Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!
Terça-feira, 8 de Fevereiro de 2005
AS ALTERNATIVAS

"Il n'y a que les montagnes qui ne se rencontrent pas" ou "Alegrias entrudo, que a manham serà cinza".


 É a vez da escrita do Hugo Fernandez


A apresentação das listas de candidatos a deputados nas eleições legislativas que se avizinham, provocaram um sem número de comentários e acesos debates sobre a “crise do sistema” ou, por outras palavras, a crise da democracia. Compreende-se que assim seja. Que em algumas destas listas se encontram pérolas de pouca-vergonha e do mais puro oportunismo político, ou mesmo autênticas aberrações, ninguém poderá negá-lo. Mas a democracia estará, ela própria, verdadeiramente em causa? Pensamos que não. Felizmente nem todos são iguais e aqueles que vivem para a política e não da política ainda existem e exercem os cargos públicos com lisura e abnegação. Existem também vários partidos e movimentos políticos concorrentes, bem como muitos candidatos à escolha do eleitorado. Há, portanto, alternativas. Por outro lado, parece-nos garantido o funcionamento regular das instituições democráticas – ainda que com as limitações conhecidas e a necessidade evidente de aperfeiçoamentos – e salvaguardados os princípios e garantias essenciais da cidadania e da soberania popular. Dito desta maneira esquemática e simplista, o assunto parece encerrado. Obviamente não o está porque, de facto, a crise existe.


O que parece evidente é que os cidadãos estão afastados da política e alheados da vida social activa. O desinteresse generalizado da população e o pouco crédito, quando não aberta desconfiança, que merecem os partidos e os responsáveis políticos aí estão para o atestar. As expressões tão ouvidas “são todos iguais”, “andam todos ao mesmo”, “só querem é o poder”, “prometem muito, mas não fazem nada”, etc, são sintomas deste afastamento. Esta quebra de relação de confiança entre governantes e governados – que devia ser assegurada, ainda que com as limitações conhecidas, pelo sufrágio livre e universal dos cidadãos – arrisca-se, assim, a transformar-se numa descrença no próprio sistema democrático e nas virtudes da cidadania. As razões desta apatia encontram-se, no entanto, onde talvez menos se esperasse. A despolitização generalizada das populações é o resultado de décadas de induzido afastamento dos cidadãos da política e da sua reconversão à simples condição de consumidores, num mercado globalizado, desregulado e dominado pelo “fim das ideologias” da nova ordem mundial. Com efeito, o domínio avassalador dessa espécie de “teologia do mercado”, que transforma os cidadãos em consumidores passivos e o esvaziamento da vida colectiva num mundo anómico de globalização desenfreada, são o resultado de décadas de opções políticas tomadas com esse objectivo. Basta lembrarmo-nos das teorias do “fim das ideologias”, das repetidas proclamações da caducidade e absurdo da distinção entre esquerda e direita, das políticas economicistas do neo-liberalismo. E aqui, os órgãos de comunicação social têm particular responsabilidade que, não poucas vezes, alijam com mal disfarçada ingenuidade e assinalável cinismo. A futilização dos seus conteúdos, a falsa encenação da realidade, o privilegiar o fait-divers, o episódico e o anedótico, resultam numa acrescida alienação das populações. Também os media servem os interesses instalados e as suas lógicas de domínio.


