Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!
Segunda-feira, 4 de Fevereiro de 2013
GUERRA

Declaração de guerra”; foi assim que Manuel Alegre se referiu ao famigerado relatório do FMI tornado público nos inícios de janeiro (Diário de Notícias, 10/1/2013). Portugal, Rethinking the State – selected expenditure reform options é o título deste documento que, pura e simplesmente, propõe a aniquilação da nossa sociedade e nos lança na barbárie neoliberal. O retrocesso civilizacional aí plasmado denota uma total incompreensão do que é o chamado “modelo social europeu” e do que representam os valores da liberdade e da democracia pelos quais a humanidade se tem batido há séculos. Atira-nos para uma “guerra de todos contra todos” (“bellum omnia omnes”), própria de um “estado natural”, de que nos falava o filósofo inglês Thomas Hobbes na sua célebre obra de teoria política Leviathan de 1651, situação a que só o estabelecimento de um “pacto social” podia pôr cobro. Transforma as desigualdades existentes em ferretes estigmatizantes impeditivos de qualquer expetativa de consecução da igualdade de direitos e de oportunidades. Aprofunda as injustiças sociais a um ponto que julgávamos já não serem sequer pensáveis, quanto mais possíveis. Polariza de tal maneira as disparidades de condição, que destrói o próprio sentimento de pertença a uma mesma sociedade. Viola todos os direitos e anula qualquer veleidade de cidadania.

O que aí se propõe é uma autêntica catástrofe social. São medidas como o corte no abono de família a 280 mil beneficiários, que constituem o 3º escalão deste apoio (isto é, agregados familiares com rendimentos entre 5869 euros e 8803 euros por ano, pouco acima do salário mínimo, correspondentes a 20,5% do total dos apoios em 2011), que recebem por cada filho cerca de 26 euros por mês; corte no abono a jovens entre os 19 e 24 anos que frequentam a universidade; corte nas reformas para “estimular o envelhecimento ativo”; aumento da idade da reforma para 66 anos; cortes permanentes de 15% em todas as pensões (que, para quem aufere a partir de mil euros mensais, poderá chegar a uma redução nominal muito superior); redução da importância e durabilidade do subsídio de desemprego, alegando-se que oferece montantes “relativamente elevados” e tem uma duração “bastante longa”, o que, segundo o FMI, cria “um forte desincentivo ao regresso ao trabalho”; aumento das propinas universitárias (que já são das mais altas da Europa); aumento das taxas moderadoras na saúde de forma a cobrirem um terço da despesa com cuidados médicos já em 2014; eliminação de um dos escalões inferiores do IVA; despedimento até 140 mil funcionários públicos e, entre estes, de mais de 50 mil professores; redução do salário base dos funcionários públicos em 7% (sem contar com a redução de 5% atualmente em vigor) e eliminação dos subsídios de férias e de Natal nos anos em que a economia cresça abaixo dos 3% (meta que, dados os constrangimentos existentes, será impossível de alcançar por muitos anos);…até a supressão do subsídio de funeral para os mais carenciados!

Estamos assim perante um manifesto político-ideológico que visa aquilo que José Gil define como “uma sociedade em Regressão Sustentável” (Visão, 17/1/2013). É essa circunstância que explica, aliás, que o documento se centre nas três áreas fundamentais do Estado Social – Educação, Segurança Social e Saúde – e não haja nenhuma referência à regulação da atividade do setor empresarial público, institutos e fundações estatais (nomeadamente no controle das ineficácias, abusos e mordomias existentes), à renegociação das PPP ou ao combate à corrupção, elementos certamente essenciais à tão propalada “reforma do Estado”. Só a urgência da agenda ideológica pode também explicar a extrema fragilidade da análise e a manipulação grosseira de indicadores e realidades. O mesmo relatório que mereceu ao secretário de Estado, Carlos Moedas, o epíteto de “muito bem feito”, a fazer-nos duvidar não tanto da capacidade técnica do governante (que, apesar de tudo, supomos existir), mas da sua idoneidade ética, claramente posta em causa por uma fidelidade doutrinária acrítica – diríamos mesmo, acéfala! – a roçar a solicitude do fanatismo. Pelo contrário, apodando-o de “desonesto”, o reitor da Universidade de Lisboa, António Nóvoa, explica que os autores do relatório incorrem precisamente nos erros que na universidade os alunos são ensinados a evitar: “Partir de um preconceito, de uma teoria, e depois mobilizar os números para a defender.” (Público, 11/1/2012).

