De há uns anos a esta parte, o ensino tem sido o parente pobre das políticas públicas em Portugal. Invocado recorrentemente como uma prioridade do investimento nacional, falta-lhe sempre isso mesmo: o investimento. Tutelado por comissários políticos ou apaniguados eleitorais, o setor do ensino vive num estado de permanente indigência, pasto de ajustes de contas obscuros ou de amadorismos mais ou menos iluminados. Amadorismos esses que, esbarrando na premência de acudir às ingentes necessidades pedagógicas, se escudam no profissionalismo político da dilação das decisões, da prossecução inconfessada de propósitos distintos e na litania dos constrangimentos orçamentais.
Faz-se, então, de conta. E as autoridades governamentais exigem que apareça a omelete sem haver os respetivos ovos o que, está bem de ver, é algo que pertence ao reino da fantasia (invocamos, a este propósito, o famoso “milagre das rosas” medieval, quando o rei D. Dinis, informado sobre as despesas que acarretavam para o tesouro real as ações de caridade da rainha D. Isabel, a interpelou numa das suas caminhadas para distribuir alimento aos necessitados e, do seu regaço cheio de pão, saíram rosas: “São rosas, meu senhor, são rosas!”, terá exclamado, ainda surpresa, a piedosa monarca, doravante proclamada como “rainha santa”). Culpam-se, mesmo, os agentes educativos por não conseguirem lograr semelhante sortilégio, que cumpra o duplo desiderato de satisfazer as estatísticas – colocando-nos num lugar honroso nos rankings internacionais – e aquietar a consciência dos governantes.
A reprovação dos alunos é questão que ciclicamente vem à baila e que parece causar grande comoção nos nossos responsáveis. Duas ilações são, de imediato, retiradas: a primeira, a de que Portugal é dos países da Europa onde mais se chumba (ainda que estejamos acompanhados de países como a Espanha, a França, a Holanda ou o Luxemburgo); a segunda, a de que o chumbo não está associado a um ganho de aprendizagem. Sobre esta última constatação (já que, quanto à primeira inferência, dificilmente poderemos comparar contextos nacionais tão diversos), não podíamos estar mais de acordo.
Era então suposto, para ultrapassar semelhante problema, que as escolas fossem dotadas dos recursos humanos suficientes para fazerem o acompanhamento mais individualizado dos alunos, quer através de parcerias pedagógicas em sala de aula, de equipas de professores de apoio, da constituição de grupos diferenciados de aprendizagem, de salas de estudo assistidas, etc. Mas não foram. Em vez disso, os docentes, paulatinamente reduzidos, vêem-se a braços com horários cada vez mais sobrecarregados, com um crescente número de turmas atribuídas e com uma quantidade claramente excessiva de alunos por turma, condições que dificultam sobremaneira – quando não inviabilizam – a desejável diferenciação pedagógica e o sucesso educativo. Era necessário que houvesse uma revisão séria, ponderada e participada da matriz curricular e dos programas em vigor que permitisse ajuizar da sua exequibilidade e adequação às necessidades e capacidades dos discentes e às condições efetivamente disponíveis nas escolas. Que houvesse a preocupação de ajustar os planos de trabalho previstos à necessidade de implementação de metodologias ativas de aprendizagem, à realização de atividades experimentais, ao desenvolvimento de projetos didáticos diversificados, que promovessem o desenvolvimento cognitivo, emocional e cívico dos alunos, com vista à sua participação ativa e eficaz na sociedade. Mas não houve. Em vez disso, a lecionação rotineira de programas, por vezes, com dezenas de anos de existência, a prossecução de metas de aprendizagem irrealistas, a implementação de cargas horárias disciplinares insuficientes, circunstâncias geradoras de frustração, desmotivação e – lá está! – insucesso.
Encobre-se, então, o raciocínio elementar de que, se um aluno não consegue atingir os objetivos mínimos num número significativo de disciplinas, não poderá prosseguir para uma nova fase do seu plano de estudos. O que é de uma evidência cristalina – lamentável, é certo, mas óbvia! – passa por um dislate e torna-se motivo de escândalo, abatendo-se um verdadeiro anátema sobre quem o constata. Percebe-se a reação; é o próprio sistema educativo que assim é posto em causa, vindo ao de cima todas as carências de que enferma e todas as insuficiências das atuações governativas nesta área. Para justificar progressões académicas que mais não são do que expedientes administrativos, inventam-se teorias pedagógicas falaciosas como a “lógica de ciclo” (que apenas poderá ter algum cabimento em disciplinas de abordagem em espiral e não naquelas cujas aprendizagens têm uma natureza sequencial), admitindo-se como procedimento normal o absurdo dos alunos passarem de ano sem terem quaisquer condições para o efeito, na vã esperança de que possam adquirir os requisitos indispensáveis mais tarde (por obra e graça do espírito santo, certamente). Escamoteiam-se os problemas, iludem-se responsabilidades e finge-se o sucesso. Faz-se de conta.
A recente entrevista do ex-ministro da Educação, Eduardo Marçal Grilo, ao Jornal de Letras (27/4/2016), constitui mais um exemplo da mistificação que rodeia estas matérias. À pergunta do jornalista, “Mas ter um projeto individualizado para cada aluno é uma tarefa muito complicada em turmas com 30 alunos, não?”, o antigo governante reponde que, pelo contrário, “Não há nenhuma demonstração científica de que quanto mais pequena é a turma melhor é o aproveitamento”, elencando uma série de razões que o comprovam: “Depende muito do tipo de estudante, da qualidade do professor e da organização da sala de aula.” No entanto, estas que parecem ser asserções lógicas e razoáveis são, logo de seguida, postas em causa pelo próprio Marçal Grilo quando reconhece que “A única coisa que está provado relativamente às turmas grandes é o problema da disciplina e do ambiente que se vive na sala de aula. Normalmente, o facto de a turma ser maior obriga o professor a gastar mais tempo a tornar a turma gerível, o que significa que tem menos tempo para pôr os miúdos a pensar e para transmitir conhecimento.” Mas é disto mesmo que estamos a falar! O problema das turmas grandes, como qualquer docente sabe – daquele “saber de experiência feito” a que Camões se referia – é que o tempo que se perde a gerir a turma compromete sobremaneira a aprendizagem, os tais “pôr os miúdos a pensar” e “transmitir conhecimento” de que fala Marçal Grilo, pondo necessariamente em causa o aproveitamento dos alunos. A “demonstração científica” anteriormente invocada esbarra, afinal, na prova da realidade. Parece, isso sim, persistir um pensamento nas políticas públicas educativas essencialmente formatado para questões de ordem financeira e orçamental – aumentar o número de alunos por turma permite reduzir custos (pelo efeito conjugado da diminuição do número de turmas e, por essa via, de docentes necessários para a lecionação) – e não para preocupações de caráter pedagógico.
Com cada vez menos condições para exercerem condignamente a sua função, assaca-se aos professores e às escolas o ónus da situação. Exige-se-lhes o impossível. É que, para haver um sistema de ensino com qualidade, é preciso investir… e muito!
Hugo Fernandez