Após quase 20 anos, realizou-se em Lisboa entre 12 e 15 de janeiro, o 4º Congresso dos Jornalistas. Nas palavras da presidente da comissão organizadora, a editora de política da Antena 1, Maria de Flor Pedroso, os jornalistas são “uma classe que está deslaçada” (i, 6/1/17), pois, segundo afirmou, “muitos de nós não nos revemos em grande parte daquilo que vemos, ouvimos e lemos. É a sensação que temos ao conversar uns com os outros.”. Confessa mesmo que à precariedade dos vínculos profissionais e à desmotivação engendrada por essa e outras circunstâncias – destacando-se os efetivos constrangimentos ao tratamento de determinadas matérias – perde-se aquilo que considera ser a principal missão dos jornalistas: “não temos de dar às pessoas o que elas querem, temos de dar o que elas ainda não sabem que querem.” Para esta responsável, “o jornalismo tem de ser um serviço público, seja ele praticado onde for. Não vejo outra maneira de se fazer jornalismo, é um serviço à comunidade. Tem que ter independência, isenção e tem de incluir todas as partes.” É esta preocupação com a confirmação e cruzamento das informações veiculadas pelas múltiplas fontes existentes (até por meio das redes sociais) e a possibilidade de fazer o respetivo contraditório, que deveria estar na base da atividade jornalística, atividade que, subordinada a uma deontologia profissional e à sindicância de instancias reguladoras, se tem de diferenciar claramente do rumor, do comentário ou da pura e simples doutrinação.
Para além da concorrência digital, da quebra das receitas publicitárias, da contenção orçamental, não será esta a verdadeira razão para a tão propalada “crise do jornalismo”? Não estaremos sobretudo perante um conflito de ordem ético-profissional? É que a informação reduzida ao soundbyte de um título bombástico e às breaking news de um tempo acelerado como o nosso, pode ser do agrado de muitos, mas certamente será lacunar e pouco rigorosa, abrindo caminho à difusão de notícias falsas, à “pós-verdade” (não por acaso eleita palavra do ano 2016 pelo Oxford Dictionary) ou, como agora se diz, aos “factos alternativos” – com o impacto que as recentes eleições americanas demonstraram de forma tão evidente – e, no fundo, à pura e simples manipulação das consciências. A ausência da intermediação, avalizada para o efeito, entre as fontes e os destinatários, coloca não só os dados informativos à mercê das intenções mais obscuras do anonimato mediático, como inibe a busca jornalística de esclarecimentos adicionais sobre os assuntos vindos a lume e, inclusive, a investigação sobre a credibilidade das próprias fontes e da deteção de eventuais informações incompletas ou omitidas.
Acontece que, na era digital, não só toda a informação é tomada como verdadeira, como a sua difusão é imediata e viral. Neste contexto, Katharine Viner, diretora da Guardian News & Media, refere “Cada vez mais, o que conta como facto é um mero ponto de vista que alguém sente ser verdadeiro.”, concluindo que “o novo padrão de valor para demasiados órgãos de informação é a viralidade e não a veracidade ou a qualidade” (Courrier International, fevereiro, 2017). Como afirmou em 2014 Neetzan Zimmerman, especialista do site Gawker em histórias virais para atrair tráfego informático, “Hoje não é importante a notícia ser verdadeira (…). A única coisa que importa mesmo é se as pessoas vão lá clicar.” Insinuando que o significado noticioso dos factos acabou, este técnico conclui, “Se ninguém estiver a partilhar uma notícia, então, lá no fundo, ela não é notícia” (apud Katharine Viner, 2017). Bem-vindos, por isso, ao “admirável mundo novo” daquilo que já é designado por clickbait (“isco para cliques”).