São os índices da qualidade do ensino público que se baseiam em valores desatualizados de uma década (e que contrariam os resultados dos estudos recentes do PISA), é o custo dos contratos de associação entre o Estado e os estabelecimentos de ensino particular que está distorcido (sendo mais onerosos ao Estado nos 2º e 3º ciclos, onde se concentram 80% dos contratos de associação – o custo médio por turma nos colégios privados é superior em quase 19 mil euros àquele registado nas escolas públicas – e apenas menos 50 euros por aluno no ensino secundário do que nas escolas públicas, conforme as conclusões do estudo encomendado pelo próprio governo a uma equipa de trabalho liderada pelo social-democrata Pedro Roseta), é a constatação leviana dos melhores resultados escolares obtidos pelos alunos do ensino privado relativamente aos do ensino público, esquecendo convenientemente a respetiva origem sócio-económica (indicador que o Ministério da Educação e Ciência português decidiu introduzir na apreciação dos próximos rankings das escolas, precisamente para que estes resultados tenham um mínimo de rigor comparativo), é a taxa real de inatividade dos reformados que não foi considerada e que está no topo da escala europeia (segundo um estudo da UE de 2012, cerca de 21,9% dos idosos portugueses entre 65 e 69 anos, trabalhavam em 2011), são os valores da despesa do Serviço Nacional de Saúde que estão inflacionados, pois apesar de se reconhecer que, em percentagem do PIB, está abaixo da média dos países desenvolvidos (7%), considera-se que deve ainda baixar 2% para se tornar sustentável (quando, de acordo com dados do Ministério da Saúde, a despesa com a saúde em Portugal já desceu para 5,6% em 2010, 5,2% em 2011 e estima-se 4,9% em 2012), é o salário médio dos funcionários públicos com um valor desproporcionado de 1800€ e o dos trabalhadores do privado reduzido para os 700€, quando os números oficiais portugueses situam o primeiro abaixo dos 1400€ e o segundo nos 900€ (esquecendo, em todo o caso, as habilitações que uns e outros possuem e o simples facto de cerca de 47% dos trabalhadores do Estado terem formação superior).

São as incongruências constantes, como aquela que se refere ao subsídio de desemprego que se reconhece ser muito menor em Portugal do que na Europa dos 15, mas que deve ser restringido, ao fim de 10 meses, para um valor entre os 335 e os 419 euros (ou seja, rendimentos que se situam abaixo do que é considerado o limiar da pobreza), ou quando se propõe mais fiscalização no RSI e, no próprio documento, se elogia a sua eficácia por comparação com os restantes países considerados. São os índices desatualizados da Segurança Social que se referem a 2010, escamoteando os efeitos de dois anos de duríssima austeridade e dos sucessivos cortes entretanto efetuados. São os índices de educação sistematicamente errados (no documento é calculada a despesa na educação em percentagem do PIB em 6,2%, em 2010, quando, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, nesse ano, não ultrapassava os 5% – abaixo, aliás, dos 5,5% da média europeia e mesmo dos países da OCDE – tendo, no ano passado, e devido aos cortes já realizados no setor, baixado para os 3,8%). São os cortes nas denominadas “prestações familiares” que, segundo dados do Eurostat, se situam em Portugal a um nível muito inferior ao conjunto dos países da UE (1,4% do PIB contra 2,3%), ou, como se alega, “um dos maiores crescimentos na despesa pública com a Saúde” que, no entanto, se cifra em 2728 dólares per capita (ajustado à paridade do poder de compra), muito longe da média dos países da OCDE com 3268 dólares (cf. Público, 11/1/2013 e Diário de Notícias,12/1/2013).

