Qualquer sociedade depende de um aparato concetual que a organize e lhe dê sentido. Naturalmente que o conjunto de regras e princípios que sustentam a vida social é, por sua vez, enformado por essa mesma realidade, sem a qual, aliás, dificilmente poderiam existir (ou, em todo o caso, a sua existência e inteligibilidade situar-se-iam no horizonte mais ou menos longínquo da utopia). O que isto significa é que, num processo dialético, o normativo é co-constitutivo do social, ou seja, todo o social é normativo e todo o normativo é social. As leis fixam as relações da vida coletiva e o entendimento do mundo, não sendo aquelas mais do que a sua expressão normativizada, entendidas como necessariamente decorrentes da própria sociedade a que dizem respeito.
É essa regulação que, por outro lado, permite dar legitimidade ao poder político e transformá-lo em coerção autorizada (e não em violência discricionária). O direito não se deduz da força, mas do consentimento. Para a ordem democrática, a governação não pode deixar de assentar na lei, emanação de um corpo legislativo livremente eleito pelos cidadãos.O Estado democrático é, por isso, o império da lei e não o da satisfação de vontades e interesses individuais. O esforço desenvolvido de unificação concetual do direito – que tem nas Constituições a sua expressão cimeira – corresponde à necessidade de garantir a segurança das populações face aos poderes existentes. Esta segurança é dada pela “certeza jurídica”, que exige que a norma seja uma prescrição de carácter geral, formulada com a clareza, precisão e objetividade suficientes para que os seus destinatários possam ter pleno conhecimento das suas implicações e para que, em conformidade, tenham a liberdade de tomar as decisões que mais lhes convierem. O direito, remetido à racionalidade legal e consubstanciada nos princípios da generalidade e da abstração, produz um horizonte de previsibilidade das ações do poder e, desta forma, concorre também para legitimar o seu exercício. Assim se construiu o projeto político da modernidade.
Como refere a jurista Cristina Queiroz (1990: 136), “No quadro de um Estado constitucional, a precedência do direito significa, rigorosamente, a primazia da constituição na ordenação e conformação do processo político do poder.” Faz-se, por esta via, depender a legitimidade política da legalidade. O “culto da lei” que emergiu das revoluções liberais oitocentistas e a consagração das Constituições como dispositivo normativo central do Estado de Direito, tem esse desiderato essencial. A legitimidade ou validade das decisões políticas está dependente da sua conformidade com as regras e os parâmetros da ordem jurídica. A Constituição aparece assim como o “estatuto jurídico do político” (Gomes Canotilho, 1977: 39) ou a “escritura necessária do Poder” (Goyard-Fabre, 1999: 95).
Estando a ideia de legitimidade associado à ideia de legalidade como base de entendimento do Estado de Direito, temos, em todo o caso, que enfatizar a dimensão política que lhe está subjacente e considerar que a legitimidade decorre de um princípio essencialmente político, ainda que expresso em termos de normatividade jurídica. Até porque o poder pode ser legal sem ser legítimo. São as diferentes opções ideológicas e conceções axiológicas de moral e de justiça que determinam a estrutura jurídica que há-de legalizar (e conferir legitimidade) à atuação política. É o poder político, com a autoridade que lhe advém da sua capacidade de governação – e, portanto da sua aceitação e legitimação social – que habilita a legislar. É o poder político que elege a instância jurídica, por via do foro legislativo, como o mecanismo mais eficaz para estabelecer as regras de funcionamento da sociedade.
Podemos, assim, concluir que a natureza dos textos constitucionais, tornando por um lado “previsível” a política – isto é, estabelecendo constrangimentos jurídicos à ação política pela demarcação clara do que é legal e do que é ilegal e, por isso, merecedor de condenação – consagra, por outro lado, através do consenso dos cidadãos por intermédio dos mecanismos da representação política, a matriz de poder e de organização social em que vivemos. A inconstitucionalidade, isto é, a desconformidade com os parâmetros estabelecidos pela norma constitucional (ilegalidade), passa então a significar, em termos democráticos, ilegitimidade de atuação política. A Constituição, ao mesmo tempo que estabelece o poder, limita-o no seu exercício, sujeitando os governantes a uma regra que lhes é superior e que visa, acima de tudo, prevenir o arbítrio do poder.
