Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!
Segunda-feira, 27 de Junho de 2005
O “CÍRCULO DA RAZÃO”

Um texto do HUGO FERNANDEZ sobre a realidade actual europeia, um discurso da razão sobre a razão, desbanalizando o que muitos queriam que fosse banal. Um discurso que nos interroga continuamente de que podemos ser versões melhores de nós mesmos como europeus; que podemos ser mais do que somos: mais plurais, audaciosos, diferentes e livres, enfim, capazes de usar dessa liberdade para a construção de sociedades democráticas onde sejamos mais diferentes, mais livres, mais plurais e mais resolutos.


1ª Parte


O resultado era esperado. Depois da dupla rejeição franco-holandesa no referendo ao Tratado Constitucional (respectivamente 55% e 63% de votos), poucas outras alternativas restavam aos líderes europeus reunidos na cimeira de Bruxelas. O processo de ratificação do Tratado, que devia estar concluído até finais de 2006, vai ter o seu prazo alargado. Nas palavras do actual presidente rotativo do Conselho, o luxemburguês Jean-Claude Juncker, “até meados de 2007”. De qualquer forma, como fez questão de sublinhar, não se trata de uma suspensão e não haverá, consequentemente, lugar à renegociação do documento. Veremos…


Tanto a França como a Holanda são países fundadores da Comunidade Europeia. Acresce que, desde 1999, nenhum outro país europeu contribuiu mais para o orçamento comunitário do que a Holanda. Em 2002 a contribuição holandesa era de 0,65% do PNB, quase o dobro da Alemanha, com 0,38%. Além do mais, a possibilidade muito plausível de se assistir a uma sucessão de rejeições nos países que ainda não realizaram os seus referendos, ameaça alastrar como uma mancha de óleo. Recorde-se, aliás, que apenas um dos três países em que foi dada aos cidadãos a oportunidade de se pronunciarem sobre a Constituição europeia, votou favoravelmente – a Espanha.


Falou-se de “congelar”, “suspender”, “parar para reflectir”, “vamos escutar as pessoas, temos um plano D de democracia, de debate e de diálogo” – esta última posição do inefável Durão Barroso – na certeza, porém, de que esta foi uma das mais difíceis cimeiras europeias dos últimos anos e de que está instalado um impasse e uma crise profunda na União. Como concluiu eufemisticamente o presidente Juncker, “temos de juntar tempo ao tempo”. Talvez seja necessário muito mais do que a lógica do “aguardar à espera que passe”.


Perante esta situação, os eurocratas multiplicaram-se em declarações e tomadas de posição. Disse-se de tudo. Que as populações não estavam esclarecidas e que votaram tendo em conta os seus interesses imediatos. Ora, pelo contrário, verificou-se que a falta de verdadeiro debate – com a preocupação de envolver e ouvir as populações – se deu precisamente nos países em que a ratificação do Tratado foi feita por via parlamentar. Nos países onde ocorreram referendos, o debate foi alargado, vivo, participado e… deu no que deu. Desvalorizou-se o significado do descontentamento verificado, utilizando uma conhecida técnica argumentativa que consiste em rebaixar o próprio adversário, diminuindo, assim, a pertinência das suas ideias. De entre vários exemplos, podemos destacar o de António Vitorino que, em entrevista ao Diário de Notícias (29/5/05) afirmou “A tendência para votar por medos e fantasmas torna difícil um debate racional, baseado no que está efectivamente escrito no tratado da união”. Não foi, como vimos, o caso. Já para não falar da posição expressa pelo putativo Pedro Norton, num dos seus habituais artigos de opinião na revista Visão (16/6/05), em que atribui às elites um “papel insubstituível” (quais elites? que papel?), alegando “virtudes da ponderação, da deliberação, da construção de consensos” de que estas seriam apanágio. Invocou, a propósito, uma frase – no mínimo polémica – do politólogo italiano Giovanni Sartori, segundo o qual um aumento do “directismo” na democracia e um consequente crescimento da participação popular poderá resultar na distribuição de “cartas de condução sem que nos perguntemos se os encartados sabem conduzir”. Todos sabemos ao que levou, na história recente do nosso país, a conversa da falta de preparação dos portugueses para a democracia.


CONTINUA



publicado por albardeiro às 18:04
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Segunda-feira, 20 de Junho de 2005
REPETIÇÃO!

Acedendo a alguns pedidos republicitamos um texto “postado” nos idos de Março...


