Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!
Quinta-feira, 24 de Junho de 2010
A CRISE

Ao longo de grande parte do século XX, o confronto entre a ordem sócio-económica capitalista e a ordem sócio-económica socialista preencheram o imaginário civilizacional mundial e alimentaram os inúmeros episódios da Guerra Fria. A alternativa entre o “mercado livre” e a “planificação estatal” – com todas as imprecisões destas expressões e as variadas formas que as realidades a que aquelas se reportam apresentaram – eram assumidas aos mais diferentes níveis e esgrimidas no confronto ideológico entre os dois blocos. A alternativa socialista tinha indiscutivelmente constituído o maior desafio que a ordem capitalista alguma vez tinha enfrentado. Mas eis que na última década do século passado o denominado “socialismo realmente existente” claudicou com estrondo. Perante o desespero de alguns, o espanto de muitos e o gáudio de outros tantos, o modelo capitalista parecia ter levado a melhor. O triunfo era de tal maneira generalizado e esmagador que houve quem se apressasse a proclamar o “fim da História”. Inebriado com tão retumbante confirmação dos postulados neoliberais dominantes, o célebre funcionário do Departamento de Estado norte-americano, Francis Fukuyama, afiançava com indisfarçável cinismo – e assinalável impostura demagógica! – que o capitalismo acabava afinal por cumprir o próprio sonho do… socialismo: “Seguramente, o problema das classes foi resolvido com sucesso no Ocidente.[...] o igualitarismo dos Estados Unidos da América representa, no fundo, a realização da sociedade sem classes concebida por Marx” (“La fin de l’histoire?”, Le Commentaire, nº 47, Outono de 1989, p. 461). Ou como proclamou um outro corifeu do neoliberalismo, Alain Minc, “Só mais mercado pode gerar mais igualdade” (La machine égalitaire, Paris, Grasset, 1987, p. 6).


Com efeito, o “mercado livre” vencia em toda a linha e apresentava o modelo económico mais eficiente. No fundo, era este o segredo do seu êxito. Pese embora as profundas desigualdades existentes, não só satisfazia as necessidades da generalidade da população, como permitia que esta acedesse a níveis de prosperidade superiores às apresentadas pelo modelo antagónico. Mais do que isso. Conseguia criar e manter expectativas generalizadas de consumo e de promoção social – ainda que largamente ilusórias – que satisfaziam a maior parte das ambições individuais e colectivas. A eficácia económica era assim erigida em justeza de acção pública, mascarando todas as iniquidades da sobreexploração internacional do trabalho e a persistência de alargadas bolsas de miséria no seio dos próprios países desenvolvidos. Por isso venceu. Parecia que o caminho do progresso estava definitivamente encontrado. Parecia sobretudo que as crises recorrentes do sistema tinham sempre uma solução a contento de todos. Assim tinha acontecido com a superação dos graves desequilíbrios económicos de 1929, com o emergir do welfare state e a senda dos chamados “anos gloriosos” que, com o óbvio intervalo da II Guerra Mundial, se estenderam até aos finais dos anos sessenta, bem como com a resolução da crise petrolífera da década de setenta e a implantação da ordem neoliberal e o processo tão incensado da “globalização” e de uma nova disposição planetária de paz e prosperidade com que terminamos o século XX e iniciamos o século XXI.


Acontece que a crise do subprime norte-americano que subitamente no final do Verão de 2008 se estendeu à economia mundial, constituiu um sintoma inequívoco de que algo deveras perturbador se passava. Afinal o sistema capitalista parecia não ser tão perfeito e infalível como se pensava e estava mesmo a ponto de não resistir à sua própria lógica de funcionamento. O constante incentivo ao consumo, a maximização incontrolável dos lucros e a depredação desbragada dos recursos disponíveis a nível mundial, chocava com a escassez do existente e tornava claro que vivíamos num jogo de soma zero em que a abundância de alguns se traduziria inevitavelmente no pauperismo crescente de todos os outros. Afinal, pela primeira vez na história do capitalismo e, porque não dizê-lo, na história da Humanidade, passou a ser certo que as gerações vindouras terão uma qualidade de vida inferior às gerações contemporâneas. Que a senda ininterrupta de progresso e bem-estar que a civilização moderna tinha proporcionado aos cidadãos do mundo desenvolvido chegou ao fim. Que o saldo passou a ser claramente negativo. De facto, a não ser em situações históricas pontuais e em conjunturas determinadas, nunca tal tinha acontecido. Esta é, no entanto, a realidade com que nos deparamos. Ora, haverá ideia mais revoltante que saber-se que os filhos terão uma vida bem pior que a dos seus pais?


A noção de que estamos a viver “acima das nossas possibilidades” passou a ser o slogan ideológico incessantemente martelado com vista a sossegar consciências e aquietar os espíritos. Para sustentar o verdadeiramente insustentável, o pensamento dominante pretende mesmo convencer-nos que a saída para esta situação passa obrigatoriamente pelos sacrifícios daqueles que já vivem mal. Ou então colocar-nos numa absurda ordenação da desgraça – e numa inconcebível chantagem – em que aqueles que ainda têm alguma coisa devem estar gratos por isso, em que qualquer direito é visto como um privilégio, em que a fatalidade do desemprego faz dos empregados (em qualquer situação e a qualquer preço) os seres mais felizes à face da Terra. A abdicação de todas as conquistas sociais da modernidade passa a ser a condição salvífica do próprio Homem, tudo em nome da manutenção da ordem capitalista neoliberal (num processo que o Le Monde Diplomatique de Junho intitula “da orgia especulativa à austeridade selectiva”). Mas em nome de quem, ou melhor, de quê, se pode aceitar esta verdadeira regressão civilizacional?


Claro que esta inevitabilidade escatológica esconde um facto essencial; o de que o difícil não é ultrapassar a crise, mas manter o actual sistema. Com efeito, o capitalismo já não consegue responder às expectativas que criou, nem satisfazer os mínimos de coesão social que ajudou a promover. É isso que diferencia esta crise das crises precedentes. Sabe-se que, havendo vontade política para o efeito, a taxação significativa da actividade bancária e das operações financeiras (responsáveis, em grande medida, pelo que está a acontecer), ou mais prosaicamente uma real moralização dos lucros obscenos auferidos pelos grandes potentados económicos, bem como o fim dos subsídios estatais de que todos eles beneficiaram, bastavam para equilibrar as contas públicas dos diversos países. Não é isso que verdadeiramente está em causa. Afinal, como bem sublinha Boaventura de Sousa Santos, “se a FAO calcula que 30 mil milhões de dólares seriam suficientes para resolver o problema da fome no mundo e os governos insistem em dizer que não há dinheiro para isso, como se explica que, de repente, tenham surgido 900 mil milhões para salvar o sistema financeiro europeu?” (Visão, 3/6/10). O problema não está aí, mas sim na possibilidade de encarar seriamente uma distribuição mais equitativa dos recursos existentes. Trata-se antes de continuarmos com afinco em busca do que alguns autores designam por “projecto político da humanidade”, que permita combinar a eficiência económica e a justiça social, isto é, a possibilidade de proporcionar a todos os viventes as mesmas oportunidades e de garantir uma existência digna para as gerações presentes e futuras. Há que ter a ousadia de experimentar outras formas de ordenação social mais justas e igualitárias.


Por isso esta é uma crise diferente. Em todo o caso não é seguramente apenas mais uma crise do capitalismo.


 


Hugo Fernandez



publicado por albardeiro às 11:41
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