Por isso, a sua questionação interpela os próprios fundamentos do Estado liberal-democrático, tornando ilegítima (do ponto de vista do normal funcionamento das instituições democráticas e não da constitucionalmente consagrada liberdade de opinião) a expressão “risco constitucional” com que o primeiro-ministro português Pedro Passos Coelho se referiu à necessidade do cumprimento dos preceitos legais constantes na lei fundamental do país. Não é nova esta tendência do atual Governo em agir fora do quadro legal estabelecido. É mesmo recordista nos chumbos do Tribunal Constitucional: abril de 2012, lei do enriquecimento ilícito; julho de 2012, primeiro grande revés ao Orçamento de Estado (OE) da coligação PSD/CDS-PP contra o corte dos subsídios da função pública; abril 2013, novo chumbo a quatro artigos do OE, como é o caso da suspensão do subsídio de férias dos funcionários públicos e dos pensionistas; maio de 2013, chumbo da lei que criava as “comunidades intermunicipais” (tão cara a Miguel Relvas!); agosto de 2013, chumbo do diploma da “requalificação” e do consequente despedimento de milhares de trabalhadores da função pública. Está ainda para analisar a constitucionalidade do horário de trabalho de 40 horas na função pública, corte nas pensões da CGA e tabela salarial única.
O Tribunal Constitucional serve justamente para controlar os devaneios voluntaristas de maiorias políticas conjunturais, obrigando qualquer governo a acatar as determinações da norma legislativa primordial, independentemente do juízo que sobre ela possamos fazer. A sua natureza radica precisamente na circunstância de não ser contingente, nem fruto da mera oportunidade política. Por isso, só um amplo consenso parlamentar pode rever a Constituição, com os limites que ela própria determina. Em qualquer caso, a subordinação do Estado à Constituição (e ao consequente controle jurisdicional do Tribunal Constitucional) é o princípio básico do sistema democrático, herdeiro dos preceitos liberais oitocentistas que se opunham à discricionariedade do poder monárquico absoluto. É essa a matriz da nossa modernidade política.
Será que as atuais autoridades portuguesas se recusam a aceitar este “estado de coisas” e propugnam uma subversão generalizada da ordem democrática? É pelo menos isso que se deduz da espantosa afirmação de Passos Coelho no encerramento da Universidade de Verão do PSD, em Castelo de Vide, no início de setembro, quando questionou, “Já alguém se lembrou de perguntar aos 900 mil desempregados de que lhes valeu a Constituição até hoje?”, atribuindo ao Tribunal Constitucional “a impossibilidade de lidar com a realidade”. Seguindo idêntica lógica (absurda) de pensamento, poderíamos questionar-nos sobre a utilidade da democracia que possibilita a eleição de dirigentes políticos tão medíocres e manhosos como os que temos. As reações a esta boutade demagógica não se fizeram esperar. A jornalista Ana Sá Lopes não hesita em considerar que as afirmações de Passos Coelho são “uma fantasia de golpe de Estado típica de qualquer república das bananas.” (I, 2/9/2013); José Pacheco Pereira chama-lhe “o «revolucionarismo» desleixado e impensado do Governo e do poder atual”, rejeitando “«estados de exceção» unilateralmente proclamados pelo poder executivo contra o poder judicial.” (Público, 7/9/2013). O eminente jurista Paulo Ferreira da Cunha fala da “banalização da inconstitucionalidade” e do reiterado desrespeito e desprezo a que o texto constitucional é votado, lembrando o dito de Heródoto de que “um Povo precisa de defender a sua Constituição como as muralhas da sua Cidade.” (Seara Nova, verão 2013).
De forma mais elaborada, Joaquim Aguiar tinha em tempos referido que “O real tornou-se inconstitucional”(Público, 6/1/2013), explicando esta inferência com a situação de exceção que o país atravessa. Referindo que “Não há dúvida que a falência de um Estado nacional é absolutamente inconstitucional.”, já que nenhuma Constituição o pode pressupor, Aguiar alega que “o que era possível numa dada circunstância pode ser alterado. Isso não é violar a Constituição, mas sim reinterpretar a Constituição de acordo com as possibilidades.” Parece esquecer este sociólogo que quem tem a autoridade democraticamente consagrada de interpretar ou “reinterpretar” a Constituição é precisamente o Tribunal Constitucional. Acresce que, para que se proceda a uma revisão do texto fundamental, há que encontrar amplos consensos políticos traduzidos em maiorias parlamentares qualificadas (como, de resto, prevê a Constituição) e não se quedar por meros voluntarismos que têm tanto de prepotente como de irresponsável.
A não ser que se defenda um paradigma de poder radicalmente diferente daquele que nos tem governado. Nesse caso, fazemos nossas as palavras de José Pacheco Pereira: “prefiro viver numa sociedade assente em contratos, confiança e boa fé, do que numa selvajaria em que impera a lei do mais forte.” (Público, 7/9/2013).
Hugo Fernandez