A universidade no sistema de mercantilização das políticas da "coisa pública"!


Era para abordar (de facto, isso tem acontecido nos últimos textos aqui publicitados) o que aí vem em termos da governação, dessa ninguém nos livra (pelo menos até se desvanecer o encanto), ou seja, nem mais nem menos do que a base teórico-epistemológica que enforma o projecto político do ideário da “Terceira Via”, que mais não é, trocado por cêntimos, do que a configuração actual dos governos neo-social-democratas, enquanto movimentos políticos supostamente críticos ao neoliberalismo. Desde já a promessa..., será muito brevemente. Na “publicitação” de hoje, as palavras serão sobre a UNIVERSIDADE, ou melhor, sobre o governo da universidade. Não é uma opinião virgem esta que vão ler, mas perante a alteração de paradigma que está a acontecer no ensino/formação superior, a questão da universidade é um “terreno” onde a discussão a respeito da sua direcção/gestão e da sua organização/sistema educacional se mostra decisiva, para não correr o risco de “fossilização”.


Por uma série de aspectos, dentre os quais ressaltam - a insatisfação com o sistema do número de vagas existentes no ensino superior; as tensões recorrentes entre público e privado; a dificuldade de entendimento dos governos de que só existe ensino de qualidade se existir também investigação; a reiteração de um discurso de desvalorização social, por vezes, banalizador e agressivo; aplicação/concretização do Processo de Bolonha; estatutos de carreira caducos -, estamos a viver, nos últimos tempos, uma sensação de que a universidade pública está mergulhada numa crise interminável e até, esta é forte, autodestrutiva. Atacada sem tréguas pela lógica da mercantilização, a universidade sente também, numa escala inédita, os efeitos das orientações governamentais dos últimos anos, concentradas no défice, na privatização, na reformulação das práticas gerenciais e administrativas, no constrangimento do Estado e das suas (im)possibilidades de intervenção na vida nacional. Nunca como hoje a universidade pública foi tão amesquinhada pelos governantes, ou seja, por aqueles que deveriam ser os primeiros a defendê-la e a valorizá-la. Converteram-na também num item das despesas públicas - um gasto, não um investimento – só possível num país de medíocres e periférico.


A universidade pública, tolhida pelos factores apontados, encontra-se numa situação periclitante. O que era uma referência, é agora criticada por todos os lados e parece estar a ser abandonada pela sociedade, que, instigada (agressivamente) por uma visão instrumental da formação superior (o que importa e faz doutrina é apenas preparar os jovens para o mercado), tende a olhar sempre com maior desconfiança para a universidade pública, tem tudo de mau - funcionários a mais, qualidade de ensino/formação má, “filosofia” a mais, etc. (provavelmente num aspecto falhou, isto é, pelo que se tem visto ultimamente na gestão da “coisa pública”, não devia ter diplomado tanta incompetência). A situação é de tal forma absurda que, em decorrência, muitos “iluminados” não tem qualquer pejo em afirmar ter passado a época do ensino superior público, pois este não se mostra capacitado para se adaptar aos novos contextos, abusivamente dispendioso, pouco produtivo e injusto. O melhor seria privatizar ou, no mínimo, fazer a gestão universitária de modo a ser guiada pela lógica do hipermercado, onde tudo se vende e se possível a fazer dumping (veja-se a oferta de pós-graduações).


É preciso desmontar este cambapé. É evidente que temos que parar os desperdícios, nisso não existem dúvidas, mas já não há pachorra para se continuar a pensar e falar da universidade em termos contábeis ou a partir de preconceitos e visões impressionistas. Não faz sentido abordá-la como se fosse uma organização qualquer, parecida com um shopping center ou uma fábrica. Para além de necessário é nosso dever afirmar bem alto, por todos os meios possíveis, que a universidade pública não morreu: que ela, apesar das oscilações, continua viva, certamente que cumprirá uma função axiomática para o desenvolvimento do país, formando profissionais e cidadãos de qualidade. Não é verdade, por exemplo, que os estudantes pioraram ou que os professores de hoje são menos produtivos que os de antes. Afirmar isso é pseudo-elitismo ou falta de visão histórica, algo que desrespeita a realidade e ofende as pessoas envolvidas. O que se passa, e nem sempre se reconhece, é que a universidade pública se massificou e ainda não conseguiu ajustar-se inteiramente a isso (apesar de algumas reformas, foram séculos de uma herança “medieval”). E o facto é que, decorridos já estes anos de regime democrático, ainda está imersa numa longa e difícil transição, que transcorre num ambiente complicado, efervescente, desconfiado, pouco organizacional.