Verificamos, assim, que ao longo destes anos, a concorrência desenfreada, a obsessão da defesa de interesses individuais, a busca, a todo o custo, do lucro imediato, tiveram como resultado a dissolução das sociedades, a diluição das identidades e de quaisquer preocupações colectivas, ameaçando transformar o nosso mundo no pesadelo hobbesiano da “luta de todos contra todos”, em que o homem se transforma no mais perigoso predador da sua própria espécie. Esta situação foi, não tenhamos dúvidas, o resultado de um processo que, ainda que contraditório e cheio de avanços e recuos – e nestes, para o caso português, há que destacar o nosso 25 de Abril – visou obter uma determinada ordenação social e política favorável à livre iniciativa da especulação e da ganância, que se desenvolveu sem entraves, face à passividade generalizada das populações. Estes factores de ordem global contribuíram para o alheamento dos cidadãos e a sua cumplicidade foi garantida, ao longo dos tempos, precisamente, pelos apóstolos da “crise do sistema”. Mas também é verdade que a demissão dos cidadãos da vida cívica decorre de uma efectiva desresponsabilização destes perante a colectividade onde vivem, mais do que por causa de quaisquer impedimentos ou entraves do dito “sistema”. A vivência da cidadania aprende-se e cultiva-se. O seu âmbito de acção pode ser imenso e as modalidades de que se reveste podem ser muito variadas. Há alternativas. Claro que uma atitude interventora exige esforço e empenhamento pessoal. Mas podendo a cidadania activa manifestar-se de formas tão díspares e corresponder efectivamente aos problemas e anseios mais concretos das populações, é difícil entender uma atitude tão passiva. Quantos de nós alguma vez reclamaram os seus direitos de consumidor por um serviço mal prestado, ou apresentaram uma sugestão ao Presidente da Junta de Freguesia do local de residência no sentido de melhorar a qualidade de vida de todos? Quantos de nós se empenharam na organização de uma actividade colectiva? Quantos de nós ousou sair da sua carapaça e se preocupou em debater com os seus vizinhos ou colegas de trabalho assuntos da actualidade ou problemas que dizem respeito a todos? Quantos de nós toma posição publicamente? Quantos de nós aceitaram eleger ou ser eleitos na escola, na empresa, no clube ou na colectividade? Quantos de nós são sindicalizados? Quantos de nós exercem o seu direito de voto? Quantos de nós dão a cara? É na resposta a estas e outras perguntas que a consciência individual pode começar a ir de encontro às preocupações colectivas.


A proclamada crise da democracia não será então verdadeiramente uma crise da cidadania? Uma coisa vai com a outra, dir-nos-ão. É certo. Mas o enfoque recai habitualmente na avaliação negativa dos representantes e pouco na responsabilidade cívica dos representados. Talvez aqui resida a chave da explicação do aparente paradoxo enunciado. A representação política democrática derivada do sufrágio livre e universal, permite aos cidadãos, ainda que de forma esporádica e não tão informada quanto seria desejável, obter uma resposta aos seus anseios e uma maior satisfação das suas necessidades. Permite, pelo menos, punir quem não merece e premiar aqueles que se acredita virão a desempenhar melhor as funções governativas. Apesar de todos os obstáculos e perversidades colocadas pelas lógicas, por vezes obscuras, dos interesses partidários, no fundo é disto que se trata: exercer de forma responsável e exigente a cidadania, para que ao eleger estejamos também, de certa forma, a ser eleitos. A responsabilidade da escolha é nossa e de mais ninguém. É essa a virtude da democracia. Como escreveu António Barreto recentemente no Público, “o que está em causa são os eleitores, não os eleitos”, já que o aspecto essencial dos sistemas eleitorais “é o poder conferido ao eleitor, não a qualidade do orgão eleito.” Chama-se aqui claramente a atenção para o papel essencial a desempenhar pelos cidadãos na defesa dos seus interesses e, por essa via, do condicionamento e rejeição das actuações menos próprias dos responsáveis políticos.