Este relatório configura, isso sim, um outro projeto de sociedade: absoluta mercantilização da vida, total desproteção social (com os benefícios a dependerem estritamente dos recursos individuais), anulação de qualquer vestígio de solidariedade, ausência do mínimo sentido de comunidade. Torna-se mais fácil ser despedido, torna-se mais fácil perder a habitação, torna-se mais fácil não conseguir ter acesso aos cuidados básicos de saúde, torna-se mais fácil cair na miséria, enfim, torna-se mais fácil dispensar as pessoas e prescindir do valor intrínseco da sua existência. O que nos traz a nova ordem é tão só o arbítrio, a discriminação, a imprevisibilidade, a insegurança e o medo. O medo do desemprego e da indigência. A sensação de que o futuro é incerto e de que ninguém está a salvo. Precisamente o medo que atormentou a vida de Hobbes com o despoletar da violenta guerra civil inglesa durante a década de quarenta do século XVII (e que este invocava relativamente ao seu próprio nascimento prematuro nas vésperas do ataque da Armada espanhola a Inglaterra). Justamente os fatores de violência e de fragilidade existencial que a história da humanidade foi contrariando ao encetar o longo “processo civilizacional” de que nos fala Norbert Elias e que permitiu, ao invés, a construção de um mundo cada vez mais seguro, próspero, justo e solidário.

Este relatório, sendo um programa político encomendado pelo governo português ao FMI, tem a participação e cumplicidade evidentes dos responsáveis nacionais. Mas a sua aplicação é ilegítima. Com efeito, a representação política democrática baseia-se na eleição livre de propostas publicamente expressas. Assenta na confiança entre governados e governantes selada por um programa político que, tendo sido maioritariamente sufragado, terá que ser cumprido. As eleições não são um cheque em branco para, uma vez no poder, os agentes políticos poderem fazer o que bem lhes apetece. A sua ação deve ser condicionada pela vontade popular que, através da vigilânciasobre a atividade governativa, exerce uma espécie de magistratura de influência entre períodos eleitorais e que, no final do mandato, castiga ou premeia o trabalho desenvolvido. Mas quando se quebra, de forma grosseira e propositada, o pacto estabelecido, quando se labora no sentido inverso do que foi inicialmente proposto, quando reiteradamente se escondem propósitos e se escamoteiam intenções, quando se quebra totalmente a confiança no governo do país, então a população tem direito a exprimir a sua vontade. Se um mandato se torna abusivo, deve ser interrompido. A tirania não faz parte das regras do jogo da democracia.

O que o governo pretende não é uma “refundação do Estado”, conforme o eufemismo de Passos Coelho, mas uma completa mudança de regime. Ora, não se pode aceitar a total subversão da sociedade portuguesa sem sujeitar as profundas mudanças preconizadas a sufrágio. Terão que ser os portugueses a aceitar ou rejeitar o que se propõe, a bem do sistema democrático e da coesão social. Caso contrário, como avisa Boaventura de Sousa Santos, “estaremos a entrar numa sociedade politicamente democrática mas socialmente fascista, na medida em que as classes sociais mais vulneráveis (a grande maioria da população) verão as suas expetativas de vida dependerem da benevolência e, portanto, do direito de veto de grupos sociais minoritários mas poderosos.”, concluindo que “O fascismo que emerge não é político, é social e coexiste com uma democracia de baixíssima intensidade.” (Visão, 10/1/2013).





Hugo Fernandez





publicado por albardeiro às 22:51
link do post | comentar | favorito

pesquisar
 
Fevereiro 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3

4
5
6
7
8
9
10

12
13
14
15
16
17

18
19
21
22
23
24

25
26
27
28
29


posts recentes

Seminário em Alenquer - A...

O MOMENTO DA VERDADE (em ...

ROLO COMPRESSOR

Reflexão sobre o artigo d...

AS PERGUNTAS

Valorizar os servidores d...

MÍNIMOS

Como será a educação daqu...

EXCESSIVO

DEMOCRACIA

arquivos

Fevereiro 2024

Janeiro 2024

Outubro 2023

Julho 2023

Junho 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Outubro 2020

Julho 2020

Junho 2020

Abril 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Janeiro 2019

Novembro 2018

Setembro 2018

Julho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Janeiro 2016

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Abril 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Setembro 2008

Julho 2008

Junho 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

Agosto 2004

Julho 2004

Junho 2004

Maio 2004

Abril 2004

Março 2004

blogs SAPO
subscrever feeds
Em destaque no SAPO Blogs
pub