No livro recentemente publicado Adults in the room: my battle with Europe’s deep establishment (Random House, 2017), Yanis Varoufakis, o ex-ministro das Finanças grego durante o primeiro semestre de 2015, usa expressões como “colónia da dívida”, “tortura orçamental” ou “golpe de Estado financeiro” por parte do Eurogrupo, Banco Central Europeu e FMI, para caraterizar a situação a que o seu país se viu sujeito. É aí relatado um episódio particularmente ilustrativo da deriva “pós-democrática” da União Europeia. Foi quando Wolfgang Schäuble, o superpoderoso ministro das Finanças alemão que obrigou à imposição das condições mais duras para o resgate da Grécia, confidenciou a Yanis Varoufakis que, se estivesse no seu lugar, não assinaria o memorando da troika: “Como patriota, não [assinaria]. É mau para o seu povo.” (Público, 12/6/2017). A conversa, que decorreu em Berlim no gabinete de Schäuble, demonstra bem o grau de desrespeito entre países e a permanente chantagem negocial presentes na Europa comunitária.
Não são de agora estas condições. As primeiras brechas na União Europeia aconteceram, nos inícios dos anos 90 do século XX, com o processo de ratificação do Tratado de Maastricht, com a vitória do “não” no referendo da Dinamarca que as ameaças dos eurocratas converteram em “sim” num segundo referendo, e a rejeição do Tratado Constitucional Europeu em 2005, nos plebiscitos da França e da Holanda, projeto de Constituição europeia que viria a ser reciclado pelo Tratado de Lisboa de 2007 (ainda em vigor), apesar do “não” da Irlanda, pressionada a reconverte-lo em “sim” num referendo posterior, por virtude e engenho do pensamento neoliberal dominante e das perversidades de uma construção europeia absolutista que insiste em prescindir de auscultar os cidadãos dos países que a compõem. É bem o “inverno da democracia”, sugestiva expressão que dá título à obra do politólogo francês Guy Hermet (L’hiver de la démocratie ou le nouveau regime, Paris, Armand Collin, 2007) e que reflete o estado acelerado de despolitização e alienação cívicas induzidas pela lógica eurocrata, com base no princípio cristalinamente enunciado pela politóloga espanhola Sonia Alonso no título de um working paper de 2014, “You can vote but you cannot choose” (cf. Democracy and the sovereign debt crisis in the Eurozone, Madrid, Instituto Carlos III – Juan March de Ciencias Sociales, Universidad Carlos III).
O que caracterizava a Europa e constituía a sua mais perene riqueza – a diversidade dos seus povos, culturas e nações e a democracia prevalecente – estão a ser postos em causa. Um povo europeu é algo de inexistente e a construção europeia, nas palavras do investigador do IPRI-UNL, José Pedro Teixeira Fernandes, tem seguido “basicamente a fórmula da integration by stealth («integração furtiva», ou seja feita nos bastidores) + despolitização.”, baseado num “consenso/apatia permissiva” que pressupunha um “contrato social” que entretanto se rompeu: “a perspetiva de um contínuo aumento de bem-estar económico e social para a generalidade da população europeia.” (José Pedro Teixeira Fernandes, “O futuro da construção europeia na era da globalização”, pp. 157-175, in André Freire (org.), O futuro da representação política democrática, Lisboa, Nova Vega, 2015, p. 172).
Na União Europeia assiste-se à proliferação de organismos e entidades não eleitas (Comissão Europeia, Banco Central Europeu, Eurogrupo), equipa de tecnocratas que governa por diktats, prescindindo de quaisquer procedimentos democráticos de legitimação e ponderação negocial. Com mais Estados-membros, desde o alargamento de 2004, mas um orçamento comunitário inferior, a União Europeia tornou-se um espaço de assimetrias e falta de solidariedade cada vez mais acentuada entre países grandes e pequenos, ricos e pobres, assim como de competição exacerbada e atropelo aos mais elementares direitos dos povos. Com as políticas públicas vergadas às imposições dos mercados e à “sacrossanta” liberdade de circulação dos capitais, assiste-se a uma permanente degradação dos salários, proteção social e qualidade de vida dos cidadãos – garantindo, desta maneira, baixos custos de produção – para, em contrapartida, possibilitar lucros faraónicos, a mais rematada especulação financeira e o florescimento dos “paraísos fiscais”, naquilo que já foi designado por “corrida para o fundo”, que as regras europeias insistem em promover.