Muitos dos problemas universitários derivam daí. São problemas internos, que nascem das mudanças estruturais, da quebra de paradigmas e culturas, da suspensão de pactos de convivência e rotinas administrativas. A Universidade necessita de dar resposta a esses problemas, por que tais problemas complicam terrivelmente a reacção da universidade aos novos contextos. Mais do que uma boa administração, a universidade pública necessita hoje de bom governo. Não basta melhorar as habilidades técnico-administrativas no sentido estrito, nem muito menos incorporar novas “tecnologias gerenciais” ou implementar novos desenhos organizacionais. Tudo isso também é útil, mas é seguramente insuficiente. Sem valorização profissional e sem uma política de recursos humanos que se concentre nas pessoas como sujeitos capazes de deliberar e agir, inseridos em espaços repletos de ideias e orientações de sentido - ou seja, que continuem a ser constantemente formados e capacitados -, os avanços certamente que serão inexpressivos. Doa a quem doer, o cerne da questão é este: em vez de chefes (com tudo o que isso significa), precisamos de líderes e dirigentes. Em vez de subordinados, precisamos de dirigidos capazes de dirigir.


Em suma, para ser efectivamente governada como instituição inteligente, voltada para a educação e a pesquisa, a universidade pública precisa de se recolocar plenamente como instituição do saber e do conhecimento. Na base deste movimento, deverá estar a prevalência do mérito académico, mas também a proposição consistente de um pacto democrático de convivência e a assimilação de um padrão superior de gestão. Pela via da reposição do mérito, a universidade se reencontrará com o seu sentido natural e poderá dar respostas como instituição dedicada à produção e difusão de conhecimentos. Da mesma forma, essas respostas, inequivocamente, tem que ser “dadas” pela via da democracia, construindo um pacto que solidarize os interesses, respeite as individualidades e incentive a participação de todos. E pela via da gestão renovada, aprenderá a dar conta das rotinas sem se deixar rotinizar, inventando-se permanentemente como organização.


“É o medo que nos tolhe e, directa e indirectamente, nos inibe de expandirmos a nossa potência de vida, e mesmo a nossa vontade de viver. De certo modo, pode perguntar-se se a própria não-inscrição, toda essa actividade saltitante do `toca e foge´, esse constante desassossego dos portugueses, não provém do medo. Porque este arranca o indivíduo ao seu solo, desapropria-o do seu território e do seu espaço, deixa-o sobrevoar o real, em pleno nevoeiro. Enquanto dispositivo mutilador do desejo, o medo predispõe à obediência. Amolece os corpos, sorve-lhes a energia, cria um vazio nos espíritos que só tarefas, deveres, obrigações da submissão são supostos preencher. O medo prepara impecavelmente o terreno para a lei repressiva se exercer”. José Gil, “De que é que se tem medo?”, in Portugal, hoje. O medo de existir, Lisboa: Relógio d’Água, 2004, pp. 84



publicado por albardeiro às 15:28
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Segunda-feira, 6 de Junho de 2005
DECLARAÇÕES (2ªPARTE)

CONTINUAÇÃO do “post” anterior


Também os neo-conservadores norte-americanos proclamam o século XXI como “O Século Americano”. Para assegurar esse domínio, a “Nova Estratégia de Segurança Nacional dos E.U.A”, tornada pública em Setembro de 2002, defende a necessidade do que se denomina “vantagens assimétricas” dos E.U.A no mundo, com o propósito de impedir o aparecimento de qualquer potência regional que possa pôr em perigo a supremacia absoluta – em termos militares e económicos – de Washington. “As nossas forças serão suficientemente sólidas para dissuadir os nossos potenciais adversários de prosseguir um projecto de constituição de uma força militar que possa superar, ou mesmo igualar, a potência dos E.U.A”, refere-se no documento. Este unilateralismo feroz configura um propósito evidente de hegemonia mundial e de ameaça declarada a todos os outros países. O poderio atómico americano aí está para o atestar. Não é por acaso que os E.U.A se recusam a assinar qualquer tratado de limitação de armas nucleares. Mais do que nunca é reafirmada a supremacia militar norte-americana, que ninguém deve ter o atrevimento de contestar. Tudo em nome do poder absoluto dos E.U.A.