O reverso da medalha será, inexoravelmente, a degradação da vida política, cujos resultados são, infelizmente conhecidos; já os vimos, ao longo da nossa história, no mito sebastianista dos homens-providenciais, no 28 de Maio em Braga ou na ilusão tecnocrática do cavaquismo. O alheamento e despolitização das populações é sempre aproveitado por alguém. O condicionamento da liberdade dos cidadãos será, nesta eventualidade, seguramente, bem maior. Sendo as eleições um momento privilegiado para os cidadãos julgarem os governantes, o alheamento beneficiará sempre estes últimos e nunca aqueles. Desta forma, em vez de um aumento da exigência e de uma melhoria de qualidade de vida para todos, premiamos os inaptos e incompetentes; em vez de tentarmos resolver os problemas existentes, insistimos em “soluções” demagógicas e populistas; em vez de fazermos ouvir a nossa voz, calamo-nos e, cobardemente, resmungamos e lamentamo-nos a posteriori. Esvaziamos, assim, o verdadeiro significado de opinião pública, quedando-nos num patético papel de figurantes mal-humorados. Abdicamos de decidir (ainda que num sistema representativo, essa decisão seja a de escolher “quem vai decidir por nós”). A indiferença e a passividade, como vimos, pagam-se caro.


Mesmo – ou sobretudo! – em período de campanha eleitoral, vale a pena apreciar e discutir as propostas dos candidatos, avaliar a sua pertinência e coerência, as suas virtudes e fragilidades. Confrontada, assim, com a exigência da cidadania, a política pode tornar-se uma actividade verdadeiramente digna, para o bem de todos. Até porque, como refere a filósofa do direito e da política Simone Goyard-Fabre, “A marca da política está impressa com tanta força nas múltiplas figuras do mundo em que vivemos que o apolitismo se configura impossível.” Tal como em todas as actividades e circunstâncias da vida dos cidadãos, em todos os níveis de decisão em que é preciso escolher alguém, não devemos transigir com a incompetência e o oportunismo. Devemos escolher os mais competentes, os mais capazes para o desempenho das funções. Que a competência se sobreponha a todas as conveniências ou conivências. A crítica deve tomar sempre o lugar da condescendência. Temos assim todos que dar o nosso contributo para que, em cada momento em que sejamos chamados a escolher, escolhamos os melhores ou, quando estivermos em lugar de ser escolhidos, não pactuemos com o compadrio, o oportunismo e a mediocridade. Só esta cultura cívica de exigência pode dar um novo significado à participação política e à eleição dos deputados. Até porque, em todos os momentos, bem como nas próximas eleições, as alternativas existem. Como disse há dias Augusto Santos Silva, “Os medíocres só estão lá porque nós deixamos.” Não é?



publicado por albardeiro às 23:38
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2 comentários:
De Plancie Herica a 10 de Fevereiro de 2005 às 00:44
Subscrevo o conteúdo, discordo, em parte, da forma...

Há uma crise de cidadania?
Há!
Mas também há uma enorme crise de justiça. Se é verdade que 'os homens fazem as instituições', não caberia à Justiça, aos seus titulares, uma acção mais dura sobre quem prevarica nos cargos políticos?
O que é isso da responsabilidade política?
Desculpa-me algum 'umbiguismo': os desmandos no aeroporto de Beja não indiciam nenhum ilícito criminal? O nepotismo e a corrupção dos diversos titulares da coisa pública são responsabilidade política? -Como é que se pune essa (ir)responsabilidade? Pelo voto? Vetando e colocando no mesmo saco políticos honestos e 'bandalhos'? Que raio de procura da excelência vem a ser esta?

Há, de facto muita coisa a aperfeiçoar, mas também me parece que as palavras duras devem ser usadas -têm que o ser-... antes que se (des)gastem...

Um abraço,
Francisco Nunes


De Pitoresco a 9 de Fevereiro de 2005 às 22:20
Não existe, por parte dos governos, políticos e até instituições, interesse em “investir” nas relações de confiança com os cidadãos, nem da população, em exigir dos governantes tais “investimentos”. Cabe aos cidadãos "guardar" os princípios, as garantias e os valores da democracia para proteger a sociedade. Este desinteresse leva: ao laxismo do sistema; à mediocridade dos agentes; à insuficiência das prestações dos governantes, acarretando comodismo e descrença no próprio sistema democrático (o que é perigoso e é sempre um terreno aberto para os providenciais), gerando um círculo vicioso, facto este que impede as mínimas tentativas de mudanças que, provavelmente, seriam benéficas se postas em prática.


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