Primeiro precisemos alguns conceitos. Toda a justiça é política, na medida em que aplica as leis promulgadas por assembleias legislativas segundo as conveniências de maiorias parlamentares que, por sua vez, são geradas pelas preferências políticas do eleitorado, expressas em sufrágio universal. Isto é assim em democracia, para além da evidência que decorre da simples constatação da matriz eminentemente político-ideológica de qualquer procedimento normativo, veiculador de visões do mundo dominantes e de paradigmas particulares de organização da sociedade, de que os textos constitucionais acabam por ser a expressão mais concludente. Isso não significa que justiça e política não devam ter campos de actuação distintos e, até certo ponto, autónomos. Até porque, se as leis emanam do poder legislativo, o poder judicial deverá assumir sobretudo um papel regulador e disciplinador no cumprimento das normas estabelecidas.
A tal escrutínio não se poderá, naturalmente, eximir o próprio poder político. A potestas de um ilimitado imperium político submeter-se-á, desta forma, à auctoritas da legalidade e legitimidade conferidas pelo Estado de Direito. Este assenta num exame permanente da actuação política, pressupondo a obrigação iniludível de todos aqueles que exercem o poder de prestar contas pelos seus actos. A justiça política, para além de uma actuação corrente de criminalização de práticas ilegais dos agentes políticos enquanto cidadãos governantes que praticam delitos comuns como roubos, estupros ou homicídios tem, assim, o dever de vigiar e punir ilícitos de carácter eminentemente político: situações de abuso de poder, de violação dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, de actuação pública em benefício próprio ou a favor de interesses perniciosos para o bem comum (os tristemente célebres casos das dirty hands). Num regime democrático, a separação dos poderes de Estado significa principalmente a possibilidade de controlo e fiscalização recíproca. A garantia da independência dos vários órgãos de soberania é sempre tributária do imperativo de inspecção e apreciação de procedimentos, a partir de mecanismos institucionais de checks and balances previamente consensualizados e estatuídos, evitando-se assim possíveis critérios de oportunidade política. Uma coisa é certa: os titulares de cargos políticos não podem, sob pretexto algum, escusar-se ao cumprimento da lei.
É certo que esta norma da responsabilização legal dos actos políticos afigura-se bastante abstracta e de difícil definição. Com efeito, estes crimes são bem mais problemáticos de tipificar que as matérias habituais da alçada jurídica. Mas essa circunstância não deve ser impeditiva de procedimento judicial. Apesar de tudo, a responsabilização criminal dos agentes políticos presume-se que seja pelo menos assim se espera! absolutamente excepcional. Do que não parece haver dúvidas é que a gestão equilibrada destas competências concorre sobremaneira para o bom funcionamento da sociedade. Não sendo de todo desejável a judicialização da política, porque tende a criminalizar a dissensão política, é igualmente intolerável a total impunidade dos actos políticos, porque dá cobertura a todo o tipo de atropelos aos direitos dos cidadãos. Para prevenir qualquer destas situações, a sanção jurídica da responsabilidade política tem que radicar no escrupuloso cumprimento da lei, constituindo a norma legislativa o parâmetro indispensável da acção judicial. É este o sentido da justiça política. Isso faz com que seja inconcebível para além de politicamente intolerável a ocupação de cargos políticos por parte de agentes condenados em processos judiciais, mesmo que democraticamente mandatados para o efeito. A representação política terá forçosamente que implicar a responsabilização política ou não será mais do que um acto de leviandade cívica. Por definição, a representação política democrática é condicionada às prescrições da legalidade do Estado de Direito que só a responsabilidade dos seus agentes pode afiançar, sujeitos que estão a quem lhes outorgou a autoridade. Face às obrigações políticas e institucionais dos governantes, ninguém pode pretender agir por conta própria. Isto não coarcta a liberdade de ninguém, antes postula a responsabilidade de todos.
A este propósito, o papel desempenhado pelo Procurador-geral da República no caso das escutas que envolvem José Sócrates, no âmbito do processo Face Oculta, é tristemente exemplar. A decisão de rejeitar a abertura de um inquérito às escutas extraídas dos autos da Face Oculta mesmo contra despacho nesse sentido emitido pelo Procurador-adjunto e responsável pelo recém-criado DIAP de Aveiro, Marques Vidal, e pelo juiz de instrução criminal que investiga o referido processo coloca Pinto Monteiro numa situação extremamente delicada. Na verdade, a fundamentação desse despacho aponta para a existência de um plano de controlo governamental de importantes grupos de media, através da compra de uma posição accionista estratégica da Portugal Telecom na TVI, com vista à alteração da linha editorial desta estação televisiva, mais consentânea com os interesses do poder. Isto indicia a prática do crime de atentado ao Estado de Direito conforme alega Marques Vidal tipificando, no mínimo, uma prática de abuso de poder. O preceito legal invocado pelos magistrados de Aveiro refere-se ao artigo 9º da Lei 34/87 de 16 de Julho, relativa aos Crimes de Responsabilidade dos Titulares de Cargos Políticos, que determina que ocorre um atentado ao Estado de Direito quando um titular de cargo político que, com flagrante desvio ou abuso das suas funções ou com grave violação dos inerentes deveres (
) tenta destruir, alterar ou subverter o Estado de direito constitucionalmente estabelecido, nomeadamente os direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição da República, entre os quais se encontra, precisamente, o da liberdade de imprensa. Sobre esta liberdade, aliás, o ponto 4 do artigo 38º da Constituição é taxativo: O Estado assegura a liberdade e a independência dos órgãos de comunicação social perante o poder político e o poder económico. Também a responsabilidade dos agentes políticos está perfeitamente consignada no artigo 117º da Constituição Portuguesa, relativo ao Estatuto dos titulares de cargos políticos que, no seu ponto 1 determina que Os titulares de cargos políticos respondem política, civil e criminalmente pelas acções e omissões que pratiquem no exercício das suas funções. e que no ponto 3 estabelece que A lei determina os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, bem como as sanções aplicáveis e os respectivos efeitos, que podem incluir a destituição do cargo ou a perda do mandato.
