Quando não se tem um pingo de vergonha na cara, quando se faz da mentira um método permanente de actuação pública, quando se insiste em enveredar pela mistificação mais descarada, então atingimos o nível mais baixo da política. Alguns apelidam-na de politiquice. A actividade nobre de administração da res publica transforma-se, por esta via, no mais puro e simples comércio de banha da cobra. Prometem-se electrodomésticos ou contas bancárias, vendem-se ilusões, compram-se dignidades e convicções, almeja-se atingir o paraíso na Terra. Tudo se faz para ganhar mais um voto. Tudo serve para assegurar o poder.
Vem isto a propósito da apresentação do programa eleitoral (os nomes que se dão às coisas!) do PS-Sócrates. Nas palavras do actual primeiro-ministro, o dever de um líder político é fazer propostas. Aquilo que Francisco Louçã apelidou de regime de folhetim de telenovela (Público, 20/7/09), vai sendo desfiado, de preferência à hora da abertura dos telejornais. Ele é o reforço das políticas sociais, com a promoção do emprego e com a promessa de mais apoios, subsídios e estágios para reduzir as desigualdades, ele é a modernização do país e a diminuição da burocracia, ele é a saída milagrosa da crise e o crescimento económico. Para rematar este rol de ofertas, Sócrates afirma convicto que este programa Não é de nenhum optimismo estouvado, mas determinado (Público, 26/7/09). Como é teso este querido líder! Fazemos nossas as palavras de Carlos Abreu Amorim, quando este considera que, ao invés, se trata de um novo marco no nível de subsolo que a política portuguesa atingiu. (Correio da Manhã, 30/7/09).
Insistindo sempre no argumento bacoco do orgulho em mostrar ideias e propostas em antecipação às outras forças políticas (como se estas forças não o fossem igualmente fazer mais cedo ou mais tarde), Sócrates, rodeado dos seus fieis, tem uma afirmação de espantoso cinismo: Nós no PS trabalhamos à vista de todos e em diálogo com a sociedade civil. Nem temos agendas escondidas, nem sacrificamos a apresentação e o debate de ideias ao calculismo taticista. Não pedimos um cheque em branco aos portugueses. (Público, 30/7/09). Sem o querer, fez, a contrário, um retrato preciso da sua governação ao longo dos últimos 4 anos. Então não foi o governo PS-Sócrates que afrontou, de uma forma inusitada e numa escala nunca antes vista, sectores sócio-profissionais inteiros, ostracizando sistematicamente os seus representantes e ignorando permanentemente as suas reivindicações? Isto é que é o diálogo com a sociedade civil? Então não foi o governo PS-Sócrates que, seguindo a lógica do dividir para reinar, lançou as pessoas umas contra as outras, assegurando, por essa via dissimulada e perversa, a diminuição dos direitos de todos? Então não foi este governo que optou sempre pela cartilha neo-liberal, mascarada pelo embuste da flexi-segurança, no sentido da mais completa precarização e desregulamentação do mercado de trabalho, subjugando-o, isso sim, à maximização dos interesses e lucros privados. Não significa isto, precisamente, ter uma agenda escondida? Talvez isso explique que, após 4 anos de consulado Sócrates, Portugal seja o país da União Europeia que apresenta o mais elevado índice de desigualdade social, que tenha a maior percentagem de pobres e que tenha das taxas de desemprego mais elevadas.