Esta estratégia não é nova. Em 1992, Paul Wolfowitz, já então um dos dirigentes mais influentes dos neo-conservadores norte-americanos, num documento destinado a um planeamento futuro da defesa dos Estados Unidos no tempo do governo de Bush sénior, o Defense Planning Guidance,– publicados à revelia no New York Times e no Washington Post – são estabelecidos os princípios fundamentais da actual doutrina imperial norte-americana. Em primeiro lugar, impedir explicitamente o surgimento de uma superpotência rival, mesmo que seja oriunda dos países que são considerados aliados dos americanos. Para isso é fundamental subordinar, sem contemplações, os ditos “aliados” à liderança americana e esmagar os adversários. Em segundo lugar, não ter quaisquer escrúpulos no desencadear de acções unilaterais, incluindo as militares, sem esperar qualquer consenso a nível diplomático, entendimentos que, de resto nunca poderá passar, na opinião de Wolfowitz, do estatuto de “agrupamentos ad hoc”. Finalmente e por todos os meios disponíveis, a promoção dos “valores americanos”. O objectivo é claro: “exige que impeçamos qualquer poder hostil de dominar uma região cujos recursos poderiam, sob controle consolidado, ser suficientes para gerar poder global”, especificando mais adiante que estas regiões incluem a Europa Ocidental (note-se!), a Ásia Oriental, o território da antiga URSS, a Ásia do Sudoeste”.


William Kristol e Robert Kagan, num artigo da revista Foreign Affairs de 1996, intitularam eufemisticamente esta dominação militarista e totalitária de “hegemonia global benevolente”. Talvez por isso, na capital georgiana Tbilissi, Bush tenha elogiado a denominada “revolução das rosas” de Novembro de 2003 associando-as aos outros sucessos do domínio americano do mundo: “Vivemos uma época histórica em que a liberdade avança, do mar Negro ao mar Cáspio, no Golfo e para lá dele.” Aproveitou, aliás o ensejo, para agradecer o apoio dado pela Geórgia à invasão americana do Iraque.


Tal como a Alemanha nazi pretendia o domínio total da Europa, de que a estratégia fulminante da blitzkrieg foi o principal instrumento numa lógica de guerra total, os E.U.A têm como objectivo o domínio dos recursos energéticos mundiais que alimentem e viabilizem a sua economia predadora e o seu estilo de vida de excesso e desperdício. É que os E.U.A, com 2% das reservas mundiais, consomem um quarto do petróleo produzido a nível mundial, bem como cerca de metade da energia eléctrica. Para isso e sob o pretexto da luta contra o terrorismo, trataram de disseminar bases militares em zonas tão estratégicas como o Médio Oriente, a Península Arábica, a Ásia Central, a Crimeia e o Cáucaso e em países tão relevantes como a Turquia, Israel, a Arábia Saudita, o Iraque, a Geórgia, a Ucrânia, o Uzbequistão, o Afeganistão ou o Paquistão.


Hitler também desejava ardentemente a guerra. Só assim podia ter acesso aos recursos que lhe permitiriam a construção dessa Grande Alemanha. Para isso, não hesitou em ocupar e explorar as riquezas de grande parte do continente europeu. Só nessa lógica agressiva e hegemónica se compreende quer a invasão da URSS, quer a declaração de guerra aos E.U.A quando, já derrotado na Rússia, deu ao governo de Roosevelt o pretexto de entrar na guerra ao lado da Grã-Bretanha. Também Hitler, perante as dificuldades do avanço militar para Moscovo, acaba por deslocar as suas forças mais poderosas para Sul, a fim de ocupar os campos petrolíferos da Crimeia e do Cáucaso. No caminho destes deparou, no entanto, com a resistência inusitada de Estalinegrado. Embora seja grande a diferença dos meios envolvidos e diferentes as situações históricas em causa, os objectivos são idênticos e os métodos semelhantes. Tal como agora, a agressividade militar e a lógica totalitária estão presentes.