Claro que, como alegou o dirigente do Ministério Público, nada o obriga a concordar com as opiniões jurídicas do seu colega de Aveiro, havendo várias situações em que instâncias judiciais superiores revogam decisões de instâncias inferiores. Como se sabe, o Procurador-geral não encontrou quaisquer indícios que apontassem para a subversão do Estado de Direito, insistindo mesmo que a documentação que lhe foi remetida destinava-se a investigar esse e apenas esse crime. Posição diametralmente oposta teve, como vimos, o Procurador-adjunto de Aveiro e o juiz de instrução criminal do processo Face Oculta. Ora, tratando-se de um caso como este e envolvendo quem envolve, seria, no mínimo, prudente deixar as investigações correrem, para apuramento total da verdade. Procedendo desta forma, as responsabilidades jurídicas das instâncias intervenientes saíam incólumes e a sua independência política reforçada. Pelo contrário, Pinto Monteiro optou por separar a responsabilidade política do processo judicial, apelidando mesmo o caso de armadilha política e, nessa conformidade, arquivando as escutas. Acontece que ao fazer uma apreciação política do caso considerando-o uma armadilha política o Procurador saiu do seu âmbito de actuação para se colocar no terreno da luta política. A consequência imediata do arquivamento do processo foi, como sublinhou o insuspeito Diogo Freitas do Amaral, que o caso passou do mundo do Direito para o mundo da política, pura e simplesmente, por meio de uma decisão jurídico-política do PGR. (Visão, 25/2/10). Esta atitude pouco sensata deu de imediato azo a todo o tipo de insinuações, lançando a justiça portuguesa numa espiral crescente de descrédito e de suspeição.
A inabilidade na condução deste caso inviabilizou aquilo que parece ser uma atitude do mais elementar bom senso; investigue-se tudo e até ao fim, para que se possa proceder ao cabal esclarecimento de todas as circunstâncias apuradas. Culpe-se quem tem que ser culpado e inocente-se quem deve ser inocentado. É esse o imperativo da justiça e é esse o interesse da política. É sobretudo essa a obrigação que os cidadãos exigem dos responsáveis pelos órgãos de soberania do seu país.
Hugo Fernandez
A forma é a da admoestação, do ralhete, da indisfarçável irritação com que a notícia foi recebida, do azedume pela incomodidade da revelação. O conteúdo é o da recorrente fuga para a frente, do achincalhamento dos críticos, da arrogância de um poder que ainda se julga absoluto. Referimo-nos à carta que o primeiro-ministro, José Sócrates, enviou ao jornal Público (6/4/10), na sequência da denúncia de actividades privadas de carácter profissional desenvolvidas entre 1988 e 1990, na elaboração de projectos de engenharia civil no distrito da Guarda, quando já era deputado da Assembleia da República em regime de exclusividade.
Já nem falo da mais do que duvidosa alegação de que os projectos em causa foram elaborados a pedido de amigos e sem que eu tenha auferido qualquer tipo de remuneração., como diz o próprio, especialmente no caso de trabalhos técnicos, ao serviço da Câmara Municipal da Guarda, que dificilmente deixariam de ser pagos. Nem ao facto de se tratarem de 21 projectos de imóveis (moradias, prédios e até um pavilhão industrial) entre 1988 e 1990, lembre-se! quando declarou em 2007, ao Público, que era apenas uma actividade muito residual, resumindo-se à intervenção pontual em pequenos projectos. Nem tão pouco à circunstância de um mês e meio depois do parecer da Procuradoria-Geral da República de Janeiro de 1992, a propósito das dúvidas que se colocavam sobre o regime de exclusividade dos deputados e que postulava a impossibilidade legal de desempenho de qualquer actividade profissional, pública ou privada, ressalvando-se aquelas que diziam respeito a direitos de autor, realização de conferências e outras actividades análogas, em todo o caso de carácter excepcional o então deputado José Sócrates ter solicitado aos serviços da Assembleia da República que lhe fosse pago o respectivo subsídio de dedicação exclusiva, com retroactivos relativos precisamente ao período em causa, quando até reconheceu na altura que mantivera uma colaboração regular como responsável técnico de uma empresa de construção até 1989, reportando-se atente-se o auferimento do subsídio de exclusividade ao ano de 1988.
Refiro sobretudo a enorme desfaçatez e prepotência de um primeiro-ministro que se arroga o direito de admoestar um jornal que não fez mais do que a sua obrigação, isto é, investigar e reunir um conjunto de dados que permitem levantar legítimas suspeitas sobre a actuação pública de uma das mais importantes figuras do Estado português. E ao tom verdadeiramente acintoso, misto de sarcasmo e mal contido despeito, com que a carta é escrita, com referências à interessantíssima agenda jornalística e aos exigentíssimos critérios do jornal Público, não esquecendo de sublinhar naquilo que constitui uma intolerável pressão governamental sobre um órgão de comunicação social a opção do Público por uma linha editorial que desistiu da ambição de um jornalismo de referência., fazendo lembrar o quem não está connosco está contra nós de outros tempos. É que, como disse a eurodeputada socialista Ana Gomes no seu blogue Causa Nossa (7/4/10), a referida carta de José Sócrates Será de engenheiro técnico. Não é de primeiro-ministro.
Hugo Fernandez