Quanto ao cheque em branco invocado pelo secretário-geral do PS, basta lembrar, por exemplo, que, logo em 2005, o actual governo aumentou o IVA em 2%, medida que atingiu indiferenciadamente o conjunto da população e que, portanto, penalizou sobretudo os mais pobres. Lembremos ainda toda a séria de iniquidades que a aprovação do Código do Trabalho trouxe na facilitação dos despedimentos, na promoção das arbitrariedades, na implementação de métodos de avaliação injustos e arbitrários. Pelo contrário, o PS chumbou sucessivos projectos dos partidos da oposição, para pôr fim ao sigilo bancário que, como se sabe, constitui o instrumento mais eficaz de combate à fraude e evasão fiscais. Recorde-se a este propósito que, no programa eleitoral em 2004, o PS se propunha, no prazo máximo de 180 dias, Adoptar um regime igual às melhores práticas europeias, nomeadamente em matéria de sigilo bancário para efeitos fiscais. No entanto, pouco ou nada foi feito nesse sentido. Os benefícios fiscais, em favor do capital financeiro e das grandes empresas, (e que faz com que a diferença entre taxas nominais e efectivas de IRC seja, em Portugal, das mais altas da União Europeia, isto é, a taxa efectiva de IRC seja das mais baixas da Europa comunitária) não só distorcem a tão proclamada concorrência, como tornam o sistema fiscal opaco, permitindo a existência, mesmo em tempos de crise, de lucros verdadeiramente obscenos por parte dos contemplados. Lembremo-nos do que se passou com a EDP, a GALP, ou a PortugalTelecom. Para além desta prática indiciar uma promiscuidade inaceitável entre o Governo e determinadas empresas eleitas (e ninguém pode esquecer a incrível figura de caixeiro-viajante que o nosso primeiro-ministro fez na última cimeira Ibero-Americana, a promover os computadores Magalhães, cujo fabrico foi atribuído à empresa J. P. Sá Couto sem o necessário concurso público!) faz com que a carga fiscal não possa ser efectivamente reduzida por meio do efeito imediato da diminuição da discrepância entre taxas efectivas e nominais do imposto referido. Da mesma forma, a taxação das transacções e mais-valias bolsistas, bem como das operações financeiras das offshores, foram medidas de justiça fiscal sempre recusadas pelo PS-Sócrates. Para não falar dos milhares de milhões de euros injectados nas instituições bancárias portuguesas privadas, sublinhe-se! em compensação pelas perdas sofridas nas escandalosas manobras de especulação financeira que, como se sabe, estiveram na origem da mais recente crise mundial. Nestas situações, o aumento do deficit e, não esqueçamos, do endividamento externo não constituíram qualquer obstáculo.
Recordemos ainda que outra das bandeiras do actual Governo teve a ver com o aumento da qualificação dos recursos humanos. O que tivemos ao longo da legislatura foi a implementação do embuste de qualificações académicas inexistentes e de malabarismos estatísticos que nunca tiveram qualquer correspondência com a realidade. Basta ver os milagres dos resultados dos Exames Nacionais (que acrescentaram à falta de exigência, constantes erros de concepção) ou a gigantesca fraude oficial que representa o programa Novas Oportunidades. O que pelo contrário se verificou em termos da qualificação dos recursos humanos, foi o subfinanciamento efectivo do ensino em geral e do ensino superior em particular, com cortes de mais de 4% no ensino básico e de mais de 8% para a totalidade das despesas do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Estas despesas colocam, aliás, o gasto médio por aluno muito abaixo do verificado na generalidade dos países da União Europeia. Como, para o efeito, acontece com a diminuta percentagem de licenciados ou pós-graduados existentes em Portugal por comparação com a média europeia. Ou seja, a intenção propagandeada, logo em 2004, de desenvolver a inovação científica e tecnológica quedou-se, na realidade, pelo maior corte orçamental de sempre das instituições do Ensino Superior. Notável!
Para qualificar o programa eleitoral do PS, Francisco Louçã usou talvez o adjectivo mais certeiro: manhoso (Público, 31/7/09). Com efeito, parece que do passado se fez tábua rasa e que tudo vai começar ex nuovo, com uma pureza e ingenuidade virginais. Como se ninguém tivesse memória, como se ninguém se apercebesse da dissimulação. Mas verdadeiramente alguém acredita que o PS irá ter melhores condições políticas do que teve com a sua maioria absoluta ao longo da última legislatura, para tomar as medidas propagandeadas? Alguém acredita que, no futuro próximo, a situação económica do país melhorará ao ponto de permitir fazer face aos encargos do reforço das políticas sociais, agora apresentado? Ninguém se interroga porque é que tais medidas não foram já tomadas, quando levamos mais de um ano de crise económica mundial? Alguém duvida que, perante o que ocorreu no passado, teremos mais do mesmo ou pior? Neste tipo de política tudo é falso, tudo é mentira. De resto, à imagem e semelhança do chefe.
Hugo Fernandez