que os 5000 milhões de pobres. Aliás, as viagens de jatos privados destes super-ricos, de que se destaca Elon Musk, contribuem para mais de metade das emissões de CO2 do transporte aéreo. Para António Rodrigues, “Muitos ricos acreditam que vivem num planeta diferente. Ou então, por indiferença, incúria ou malvadez não se preocupam com a suja pegada que deixam no planeta, nem com a subida da temperatura, nem das águas. […] Ou seja, esses 77 milhões de pessoas financiaram o luxo das suas vidas com a morte de mais 1,3 milhões de pessoas por doenças associadas ao calor.” Para o jornalista, “Já não se trata de os ricos pagarem a crise, os ricos tornaram-se a crise. Para pô-lo de uma forma fácil de transmitir pelas redes sociais: os ricos são o cancro do planeta.” (Público, 2/8/2024). Não se podia ser mais claro.
Thomas Piketty conclui o estudo que temos citado com a seguinte afirmação: “a partir do momento em que as consequências climáticas se fizerem sentir de forma muito mais palpável na vida de todos, é possível que as atitudes em relação ao sistema económico se alterem muito rapidamente na Europa e no resto do mundo.” (cf. 2024, op. cit., p. 97). Será?
Hugo Fernandez
Em declarações transmitidas pela televisão, o mundo ficou atónito com a reação destemperada de Benjamin Netanyahu à decisão do TPI de acusar responsáveis governamentais israelitas pelas atrocidades cometidas em Gaza. Disse o primeiro-ministro de Israel coisas como estas: “Sr. procurador de Haia, com que audácia se atreve a comparar os monstros do Hamas aos militares das IDF, o exército mais moral do mundo? Com que audácia compara o Hamas, que matou, queimou, esfacelou, violou e raptou os nossos irmãos e irmãs, aos militares das IDF que travam uma guerra justa, sem paralelo, sem equivalente na sua moralidade? Como primeiro-ministro de Israel, rejeito com repugnância a comparação do procurador de Haia entre a democracia israelita e os assassinos em massa do Hamas. É o total distorcer da realidade.” De moralidade e de distorção da realidade, perante tudo o que se tem passado, estamos conversados. Do que aqui se trata, senhor Netanyahu, é de crime.
Não é Israel – e, portanto, o seu povo – que estão em julgamento. São os delitos de um governo de criminosos. E um governo de criminosos que não hesitam em perverter o sentido do “povo escolhido” do Deus hebraico, emprestando-lhe as tenebrosas ressonâncias históricas da superioridade racial dos alemães nazis – o povo dos senhores (o Herrenvolk) – ou, com efeitos igualmente dramáticos, todo o colonialismo europeu, justificado por uma suposta superioridade civilizacional sobre os povos dominados. Boaventura de Sousa Santos (cuja perspicácia analítica não parece ter sido beliscada pela sua patologia pessoal e suicídio cívico), chama-nos precisamente a atenção para este ponto: “o povo judeu tanto foi vítima da superioridade racial nazi como se transformou em carrasco do povo palestiniano ao assumir a forma de Estado sionista.”, concluindo, “A partir da sua imensa tragédia como vítima, foi criada a oportunidade para se transformar em agressor.” (Jornal de Letras, 6/3/2024).
Aliás, a criação do Estado de Israel resulta da dupla dinâmica da culpa germânica pelo extermínio dos judeus durante o nazismo e do oportunismo colonialista britânico no seu protetorado da Palestina, “resolvendo” o problema judeu sem qualquer consideração pelas populações que aí viviam. No entanto, nada foi resolvido. Nem a culpa, cuja reparação histórica exigiria a criação de um Estado judaico em território alemão – talvez na Baviera! – nem o inevitável conflito que resultou da implantação de Israel numa terra povoada pelos palestinianos. Como sublinha Sousa Santos, não deixa, aliás, de ser uma triste coincidência da história que 1948 tenha sido o ano que simultaneamente assistiu à proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, à criação do Estado israelita pelo sionista David Ben-Gurion e à institucionalização do apartheid na África do Sul. Ironicamente, 76 anos depois, pela mão, precisamente, da África do Sul, foi entregue uma queixa contra Israel no Tribunal Penal Internacional. Inverteram-se os papéis; o sistema de apartheid é agora triste realidade quotidiana de Israel nos territórios árabes ocupados, terrível reminiscência de um passado de segregação racial que os sul-africanos ultrapassaram desde 1994.