A “guerra preventiva” é o eufemismo para a pura agressão – uma vez que não se podem punir crimes que não ocorreram – visando um estado de “guerra permanente”. E, como Ignacio Ramonet lembra, já em Junho de 1941, rompendo o Pacto Germano-Soviético e atacando a União Soviética, os exércitos nazis procederem a uma autêntica “guerra preventiva”. Na época, tal realidade era claramente assumida. Logo em 1935, o Chefe de Estado-Maior alemão, o marechal Ludendorff, defendia sem rodeios de que para a “guerra total” é necessária a concentração total do poder de fogo, implacável em relação às populações civis e às infraestruturas económicas, afastando, desde logo, qualquer consideração ética ou moral. Essa mesma realidade é hoje cinicamente camuflada e, como escreve o think tank neo-conservador Robert Kagan no seu livro Warrior Politics, é preciso “levar a prosperidade às zonas atrasadas do mundo graças à doce [sic] influência imperial da América”. Londres, Estalinegrado, Hiroshima, Hanoi, Bagdad ou Falluja são apenas alguns exemplos desta mesma lógica totalitária, presente ao longo da história recente da humanidade.


Depois dos estados bálticos, Bush seguiu para a Holanda para participar numa cerimónia de homenagem aos 8300 soldados americanos mortos na batalha de Margraten. Quando chegou a Maastricht, uma manifestação não deixava de lembrar ao presidente norte-americano que quem invadiu um país soberano como o Iraque não tinha moral para prestar homenagem aos que morreram na II Guerra Mundial. Sinais dos tempos!



publicado por albardeiro às 11:37
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Quarta-feira, 1 de Junho de 2005
DECLARAÇÕES

Existe quase sempre escondida uma arrogância (infinita) quando, piratas e vampiros, em nome da Paz e sobretudo da História, se juntam para comemorar eventos. Vem isto a propósito das comemorações da passagem dos 60 anos sobre o Fim da 2ª Guerra Mundial no continente europeu. Retórica e alinhamentos compromissórios constituíram a referência determinante e substantiva das comemorações. Com factos e argumentos o HUGO FERNANDEZ tratará de falar disso no texto que se segue:


É sabido que a História nunca se repete. Mas também é verdade que os processos históricos podem originar estranhas coincidências. Vem isto a propósito das recentes comemorações do final da última guerra mundial. Como se sabe, a 8 de Maio de 1945, a II Guerra Mundial terminava na Europa. No dia seguinte, o sucessor de Hitler, o almirante Karl Doenitz, assinava no quartel-general soviético em Berlim a incondicional capitulação da Alemanha. Na digressão europeia que efectuou por ocasião das celebrações do sexagésimo aniversário do 9 de Maio, dia da vitória do Exército Vermelho sobre as tropas nazis, o presidente norte-americano George W. Bush, fez um conjunto de declarações que revelam surpreendentes permanências, no domínio da política internacional, de uma particular maneira de entender o mundo.


Num discurso pronunciado em Riga, capital da Letónia, no dia 7 de Maio, o presidente americano reconheceu o inconcebível: “O fim da II Guerra Mundial levantou questões incontornáveis ao meu país: tínhamos lutado e feito sacrifícios apenas para conseguir a divisão permanente da Europa em campos armados? Ou será que a causa da liberdade e dos direitos das nações exigia mais de nós?”. O Presidente norte-americano acabou por constatar que os E.U.A permitiram “um dos maiores males da História”, ou seja, a dominação soviética da Europa Central e do Leste. O que estas declarações revelam é, para além de uma total falta de respeito pelos anteriores aliados, a certeza de que por vitórias apenas se pode considerar o total aniquilamento de todos os opositores e o domínio absoluto do vencedor. Ou seja, o que George W. Bush verdadeiramente quis dizer é que os americanos deviam ter sido capazes de conquistar militarmente toda a Europa – e quiçá a própria União Soviética – não permitindo quaisquer veleidades de autonomia nacional ou de alternativa política aos povos europeus. Numa altura em que se comemora o fim da II Guerra Mundial estas intenções mimetizam a lógica de actuação da... Alemanha nazi. Também Adolf Hitler pretendia o domínio absoluto da Europa sob o diktat do III Reich – o tal que, na profecia do ditador, duraria mil anos. Com esse objectivo arrastou o mundo para a guerra.