No seu mais recente livro, Comment nous sommes devenus américains (Paris, Gallimard, 2017), Régis Debray deixa-nos, sobre este tema, reflexões importantes. Diz-nos o filósofo francês que “O culto europeísta constitui a primeira religião secular que não pôde dar aos seus fiéis um cartão de identidade, a menos que por tal tomemos uma nota do Monopoly.”, uma vez que “O mito da Europa murchou mais do que convinha por ter pressuposto que um texto de Constituição podia servir de ancoradouro, sem língua, memória nem lenda partilhadas.” e adverte-nos para as consequências desta situação: “Destruir um sentimento de pertença sem pôr um outro no seu lugar é sempre perigoso.” (Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, agosto de 2017). Até porque, como sublinha o economista João Rodrigues, “Já vai sendo tempo de atentar na resiliência do vínculo nacional, tanto mais forte quanto mais pulverizadas são outras identidades, e nos custos em termos de desenvolvimento que se pagam quando o controlo estrangeiro dos recursos passa um certo limiar, em Portugal franqueado desde a passagem do milénio.” (Público, 1/9/2017). Com efeito, este investigador do CES explica que “nunca houve e nunca haverá desenvolvimento sem o controlo nacional de instrumentos de política pública que garantam alguma margem de manobra aos Estados para modificarem as instituições nacionais, tornando-as mais inclusivas.”, uma vez que “Sem algum grau de fronteira económica, sem algum controlo político democrático sobre os capitais e sobre os fluxos comerciais ao nível dos Estados, não há responsabilidade política democrática que nos valha; nem segurança da que vale a pena, a social, a que é garantida pela provisão pública de recursos essenciais.” (ibid.)
Há duas décadas atrás, um outro filósofo político francês, Gérard Mairet, na introdução à obra clássica de Jean-Jacques Rousseau, Du contrat social (Paris, Le Livre de Poche, 1996), não hesitou em afirmar que, à luz do princípio da democracia enquanto soberania do povo, “L’Europe n’existe pas, entendons l’Europe comme union politique. Elle n’existe pas dans les choses et, même, les choses resistente fortemente sinon violemment à l’Europe.” (Mairet, 1996: 17), já que, “le réflexe identitaire si caractéristique, chez un peuple, de l’affirmation de sa souveraineté, est absolument disqualifié dans le cadre à la fois un et multiple de l’Europe.” Acrescenta Mairet, “Si l’Europe est aujourd’hui ce qu’elle est, c’est parce que ce qui a fait sa liberté et sa force – le particularisme historique des États et des nations – est justement ce qui cause aujourd’hui sa lâcheté et sa faiblesse.”, para concluir, “seule la démocratie repensée sur d’autres fondements peut sauver l’Europe du desastre.” (ibid.: 18). Mas é este “particularismo histórico” que constitui verdadeiramente a identidade europeia. Pressuposta no princípio da “nacionalidade europeia” garantida no artigo 8º do Tratado de Maastricht para todos os cidadãos dos respetivos estados membros, é hoje pouco mais que uma ficção, cada vez mais desprovida de conteúdo real. Até porque, como afirma Mairet – enunciando, enfim, a aporia da construção comunitária – “en partant du monde historique tel qu’il est, aucune démocratie européenne ne peut se construire si la condition de cette construction est le sacrifice des nations. Aucune nation n’est prête à un tel sacrifice, et je suppose que, au fond de lui-même, aucun individu n’est prêt à consentir ce sacrifice.” (ibid.: 20-21).
Impõe-se a dúvida: depois da crise das dívidas “soberanas” e dos resgates austeritários – com a consequente humilhação de países como a Grécia ou Portugal – como é possível falar de uma União Europeia? Ou será que, afinal, o tão proclamado “projeto europeu” se resume aos ditames do pensamento único neoliberal e aos negócios multimilionários de uma globalização sem regras? A Europa não passará, afinal, de um simples locus geográfico, limitada à mera condição de cabo mais ocidental da Ásia?
Apetece-nos invocar ainda um filósofo, desta vez o alemão Peter Sloterdijk, a que António Guerreiro, na sua habitual crónica semanal no caderno ípsilon do jornal Público faz referência, o qual, ao introduzir a ideia de “espaço interior do mundo” para caracterizar o atual processo de universalização do capitalismo globalizado, acaba por mostrar que o exterior “não é o que está para além: é o que está aqui mas é pobre e miserável.” (Público, 25/8/2017).
Hugo Fernandez