Em defesa do direito internacional, o procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI), Karim Khan, o advogado britânico de 54 anos ao serviço do TPI desde junho de 2021, solicitou a emissão de mandados de captura para os elementos mais responsáveis dos dois lados da contenda: Yahya Sinwar, dirigente do Hamas em Gaza, Ismail Haniyeh, líder do Hamas, que vive no Qatar, e Mohammed Deif, comandante da ala militar do Hamas; do lado de Israel, Benjamin Netanyahu, Primeiro-ministro e Yoav Gallant, ministro da Defesa. Sendo a eficácia desta ação judicial muito remota, o seu poder simbólico é enorme. Por isso, o antigo chefe do exército israelita e ministro do gabinete de guerra, Benny Gantz, não hesitou em qualificar esta decisão como “um crime de proporções épicas” (Público, 21/5/2024). Se há algo de tragicamente épico são as reiteradas violações do direito internacional por parte de Israel, os sucessivos crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio, consubstanciados em ataques intencionais contra a população civil, uso da fome como arma de guerra, sofrimento e tratamento cruel e desumano (até pela política de “terra queimada” seguida pelos israelitas e impossibilidade de prestação dos mais elementares cuidados médicos à população sitiada de Gaza), assassínio e extermínio. Um registo muito semelhante à acusação de extermínio, assassínio, tomada de reféns, violação e outros atos de violência sexual, por parte do Hamas (acrónimo de Movimento de Resistência Islâmica).
Rasgaram-se as vestes no repúdio pela comparação entre a atuação do Estado de Israel e do Hamas. Os americanos vieram, como sempre, na defesa dos seus aliados – a bem dizer, da sua colónia no Médio Oriente – procurando obnubilar as suas próprias origens enquanto nação e o extermínio que levaram a cabo das populações ameríndias indígenas.
Mas, como justamente refere o jornalista Manuel Carvalho, num artigo de opinião particularmente contundente, “não se trata de comparar o que se passa num lado e no outro. Trata-se apenas de notar que em matéria de direitos humanos ou do respeito pela lei internacional não pode haver dois pesos e duas medidas.” (Público, 30/5/2024). E acrescenta aquela que começa a ser uma evidência para a opinião pública internacional: “Como se o estatuto histórico de vítimas que cabe ao povo judeu lhe desse crédito ilimitado para matar inocentes. Como se não fosse evidente aos olhos de todos que Israel está cada vez mais próximo do Hamas, se não na forma, ao menos na substância.” Manuel Carvalho é taxativo na sua conclusão: “O que se passa nas areias de Gaza só nos autoriza a mesma certeza que tivemos em Srebrenica, em Bucha ou nos horrores de qualquer limpeza étnica, no Ruanda ou na Birmânia: Israel tornou-se um Estado terrorista que ameaça a paz mundial, os direitos humanos e os valores da democracia.” Nem mais!
Que o Hamas cometa as atrocidades que cometeu é indesculpável, mas previsível, já que se trata de uma organização terrorista; que seja o Estado de Israel a fazê-lo é incompreensível e intolerável. Como é incompreensível e intolerável a descoberta macabra, por funcionários da ONU, de centenas de corpos com sinais de tortura e evidências de terem sido enterrados vivos nas ruínas dos hospitais de Al Nasser e Al Shifa, ocupados pelas forças militares israelitas. Quando a força aérea israelita bombardeou, no passado dia 26 de maio, um acampamento de pessoas deslocadas em Barkasat, a noroeste de Rafah – zona gerida pelas Nações Unidas e que as próprias autoridades militares de Israel tinham indicado como segura – provocando 45 mortos, a maioria mulheres e crianças, alegando que este ataque se tinha destinado a atingir dois elementos do Hamas, como declarou um porta-voz do Exército israelita, estamos propriamente a falar de quê? Trata-se da mais brutal aplicação da lei de Talião, em que Israel, seguindo à risca a sua criminosa doutrina Dahiya, contra-ataca de forma indiscriminada e desproporcional com vista a dissuadir os seus inimigos.
Perante tal barbárie não podem deixar de nos vir à memória os massacres punitivos de civis inocentes em retaliação de atos de sabotagem e resistência perpetrados pelos nazis durante a 2ª Guerra Mundial: foi o caso da chacina das “Fossas Ardeatinas”, em Roma, a 24 de março de 1944, quando 335 reféns italianos são fuzilados (dez civis italianos por cada soldado alemão morto em um atentado da resistência italiana); em Lídice, na Checoslováquia, a 9 de junho de 1942, com a destruição total da vila, morte de todos os homens, e envio das mulheres e crianças para campos de concentração, em vingança pelo assassinato, pela resistência checa, de Reinhard Heydrich, governador representante do Protetorado da Boémia e Morávia, a 27 de maio desse ano; em Kragujevac na Jugoslávia, em outubro de 1941, quando perto de 3 mil pessoas, muitos deles alunos e professores do liceu são massacrados em represália pelos ataques dos resistentes sérvios na região, nos quais morreram 10 soldados alemães e 26 ficaram feridos, em Oradour-sur-Glane, na região francesa do Limusin, a 10 de junho de 1944, quando 190 homens, 246 mulheres e 207 crianças foram metralhadas e queimadas na igreja local (o maior massacre de civis cometido em França pelos nazis), em represália por ações da Resistência francesa (cf. Pierre Thibault, O Período das Ditaduras 1918-1947, Lisboa, Dom Quixote, 1981, pp. 257-8). Estes massacres seguiam a fórmula diabólica de Adolf Hitler para suprimir qualquer ato de insurgência antinazi: uma proporção de 100 prisioneiros executados por cada soldado alemão morto e 50 por cada soldado ferido. Se, para matar um elemento do Hamas, se acha legítimo dizimar dezenas de palestinianos civis, muitos deles crianças, faz todo o sentido a comparação.