Bush aceitou, ainda assim, estar presente nas comemorações do final da II Guerra Mundial, que tiveram lugar precisamente em Moscovo. Na mesma ocasião, num encontro com os Presidentes da Estónia, da Letónia e da Lituânia, Bush reconheceu a “História dolorosa” destes países e declarou, num acto de falsa contrição que “Mais uma vez, quando governos poderosos negociaram, a liberdade das pequenas nações foi menosprezada", concluindo “Mas esta tentativa de sacrificar a liberdade pela estabilidade deixou um continente dividido e instável”. E acabou por assumir o direito absoluto dos americanos à livre ingerência em qualquer país, ao afirmar: “A ideia de países ajudarem os outros a tornarem-se livres, espero que não seja vista como revolucionária, mas como uma política externa decente e humana”. Com o beneplácito da hiperpotência mundial, os presidentes Arnold Ruutel, da Estónia e Valdar Adamkus, da Lituânia não participaram nas cerimónias, tal como aconteceu com Mikhail Saakachvili da Geórgia, em protesto pelo atraso do abandono das bases militares russas no seu território. Os presidentes da Letónia, Vaira Vike-Freiberga e da Polónia, Alexandre Kwasnievski decidiram participar, mas no essencial partilham das posições dos seus homólogos.


O que mais choca nesta assunção do estatuto imperial por parte dos E.U.A é a total falta de escrúpulos para atingir os seus objectivos hegemónicos, o absoluto desprezo pelos outros povos e pelas opiniões diversas, a arrogância do unilateralismo e a agressividade da intolerância. Com as evidentes idiossincrasias que o tempo e as circunstâncias sempre determinam, a Alemanha nazi seguia exactamente o mesmo padrão de comportamento. O atropelo dos mais elementares preceitos do direito internacional e a completa indiferença pela legalidade na relação entre os países, constituem comportamentos recorrentes. Tal como Hitler fez com as instituições internacionais do seu tempo, também Bush desrespeita compromissos anteriormente assumidos e contesta a autoridade de organismos com o prestígio do Tribunal Penal Internacional – isentando, por conta própria, os militares norte-americanos de prestarem contas à justiça internacional – ou mesmo da própria ONU. É sintomático, a este respeito, o desplante da recente indigitação de alguém como John Bolton para embaixador norte-americano na ONU. Lembremos que este senador republicano declarou publicamente que a ONU só tinha alguma utilidade se servisse os interesses americanos, na linha, aliás, do que Madeleine Albright afirmou, aquando da questão do Kosovo: “vamos para a guerra com a ONU se possível, sem a ONU se necessário”. Também Richard Perle, corifeu do pensamento neo-conservador norte-americano, no dia seguinte ao começo da invasão do Iraque, publicou na imprensa internacional um artigo com o sugestivo título: “Thank God for the Death of the UN”. Os E.U.A agem, assim, como um autêntico Estado “pária” que, inclusivamente, se recusa de forma obstinada a assinar os principais tratados internacionais.


Todas estas atitudes não nos podem deixar de trazer à memória as célebres declarações de Adolf Hitler aos juristas alemães em 1933, de que o direito se devia “subordinar aos interesses do Estado e à ética nazi”. Hitler também não respeitou os compromissos internacionais do seu país. A Alemanha abandonou a Sociedade das Nações e denunciou unilateralmente o Tratado de Versalhes, reocupando militarmente a Renânia e o Sarre em 1936. Acabou por anexar a Àustria em 1938 – na sequência do Acordo de Munique de Setembro de 1938, em que Hitler impôs a sua vontade a ingleses e franceses – o noroeste da Checoslováquia (o denominado “País dos Sudetas”, cuja população era maioritariamente de origem germânica), a Boémia-Morávia, já em 1939, reduzindo a Eslováquia ao mero estatuto de satélite alemão. Acabou por invadir a Polónia em Setembro de 1939 e iniciar a II Guerra Mundial.


A ideologia nazi proclamava o Lebensraum (espaço vital) e o pangermanismo nacionalista e xenófobo justificava a Anschluss (anexação) das áreas de colonização germânica, com vista à restauração de uma mítica unidade nacional e à consecução da grandeza imperial alemã. Tratava-se de construir uma Heimat (pátria) alargada, assegurada por um Estado imperial – o III Reich. “O objectivo da política alemã é a defesa e a segurança da comunidade racial germânica e a sua multiplicação. Precisamos, portanto, de espaço”, declarou Hitler às chefias militares alemães em 1937. Estas iniciativas talvez pudessem ter sido travadas na Conferência de Munique, se os primeiros-ministros da Grã-Bretanha e da França da altura, Neville Chamberlain e Édouard Daladier, tivessem posto um travão às intenções de Hitler. Mas, ontem como hoje, o perigo da situação não foi fácil de reconhecer.


CONTINUA



publicado por albardeiro às 20:54
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