As sanções morreram, vivam as sanções! Este é o retrato recente da relação entre Portugal e a União Europeia. E como na sucessão monárquica, também aqui impera a arbitrariedade do poder absoluto e do “porque sim”. Em 2015, Portugal excedeu em 0,2% a meta de 3% prevista para o défice orçamental. O Governo do PSD/PP, responsável pela governação do país nesse período – e que se tinha comprometido oficialmente, pela voz da então ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, a apresentar um défice de apenas 2,7%, recorde-se – foi, de alguma forma, admoestado? Não, a censura recaiu sobre o atual executivo que, no Orçamento de Estado para 2016 (o primeiro do seu exercício) apresentado e aprovado por Bruxelas, se comprometeu a reduzir o défice para 2,2%.
As autoridades europeias ameaçaram o nosso país com a aplicação de sanções, punindo em 2016 Portugal pela execução orçamental anterior, quando se sabe que o défice para este ano será largamente inferior ao limite orçamental imposto pela União. Ou seja, o Governo de António Costa vê-se na iminência de ser castigado por cumprir as regras comunitárias. Isto faz algum sentido? Claro que não e mesmo Bruxelas deixou cair a aplicação de sanções, tal era o absurdo da situação, apesar do “desapontamento” do Presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem e das declarações do presidente do Bundesbank, Jens Weidmann que considerava justificada a punição por défice excessivo.
Ainda assim, como “moeda de troca”, Bruxelas ameaçou que parte dos fundos europeus podem ser cortados se o país não conseguir uma redução mais substancial do défice este ano, que deverá quedar-se nos 2,5% do PIB, conforme declarou o comissário europeu para os Assuntos Económicos e Financeiros, Pierre Moscovici, na conferência de imprensa do passado dia 27 de junho. Instou ainda as autoridades portuguesas a preparar medidas adicionais de consolidação orçamental de cerca de 450 milhões de euros, já em 2016, “o mais tardar até 15 de outubro”. Não se inibiu, porém, de apresentar desde logo algumas sugestões, como por exemplo o aumento do IVA sobre os produtos que beneficiam atualmente da taxa reduzida. Isto apesar da meta orçamental dos países da zona euro ter como limite os 3% (a própria Comissão Europeia estima que o resultado do défice para este ano seja de 2,7%, se nenhuma medida adicional for tomada) e do Governo português se ter comprometido com Bruxelas a reduzir o défice para 2,2%, conforme está inscrito no Orçamento de Estado deste ano, orçamento aceite pelas autoridades europeias, e que é inferior aos 2,5% exigidos. Isto faz algum sentido?
Faz, não do ponto de vista económico ou financeiro, mas do ponto de vista político. E, como no absolutismo monárquico, o devir fatalista das inevitabilidades tem que ser assegurado, custe o que custar. Sobretudo tem que se afastar liminarmente qualquer questionamento ou perspetiva de alternativa à atual ordem das coisas comunitária. O que Bruxelas não pode admitir é que, em Portugal, os partidos de esquerda se tenham entendido para governar e tenham vindo a restituir às pessoas algum rendimento, mas principalmente, o respeito e a dignidade que lhes foram retirados nos “anos de chumbo” austeritários da troika e dos seus feitores nacionais, Passos Coelho e Paulo Portas. Só que, sendo a democracia o reino do debate de ideias e das opções políticas, esta intenção tem que permanecer escondida sob o pesado manto das evidências eternas. “Porque sim”.
Mas, como o azeite, a verdade acaba sempre por vir ao de cima. E não foi preciso cruzar as fronteiras portuguesas para vermos confirmadas as suspeitas que havia. Em conferência de imprensa, no final de julho, sobre a possibilidade de aplicação de sanções por défice excessivo, e depois de apontar culpas ao Governo PS por estar a desviar a trajetória do país “daquilo que foi nos últimos anos”, a antiga governante Maria Luís Albuquerque saiu-se com esta espantosa afirmação: “Se eu ainda fosse ministra das Finanças, esta questão não se estaria a colocar”. Tem toda a razão! Insistiu mesmo, que em causa não estava o ano de 2015 (ainda da sua responsabilidade governativa), mas "O que está a ser feito nestes meses de governação" e "as dúvidas fundadas sobre as metas macroeconómicas e as reformas estruturais", com as quais “conseguimos merecer a confiança dos nossos parceiros europeus. Se tivéssemos continuado no Governo essa credibilidade não se perdia." Na sua possidónia sobranceria (ou mera leviandade política), Maria Luís Albuquerque não parece aperceber-se da enorme indiscrição revelada e que as próprias autoridades de Bruxelas procuraram preservar, reiterando oficialmente que o défice excessivo em causa se reportava ao ano de 2015 e não à atual legislatura.
Como se isto não bastasse, poucos dias depois, na festa do PSD/Madeira no Chão da Lagoa, o próprio dirigente social-democrata, Passos Coelho, reafirmava a mesma tese: "Ainda não perceberam que não é por causa do que fizemos no passado que se fala em sanções. É porque muitos dos governos na Europa hoje têm dúvidas sobre aquilo que se está a passar em Portugal, sobre as reformas importantes que estão a ser revertidas, sobre a maneira como estamos a andar para trás em vez de andar para a frente". Não se podia ser mais claro. Já todos percebemos que o que está em causa é aceitar a lógica neoliberal prevalecente no atual quadro comunitário, ou procurar outras soluções para uma União Europeia que, nas palavras de José Pacheco Pereira (este seguramente um social-democrata verdadeiro) “funciona exatamente ao contrário das intenções dos seus fundadores.” (Público, 23/7/2016). E permitir uma resposta inequívoca à interrogação de Rui Tavares: “é possível Portugal governado à esquerda e na Europa?” (Público, 29/7/2016).
Hugo Fernandez