O conflito em Gaza deu, aliás, o pretexto perfeito ao governo sionista de Benjamin Netanyahu para incentivar a ocupação ilegal de mais territórios palestinianos na Cisjordânia. As Nações Unidas tinham já alertado que 2023 tinha sido o ano com maior número de ataques registados de colonos israelitas contra palestinianos. Desde outubro, a ONU registou 848 ataques de colonos, em especial em zonas rurais. Pelo menos 480 palestinianos foram mortos e 5 mil ficaram feridos em ataques do exército israelita e colonos (no mesmo período, 10 israelitas foram mortos por palestinianos, 6 dos quais eram elementos das forças armadas israelitas (Visão, 23/5/2024). Com o atual governo de extrema-direita de Telavive, o movimento de colonização israelita da Palestina ganhou um enorme impulso, com mais recursos, mais armas e maior impunidade. Se, no princípio deste século, havia cerca de 200 mil colonos judeus instalados na Cisjordânia e Jerusalém Oriental, esse número é agora de perto de 740 mil.
Nos nossos dias, na chamada “Terra Santa”, do mar Mediterrâneo ao rio Jordão vivem cerca de 10 milhões de pessoas, metade judeus e igual número de palestinianos. Mas, em 1916, quando Lord Balfour, ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido (país que então administrava a Palestina) declarou que “O governo de sua Majestade vê favoravelmente o estabelecimento na Palestina de um lar nacional para o povo judeu.”, mais de 80% da população da Palestina era muçulmana, 10% cristã e apenas 7% judia (Visão, 30/5/2024). Concretizava-se, nessa ocasião, a aspiração suprema da Organização Sionista Mundial, criada no início do século XX, que propagou o mito que está na origem do conflito israelo-palestiniano: “Dar uma terra sem povo [Palestina] a um povo sem terra [os judeus].” Dificilmente a primeira destas asserções era verdadeira.
Em Gaza, o número de palestinianos mortos ultrapassa os 36 mil, na sequência dos ataques do Hamas a Israel que causaram 1.400 vítimas israelitas. Estamos perante a continuação da “Catástrofe” de 1948, quando as milícias sionistas atacaram e ocuparam 78% do território palestiniano, matando e expulsando mais de 750 mil palestinianos, na tentativa de levar a cabo o tresloucado desígnio da formação do “Grande Israel”, a pátria judia entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo. Como refere o historiador israelita Yuval Harari, “Após o ataque do Hamas a 7 de outubro de 2023, os apelos à destruição total da Faixa de Gaza e à morte e expulsão em massa tornaram-se rotineiros nos meios de comunicação israelitas e entre alguns membros da coligação no poder de Israel. No dia 7 de outubro, o vice-presidente do Parlamento, Nissim Vaturi, escreveu na rede social X: «Agora todos temos um objetivo comum — apagar a Faixa de Gaza da face da Terra.» No dia 1 de novembro, o ministro do Património de Israel, Amichai Eliyahu, publicou «O norte da Faixa de Gaza, mais bonito do que nunca. Tudo destruído e arrasado. É, simplesmente, um deleite.» E no dia 11 de novembro, o ministro da Agricultura, Avi Dichter, proclamou «estamos agora a lançar a Nakba [a “Catástrofe”] de Gaza».” (Expresso, 28/3/2024). Perante esta situação, José Pacheco Pereira é perentório: “o que Israel está a fazer é exterminar os palestinianos enquanto palestinianos, numa versão espelhar do que faz o Hamas e todos os grupos radicais, que querem matar judeus por serem judeus.” (Público, 18/5/2024).
A única solução para a resolução deste problema é a existência dos Estados independentes e soberanos de Israel e da Palestina, com o mesmo direito a viveram em segurança dentro de fronteiras definidas e internacionalmente reconhecidas. Como defende Yuval Harari, “O ideal é que cada lado desista da fantasia de se livrar do outro. Uma solução pacífica para o conflito é tecnicamente viável. Há terra suficiente para todos entre o Jordão e o Mediterrâneo para construir casas, escolas, estradas e hospitais para todos.” (Expresso, 28/3/2024). No mesmo sentido, um dos mais prestigiados escritores israelitas, David Grossman, declarou, numa entrevista recente à CNN, “Estamos no Inferno […]. Não podemos justificar o que fez o Hamas a 7 de outubro, embora tenhamos de entender que se os palestinianos não tiverem um lar, um país, nós também não teremos.” (Visão, 30/5/2024).
O Estado sionista de Israel (não confundir com o povo judeu, nem com qualquer posição antissemita) é, cada vez mais, um Estado pária, nas mãos de um bando de criminosos. Justifica-se, assim, o apelo de Boaventura de Sousa Santos: “no mundo de hoje, que ousa pensar em humanidade no seu todo e na igual dignidade da vida humana, todos somos Palestina.” (Jornal de Letras, 6/3/2024).
Hugo Fernandez