Hoje o Albardeiro é notícia. Passaram dez anos desde a sua estreia na blogosfera. Dez anos de um projeto que nasceu e se desenvolveu a duas mãos, numa parceria de preocupações comuns, de cumplicidades várias, mas, sobretudo de uma fraterna amizade que encontrou as suas raízes na vivência universitária do início dos anos oitenta do século XX e se manteve – já lá vai uma vida – numa partilha de sentimentos e convicções. Uma vivência feita de debate aceso de ideias e de crítica permanente a tudo o que considerávamos incorreto ou condenável. Foi assim que, no seio de um grupo mais alargado de amigos, crescemos e nos tornamos muito do que somos hoje. Com os anos e o embate quotidiano com uma sociedade cada vez mais injusta e hipócrita – e, em termos pessoais, com uma realidade profissional cada vez mais degradada e menos gratificante – mantivemos o mesmo espírito inconformado e o mesmo desejo de ver cumpridas as grandes promessas legadas pela instauração da democracia no nosso país.
Muitos foram os temas abordados ao longo destes anos nesta tribuna virtual de opinião. Em termos internacionais, vivemos o rescaldo do 11 de setembro de 2001 e o pesadelo da administração de George W. Bush que, tomando o mundo como refém, impôs a lógica maniqueísta do “ou estão connosco ou estão com os terroristas” que tão funestas consequências viria a ter a nível global, espalhando, sob o manto da “guerra preventiva”, o terror aos quatro cantos do planeta. A mesma lógica belicista que presidiu à invasão do Afeganistão em outubro de 2001 e do Iraque em março de 2003 e que, sob o manto do denominado “eixo do mal”, viria a consagrar o diktat do poder americano, doravante erigido em verdade universal.
O mesmo pensamento único que presidiu à emergência da chamada “terceira via”, que conluiou a governação de Blair, Schröder e Clinton com a lógica predadora da globalização neoliberal, a desregulação e desestatização das economias nacionais e com a generalizada degradação das condições de vida das populações, ainda que a coberto duma pretensa humanização da ortodoxia neoconservadora de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, naquilo que, à época, a revista francesa Nouvelle Observateur caracterizou como um "prolongamento vagamente social da revolução thatcherista". Foi este o caminho que conduziu à crise do subprime norte-americano de 2008 e à destruição da ordem social demoliberal que conhecíamos desde a II Guerra Mundial, à falência do Estado-Providência e ao colapso dos direitos sociais, bem como a uma regressão civilizacional de matriz dickensoniana, pelo efeito conjugado da extrema desvalorização da produção, do trabalho e das condições de existência da esmagadora maioria das pessoas e de uma hipervalorização da especulação financeira e da ganância exploradora de uns poucos, com a exponenciação obscena dos lucros e um brutal aprofundamento das desigualdades sociais daí decorrentes. Chegamos a um ponto em que a crença iluminista no progresso da humanidade acabou e em que nos limitamos a correr atrás do prejuízo, com a pungente certeza de que as gerações vindouras viverão pior do que aquelas que vão (sobre)vivendo nas atuais circunstâncias. Haverá pior cenário do que este?
A nível nacional confrontamo-nos com o interstício na democracia (na ausência de eleições) do governo populista e irresponsável de Santana Lopes, despudoradamente apadrinhado por Jorge Sampaio após a deserção de Durão Barroso para Bruxelas, e o longo consulado socratista que tão dramáticas consequências teve para o país. Implantava-se em Portugal uma versão retardada da famigerada “terceira via”, abrindo-se o caminho para a ofensiva neoliberal protagonizada por Passos Coelho. Apenas mudou o estilo e o grau. Se, para José Sócrates, as pessoas eram um enorme incómodo, para Passos Coelho elas são, pura e simplesmente, descartáveis. Só isso pode explicar a espantosa afirmação do líder parlamentar do PSD, Luís Montenegro, segundo o qual “A vida das pessoas não está melhor, mas o país está muito melhor”, como se um país não fosse os seus habitantes, como se a proclamada melhoria do país não tivesse obrigatoriamente que se refletir no bem-estar comum, como se houvesse outros portugueses a ter em consideração (afinal quem é que está melhor?), enfim, como se alguém estivesse a beneficiar de tudo isto! Com uma dívida pública a rondar os 130% do PIB (em 1999 não chegava aos 50%), que obriga a uma despesa anual com juros da ordem dos 7 mil milhões de euros – tanto quanto o orçamento da saúde ou da educação em Portugal –, com uma taxa de desemprego acima dos 16% (quando, no início do século XXI, era de pouco mais de 4%), com um défice orçamental, segundo consta, de 4% (quando, naquela época, era de 2,9%), com uma contração acumulada do PIB português, desde 2011, de 6,3%, com uma taxa de emigração a ultrapassar o recorde de 1966, estamos, concretamente, a falar de quê? Já agora, convém lembrar que, neste momento, o patamar da dívida pública se situa acima do pico histórico da bancarrota de 1892, que foi de 124%. Perante estes dados, o discurso da “responsabilidade” e a exaltação dos partidos do designado “arco da governabilidade” (PS/PSD/CDS) não poderão deixar de cair por terra. É que, como diz Viriato Soromenho-Marques, “Sem verdade e lucidez, a propaganda continuará a ser o maior inimigo da esperança.” (Visão, 30 de janeiro de 2014).
Por isso, alguns reclamam mesmo a guilhotina de Robespierre. Numa crónica do Financial Times de 16 de janeiro de 2014, afirma-se o seguinte: “É tempo de reconhecer a nossa derrota. Os banqueiros safaram-se. Eles frustraram os assaltos dos dirigentes políticos, dos reguladores e dos cidadãos em fúria, para a seguir se erguerem, indemnes, das ruínas fumegantes do grande crash de 2008. Alguns de nós pensámos que um choque desta dimensão podia contribuir para mudar as coisas: que parvos! (…) Países inteiros e empresas declararam falência. Chefes de Estado foram varridos como lixo e, por todo o mundo, trabalhadores perderam o seu emprego. Estamos todos um pouco mais pobres do que poderíamos estar. Mas em Wall Street e na City de Londres tudo continua como dantes, como se nada tivesse acontecido. (…) Nem o seu poder [dos banqueiros], nem o seu património foi afectado pela crise. Dou por mim a pensar onde andará a guilhotina de Robespierre.” (Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, fevereiro de 2014). Pensemos, por um momento, que as oitenta e cinco pessoas mais ricas do planeta possuem 1 bilião de libras esterlinas, tanto quanto detêm as 3,5 milhões de pessoas (cerca de metade dos habitantes do nosso planeta) mais pobres do mundo, segundo dados da ONG Oxfam sobre as desigualdades no mundo, divulgadas nas vésperas do Fórum Económico Mundial realizado em Davos em janeiro último (Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, fevereiro de 2014).
O Albardeiro faz dez anos. Só temos a força das palavras, é certo. Mas como dizia o filósofo e líder da resistência francesa durante a 2ª Guerra Mundial, Jacques Ellul, “La parole parle… donc en somme il se passe quelque chose”. Assim sendo, venham mais dez!
Hugo Fernandez