Há afirmações que, embora com pesos e propósitos diferentes, têm o dom de nos indignar. Infelizmente a escolha vai sendo vasta. Estes são apenas dois exemplos que recolhemos nos tempos mais recentes. Optamos por dividi-las em duas categorias, conforme as declarações em causa revelem ignorância ou desfaçatez. Senão, vejamos.
A primeira, publicada na revista Focus da última semana de julho, numa pequena peça intitulada “Fome na Somália”, comenta esta tragédia da seguinte forma: “Inacreditável como neste século XXI ainda ocorrem desastres humanitários, como a ajuda sempre chega tarde, como nunca se consegue prever o que vai suceder. Impensável que se deixe tanta gente a morrer.” E, no entanto, isto não só é pensável como, de facto…há milhares de pessoas a morrer de fome. O que é mais notável nesta afirmação é que candidamente se esquecem os efeitos espoliadores de um colonialismo secular, que se estenderam muito para além das respectivas independências nacionais, e do subdesenvolvimento endémico a que, desde então, estes países têm estado sujeitos. Esquece-se uma ordem mundial profundamente desigualitária e uma divisão internacional de recursos e de riquezas muitíssimo assimétrica, reservando para usufruto de alguns o que se retira à maior parte da humanidade. Esquece-se uma racionalidade económica globalizada que remete, de forma cruel, regiões inteiras – especialmente se forem desprovidas dos cobiçados hidrocarbonetos – para a condição daquilo que o antropólogo francês Marc Augé define como “não-lugares”. Na lógica da ordem neoliberal vigente, a Somália verdadeiramente não existe. Ou se existe, é apenas pelo incómodo que a pirataria marítima daí procedente causa no gigantesco fluxo do comércio mundial. Combate-se então o efeito, mas deixa-se incólume a causa.
É verdade que se deve lutar para que, em tais circunstâncias, a ajuda seja o mais pronta e eficaz possível. Mas estes desastres humanitários estão longe de ser “inacreditáveis” neste século XXI e, à semelhança do que aconteceu num passado recente (a Somália viveu uma situação idêntica em 1991-1992 – tendo então morrido perto do meio milhão de pessoas –, tal como sucedeu na Etiópia em 1999-2000 e 2005-2006, no Quénia em 2000-2001 ou no Sudão em 1998), suceder-se-ão a um ritmo cada vez mais acelerado e serão cada vez mais generalizados. Porque, verdadeiramente, não há interesse em evitá-los. O pedido de ajuda financeira na ordem dos 1100 milhões de euros (1600 milhões de dólares) para o Programa Alimentar Mundial dirigido pelo secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, aos líderes mundiais é um sinal inequívoco desta indiferença. Basta pensarmos que o orçamento anual da União Europeia se eleva a cerca de 134 mil milhões de euros – um montante impressionante em termos absolutos, mas que representa apenas 1% da riqueza económica criada anualmente pelos países europeus – ou que o orçamento anual ordinário do Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América (sem contar com as generosas dotações do Congresso, em caso de conflito militar, que multiplicam exponencialmente este valor) atinge os 425 mil milhões de dólares ou ainda que a capitalização bolsista de cada uma das duas mais valiosas empresas do mundo – a Exxon-Mobil e a Apple – supera os 300 mil milhões de dólares. Comparado com estes montantes, o que se pede para eliminar a fome no mundo não passa de uma ninharia.
A segunda afirmação é a do atual Ministro das Finanças português, Vítor Gaspar, na Assembleia da República, que incluiremos na categoria da “desfaçatez”. Diz o governante que “O capitalista e o trabalhador não têm uma realidade social na economia do século XXI, se é que a tiveram na economia do século XIX.” Para além da óbvia boutade na referência à centúria de oitocentos e de, nos dias de hoje, perto de 70% do rendimento nacional ser apropriado precisamente pelo capital, sendo que as despesas salariais com os trabalhadores não representam, em média, mais do que 15% dos custos de produção, Vítor Gaspar certamente terá muito que refletir na declaração certeira do multimilionário Warren Buffet, um dos donos da agência de rating Moody’s, segundo o qual “Isto é uma luta de classes e a minha, a dos ricos, está a ganhar.” (Courrier Internacional, Maio 2011).
Hugo Fernandez