A implantação da República em Portugal em 1910 foi uma das poucas vezes em que o nosso país foi pioneiro. De facto, a par da França e do caso sempre sui generis da Suíça, contrariou a tendência da maioria dos países europeus cujas monarquias apenas foram derrubadas na sequência da I Guerra Mundial. Que isso não significou a edificação do paraíso terrestre em terras lusastodos o sabemos. Mas pelo menos houve um problema que foi solucionado – a questão da monarquia. Ou melhor, do “princípio monárquico” e de tudo o que ele simbolizava: caráter não eletivo e hereditário do poder, perenidade dinástica, exclusividade e privilégio, arbitrariedade do nascimento e distinção social. A ética republicana substituiu a apologética sacramental e patrimonialista daquele indivíduo feito rei que aparece como ungidopelos desígnios da providência e bafejado pelo acaso do nascimento (e pela ditosa circunstância de ser o primeiro na linha sucessória), pelo muito terreno “espírito de missão” no cumprimento plebiscitado e transitório dos cargos públicos ao serviço do “bem comum”.
A questão da República ultrapassa, assim, a simples titularidade da chefia do Estado. O que está em causa é a natureza dessa posição cimeira – o estatuto do privilégio – e uma lógica de elegibilidade e transitoriedade na ocupação dos cargos públicos – assente numa consideração igualitária de cidadania quer dos governantes, quer dos governados – que a monarquia rejeita, estribada na permanência vitalícia e hereditária do poder real e na distinção do estatuto cívico do monarca face aos seus concidadãos (“pondere-se a indignidade de uma instituição que se baseia no acto humilhante de um povo ser herdado como logradouro de uma família”, denunciava Teófilo Braga). Tal situação de privilégio, contraditória com a própria ideia de direito, cria um universo discriminatório que a consciência social republicana vai rejeitar, baseada no caráter transitório – como condição indispensável do seu aperfeiçoamento – e necessariamente representacional – como condição indispensável da sua justeza – do poder político, a partir do sufrágio popular e da igualdade de estatuto e consideração social de todos os cidadãos. Justamente a oposição fundamental entre “o princípio avançado da eleição e o princípio reacionário da hereditariedade”, invocado já em 1900, no parlamento português, pelo então deputado Afonso Costa.
Uma coisa é certa; há nos regimes republicanos – na aceção considerada – um elemento democrático e igualitário de base que qualquer lógica sucessória e dinástica, estribada na matriz aristocrática e exclusivistada hereditariedade monárquica, jamais poderá plenamente assumir. É por isso que, em defesa da virtude republicana, Saint-Just enunciava assim as três infâmias com as quais aquela não poderia transigir: “a primeira, são os reis; a segunda, é obedecer-lhes; a terceira é baixar as armas se, em algum lugar, existir um senhor e um escravo”. Até porque a salvaguarda da soberania popular pelo sufrágio, divisão de poderes e respeito constitucional pelas liberdades e garantias, presentes na generalidade das monarquias europeias realmente existentes, acaba por dar razão à alegação do jurista Paulo Ferreira da Cunha segundo o qual “uma monarquia é, afinal, tanto melhor quanto menos monárquica for: com reis com menos poderes, com aristocracias em vias de desaparecimento, etc.”
Ora se isto é assim em relação aos países democráticos, muito mais incompreensível se torne esta lógica de poder e de organização coletiva em sociedades que se assumem como socialistas ou comunistas, isto é, sociedades que alguém já caracterizou como de “democracia avançada”. Não podem, por isso, deixar de chocar os últimos acontecimentos na Coreia do Norte, ou melhor, República Democrática Popular da Coreia. Como noticiava o jornal Público no passado dia 29 de dezembro a propósito do funeral de Kim Jong-il e a sucessão do seu filho Kim Jong-un no governo do país (neto, por sua vez, do fundador do regime norte-coreano Kim Il-sung), “Ontem foi o adeus ao pai, hoje é a vénia ao filho”. Retoma-se, assim, o conhecido e velho brocardo “rei morto, rei posto”. Mas, nestas circunstâncias, que sentido isto faz?
O despropósito vai ao ponto de se assistirem a reverências dignas do mais puro absolutismo monárquico de há séculos. Se o pai era o “Querido Líder”, o filho é mimoseado com epítetos como “Grande Sucessor”, “Líder Espantoso” ou “General Respeitado” (ele, que nunca cumpriu o serviço militar!). Acresce a escatologia messiânica e um barroquismo metafísico que são, a todos os títulos, inacreditáveis numa sociedade que se assume como comunista e, portanto, supostamente desalienada de religiosidade. Reza a lenda que, ao nascer, Kim Jong-il foi brindado com um duplo arco-íris de regozijo e que, no dia do seu enterro, a natureza se despediu com uma queda de neve incessante, como demonstração da sua tristeza. Já antes, na sequência da sua morte a 17 de Dezembro – após um muito mundano ataque cardíaco fulminante numa viagem de comboio – as andorinhas tinham-se concentrado nas árvores em redor da sua urna em câmara ardente no mausoléu Kumsusan em Pyongyang, hirtas e silenciosas, em sinal de respeito. E o mais espantoso é que estas notícias foram divulgadas pela agência oficial de notícias do país, a KCNA, que comentou: “Parece que o céu sabe perfeitamente que muita neve caiu [sobre Kim Jong-il] nos combates incessantes que travou pela felicidade do seu povo” (Público, 29/12/11). Também já apelidam Kim Jong-un de “Sol do século XXI”, a lembrar-nos outros monarcas radiosos de antanho.
Isto numa auto-denominada república democrática popular é um absurdo total, já que uma república não pode tolerar o domínio de uma dinastia autocrática, uma república democrática dificilmente pode aceitar a existência de 200 mil presos políticos ou a tortura e eliminação sistemática dos opositores e uma república democrática popular não se compadece com um terço dos seus habitantes a viver abaixo do limiar da pobreza. Se a Coreia do Norte é exemplo – e outros, infelizmente haverá –, não será certamente do ideal comunista de justiça e de igualdade de que falava Karl Marx (e que outros, posteriormente, tanto adulteraram). Interroguemo-nos pois, com o filósofo Sousa Dias, “De que fracasso é o comunismo o nome?”
Hugo Fernandez