O processo do fabrico e divulgação de notícias falsas é extraordinariamente simples e eficaz. Como demonstrou a investigação do jornalista Rui Antunes para a revista Visão (5/1/17), basta clonar sites de conhecidas agências noticiosas ou cadeias televisivas como a CNN, a NBC ou ABC, com ligeiras e impercetíveis alterações do URL – por exemplo, o endereço verdadeiro abcnews.com, aparece sob a designação abcnews.com.co – para veicular notícias absurdas como “Obama assina ordem executiva para proibir o Juramento de Lealdade nas escolas a nível nacional”, “Líder do ISIS apela aos muçulmanos americanos para votarem em Hillary Clinton”, “Papa Francisco choca o mundo ao apoiar Donald Trump para Presidente” ou “Obama assina ordem executiva para abrir investigação aos resultados das Eleições; nova votação prevista para 19 de dezembro”. Um caso particularmente chocante é a do site de extrema direita Breitbart News que, durante a campanha para as eleições norte-americanas, para comprovar a debilidade do estado de saúde da candidata Hillary Clinton – que em agosto teve de cancelar algumas iniciativas em virtude de uma pneumonia – publicou uma imagem sua em que aparece amparada por várias pessoas, foto afinal captada em fevereiro, após Hillary ter tropeçado ao subir umas escadas de acesso a um edifício; acontece que o responsável por esse site era Steve Bannon, atual conselheiro principal da administração Trump.
Acedidos por milhões de pessoas, estes sites ou redes sociais tornam-se mercados apetecíveis para os anunciantes, aumentando exponencialmente o seu valor comercial e garantindo as receitas necessárias para a sua perpetuação e disseminação (bem como a fortuna pessoal dos seus mentores). Sem filtros nem mediações dos profissionais da informação, e à distância de um simples clic, todo o género de atoardas passam por notícias credíveis. É que, como lembra o historiador britânico Timothy Garton Ash, “Se cada utilizador do Facebook fosse contabilizado como um habitante, o Facebook teria uma população maior que a da China. O que o Facebook fizer tem um impacto mais amplo do que qualquer coisa que seja feita pela França, e a Google mais do que a Alemanha.” (Ler, nº 144, inverno 2016/2017). Recorde-se que o Facebook, lançado apenas em 2004, tem presentemente mais de 1600 milhões de utilizadores em todo o mundo.
Este é, de resto, um fenómeno que está longe de ser uma novidade. Como ensinava aos seus jornalistas o barão norte-americano da imprensa William Randolph Hearst (1863-1951) – inspirador da personagem central do filme Citizen Kane, de Orson Wells – “Nunca aceitem que a verdade vos prive de uma boa história”. Na mesma linha, aliás, das eloquentes palavras do seu contemporâneo britânico Lord Alfred Harmsworth, 1º visconde de Northcliffe (1865-1922), influente empresário da comunicação e fundador do Daily Mail e do Daily Mirror: “Deus ensinou os homens a ler para que eu possa dizer-lhes quem devem amar, quem devem odiar e o que devem pensar” (Vicente Romano, A Formação da Mentalidade Submissa, Porto, Deriva, 2006, pp. 115 e 121-122). As únicas preocupações deste tipo de jornalismo são uma receção imediata e acrítica de mensagens elementares (dignas de um verdadeiro “reflexo condicionado” pavloviano) que permitam potenciar os níveis de audiência ou os valores das tiragens, fazendo do reporte de escândalos e fait divers, da fulanização da política, da estereotipização de ideias e comportamentos e do entretenimento soez, a razão de ser de uma eficácia comercial de origem e critérios informativos mais do que duvidosos, mas de assegurada rentabilidade financeira.
