Do Hugo Fernandez para o ALBARDEIRO
Em democracia, a legitimidade da representação política assenta na soberania popular, expressa em eleições. O governante está vinculado a um mandato dos seus eleitores, sendo compelido, para assegurar a continuidade das suas funções, à satisfação das expectativas daqueles. O grau maior ou menor dessa satisfação marca, inexoravelmente, o destino do governante. Na formulação feliz do sociólogo Joaquim Aguiar, Esta saliência da função de representação em democracia ilustra a evidência prática de que em política ninguém tem razão sozinho. (Joaquim Aguiar, Democracia Pluralista, Partidos Políticos e Relação de Representação, Análise Social nº 100, Vol. XXIV, 1988, p. 59). A não ser assim, a acção política resume-se a um jogo de interesses, a uma feira de vaidades e a uma oportunidade de carreirismos partidários e de ambições pessoais desmedidas. Os cidadãos não serão mais do que pano de fundo no seio de uma engrenagem que, na verdade, pouco se preocupa com os seus interesses e aspirações. Convenhamos que qualquer semelhança entre este cenário e a democracia é mera coincidência.
É certo que, perante a demissão do primeiro-ministro, o Presidente da República não tem necessariamente que convocar eleições. O artigo 187 da Constituição da República Portuguesa apenas obriga a que a sua nomeação seja precedida da consulta aos partidos políticos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais. Pode o Presidente, todavia, considerar que tal situação põe em causa o regular funcionamento das instituições, estando, nestas circunstâncias, prevista a convocação de eleições.
Mas, muitas vezes, é precisamente no interstício que vai entre o que se pode ou não fazer segundo os limites da lei constitucional e aquilo que se deve ou não fazer, respeitando os imperativos da consciência democrática, que se consubstancia uma verdadeira ética da responsabilidade. E é bom que assim seja. Só desta forma é possível assegurar a participação cívica das populações e uma cidadania activa e empenhada que verdadeiramente enobreça a actividade política e a gestão da coisa pública. Se assim não for, e como justamente tem vindo a sublinhar, em várias ocasiões, o próprio Presidente da República, verificar-se-á um inevitável afastamento dos cidadãos e da política e um crescente ressentimento da população, traduzido na apatia cívica e na abstenção eleitoral. E isso, como sabe o Senhor Presidente e como a História ensina, não é bom para ninguém.
Com a excepção da morte trágica de Sá Carneiro, que seria substituído por Pinto Balsemão eleito em Congresso do seu partido, recorde-se num governo, aliás, efémero, a prática político-constitucional portuguesa tem justamente preferido, em situações análogas, auscultar a opinião popular. Embora não seja obrigada a isso. Com efeito, eleições autárquicas ou europeias não derrubam governos. Mas os seus resultados foram tidos sempre em conta na avaliação da situação política.
Foi o que aconteceu, por exemplo, aquando da demissão de António Guterres, na sequência do enorme desaire eleitoral nas últimas autárquicas, em que, tanto o PS, partido que sustentava o governo, como o PSD, que estava na oposição, exigiram e bem a dissolução da Assembleia da República e a convocação de eleições antecipadas. Desde que Portugal é uma democracia, tem sido este o procedimento adoptado.
Também é certo que, em conjunto, os partidos que suportam o actual governo, tiveram a maioria dos votos nas eleições legislativas de 2002 e que, normalmente, só em 2006 haveria lugar para novas eleições. Mas a existência de dois factores anómalos na presente legislatura, obrigam à reflexão cuidada e aconselham particular prudência no julgamento da situação. Com efeito, após uma pesadíssima derrota dos partidos da coligação governamental nas eleições europeias, é o próprio primeiro-ministro do actual governo (e com ele, necessariamente, todo o executivo) que pede a demissão e cria uma crise política. E isto independentemente do cargo, certamente honroso, que virá a desempenhar na União Europeia. Foi o principal partido da coligação no poder que provocou a crise, não a oposição.
Esta é a realidade com que nos confrontamos e as circunstâncias excepcionais verificadas aconselham a convocação de eleições antecipadas no mais curto prazo de tempo possível, nem que para isso tenha que ser nomeado um governo de gestão. Perante isto, o argumento da defesa intransigente de uma pretensa estabilidade governativa é falacioso e configura uma solução de gabinete que, aos olhos da opinião pública, está ferida de legitimidade. Desde logo, porque uma qualquer sucessão dinástica seria, em democracia, uma aberração. E porque, neste caso, as responsabilidades presidenciais não se resumiriam à nomeação de um novo primeiro-ministro, ficando Jorge Sampaio inevitavelmente refém do que viesse a acontecer. E a perspectiva que se avizinha, infelizmente, não augura nada de bom, tornando muito difícil qualquer justificação apresentada nesse sentido.
A actividade política não se pode reduzir a um confronto ou a um conluio conforme os casos entre aparelhos partidários, em que as soluções aparecem cozinhadas sem que o cidadão comum se possa pronunciar sobre o assunto. A ser assim, dificilmente se pode esperar qualquer empenhamento e participação das populações na vida democrática do país. Porque, como disse uma vendedora da Feira da Ladra ao Público (27/6/04), O povo não come isso e tem de haver eleições.