É a este propósito muito relevante a crónica de Pacheco Pereira “A ascensão da nova ignorância” no jornal Público (31/12/2016), que começa precisamente por sublinhar que “Entre os temas tabu dos nossos dias está a ignorância.” (Público, 31/12/2016), explicitando de seguida que “Ser ignorante é não ter os instrumentos para se mover no mundo que nos rodeia, ser sujeito mais do que ser ator, não conseguir atingir o empowerment que é suposto se poder ter para se atuar conforme as circunstâncias, de modo a crescer, ser capaz, viver uma vida qualificada e tirar dela uma experiência enriquecedora, controlando-se a si próprio tanto quanto é possível, e não menosprezando as condições para se ser feliz, «habitualmente» feliz.” Percebe-se que tal definição é conexa com o que habitualmente atribuímos a situações de exclusão social e pobreza, circunstâncias que não só impedem a desejável mobilidade social, como tendem a perpetuar e aprofundar a desigualdade entre os indivíduos. Percebe-se também que este estado de coisas resulta de uma enorme iliteracia informativa, indutora de mentalidades passivas e submissas. Nos dias de hoje, assistimos à emergência de um novo tipo de ignorância, que confunde o uso massificado e acrítico das novas tecnologias, com conhecimento (claro que os meios digitais se limitam a potenciar intenções de ordem político-ideológica). Como alega Pacheco Pereira, “A antiga ignorância assentava numa carência, numa falta, a nova assenta numa ilusão.”. A comunicação pessoal e o contacto humano são substituídos pelos mecanismos da realidade virtual. Por isso são hoje tão fundamentais no seio da juventude (daí o caráter dramático, para um adolescente, da privação do telemóvel). Mas por isso também são tão apetecíveis como instrumentos de poder, governando-se pelo Twitter, como faz o atual presidente norte-americano que, com mensagens curtas e diretas, dispensa qualquer tipo de reflexão fundamentada ou argumentação razoável para os seus desmandos. Os populismos políticos alimentam-se de expedientes tecnológicos como as redes sociais para difundirem todo o tipo de embustes e notícias falsas e infundadas, fazendo da ausência das mediações dos profissionais da comunicação, um meio de “ataque ao saber, ao conhecimento certificado, em nome de um igualitarismo da ignorância.”, segundo as palavras de Pacheco Pereira.
Mas não será precisamente esse o objetivo da ordem neoliberal e do que Sandra Monteiro define como o seu “programa de reconfiguração da sociedade, de que o campo mediático é apenas uma parte”? (Le Monde Diplomatique, ed. port., janeiro de 2017). Não será isso que decorre da mercantilização da comunicação, mais preocupada em publicitar os anunciantes e aumentar o lucro dos acionistas do que em levar a informação às pessoas. Não será mais fácil vender o agradável irrelevante do que o desagradável pertinente? Onde está a massa crítica necessária para fazer a destrinça entre o que é importante para os cidadãos saberem e o que apenas lhes soa bem? Entre aquilo que lhes permite ajuizar de forma consciente e informada e o artifício alienante ou, como refere o ex-diretor da Visão, João Garcia, “A velha questão, nunca por demais recordada, da diferença entre o interesse público e o interesse do público.” (Visão, 19/1/17)? Como obstar à lógica consumista da informação, reduzida a um mero “valor de troca” – àquilo que Sandra Monteiro caracteriza como “«tecno-mercadorias», ainda por cima de produção «low-cost»” – pela promoção de um “valor de uso” que induza a mobilização de saberes e permita a construção de um espírito crítico que se possa traduzir na melhoria da qualidade de vida dos indivíduos e das comunidades?
Comentando o trabalho jornalístico, o ex-inspetor laboral, João Fraga de Oliveira, chama a atenção para esta nova realidade de alienação mediática: “Muitos empregadores e seus representantes exigem aos trabalhadores, não apenas produtividade mas «produtibilidade», isto é, capacidade de serem não só produtivos mas «produzidos», «flexíveis», «adaptáveis», «moldáveis».” (Le Monde Diplomatique, ed. port., fevereiro de 2017). É certamente necessária uma nova “ecologia da comunicação” – conforme o título homónimo de uma das obras mais conhecidas do catedrático espanhol de estudos comunicacionais, Vicente Romano (Barcelona, 1993) – que salvaguarde o direito à informação como um serviço público de importância vital para as sociedades democráticas. E, como este especialista sublinha, “Necessitamos dos jornalistas quando as pessoas desejam saber com mais profundidade como é composto o nosso mundo (Romano, 2006: 145). Só assim poderemos estar em condições de confrontar o atual processo de globalização, entendido enquanto mundialização da economia e das consciências pela emergência do pensamento único neoliberal. Estarão os nossos jornalistas à altura desta tarefa?
Hugo Fernandez